Folha de S. Paulo


Personagens e relatos da Operação Condor

RESUMO A Operação Condor uniu ditaduras sul-americanas e EUA na perseguição à militância de esquerda no continente. Para livro e mostra, o fotógrafo português João Pina retratou e ouviu vítimas -e um algoz, o brasileiro major Curió- do esquema de cooperação, que é alvo de julgamento na Argentina abrangendo 108 casos.

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O olhar ressabiado da uruguaia Lilian Ceriberti, 65, combina com o desconforto que parece sentir, sentada meio de lado numa poltrona de sua casa em Montevidéu, ao posar para João Pina.

Em depoimento ao fotógrafo português, a ex-professora detalha como foi capturada numa ação da polícia brasileira com o Exército de seu país, na rodoviária de Porto Alegre, em novembro de 1978. Interrogada e torturada no Dops (Departamento de Ordem Política e Social), foi mandada de volta ao Uruguai, onde cumpriu pena de cinco anos como presa política.

De pé sobre a mureta de um terraço, tendo ao fundo o panorama vertiginoso dos arredores de La Paz, o boliviano Leonardo Benito Peña, 39, exibe um semblante sereno que contrasta com o que conta: os pais foram sequestrados em Buenos Aires quando ele tinha 20 meses de idade e estão desaparecidos até hoje. Na ocasião, a tia conseguiu transportar clandestinamente o bebê órfão até a Bolívia, onde foi criado por parentes. Até hoje, as Avós da Praça de Maio (instituição de direitos humanos argentina que busca netos de desaparecidos) investigam o paradeiro do bebê que sua mãe levava na barriga quando foi sequestrada.

João Pina
Militares escondem o rosto durante sessão de julgamento na Argentina
Militares escondem o rosto durante sessão de julgamento na Argentina

Conhecida em seus anos de militância como "camarada Renia", a paraguaia Celsa Ramírez, 64, é retratada tocando harpa perto da casa em que vive hoje, no município de Itá (a 35 km de Assunção). Seu reencontro com o instrumento se deu quando recebeu um de presente, dado por religiosos, no campo de concentração paraguaio de Emboscada. Ali, permaneceu presa durante a ditadura de Alfredo Stroessner (1954-89), após ter vivido no exílio, na Argentina, com os pais comunistas.

Lilian, Leonardo e Celsa se deixaram retratar e narraram suas histórias para o livro "Condor" [Tinta da China, R$ 120, 260 págs.], que Pina, 33, lança na próxima terça (23), às 19h, no Paço das Artes, em São Paulo. Na ocasião, será inaugurada uma exposição com imagens do livro e outras, que não integram a publicação, que ficará em cartaz até 7 de dezembro.

O volume, publicado originalmente em Portugal, e com tiragens também em inglês e espanhol, resulta de uma investigação iniciada por Pina em 2005 e concretizada por meio de viagens pelos países que participaram da Operação Condor, vasto esquema de troca de informações e de ações militares conjuntas de governos ditatoriais latino-americanos para reprimir opositores, durante a década de 1970.

Depoimentos de sobreviventes, audiências judiciais, trabalhos de equipes forenses, visitas a centros clandestinos de prisão e tortura -como o Dops no Brasil, a Escola Mecânica da Marinha, na Argentina, e o Estádio Nacional, no Chile- foram registrados pelo fotógrafo, que reside em Buenos Aires e publica suas imagens em veículos como as revistas "The New Yorker" e "Time" e o jornal "The New York Times".

O projeto -um "registro documental de um dos momentos históricos mais marcantes do século 20 na América Latina", como define Pina à Folha-, custou US$ 30 mil, angariados em três diferentes campanhas numa plataforma dedicada a financiamento coletivo na internet, ou "crowdfunding".

SENTENÇA

"Condor" chega a público no momento em que a Justiça argentina se prepara para emitir uma sentença relacionada à desaparição de 108 pessoas -não só argentinos mas também uruguaios, chilenos, paraguaios, bolivianos e um peruano- em decorrência do esquema armado por regimes militares daqueles seis países e mais o do Brasil.

João Pina
Antigas celas do campo de concentração de Emboscada, no Paraguai
Antigas celas do campo de concentração de Emboscada, no Paraguai

Desde a gestão Clinton (1993-2001), Washington vem retirando da categoria confidencial documentos sobre o período. Já haviam sido liberados 24.000 sobre o Chile e 4.000 sobre a Argentina, parte deles usada na megacausa -o prefixo designa o grande número de acusações por ela abarcadas. Ficou comprovado o apoio dos EUA a muitas dessas ações, principalmente até o ano de 1977, quando o democrata Jimmy Carter assumiu a Presidência, e o país passou a atuar contra abusos de direitos humanos na América Latina.

Em "Os Anos do Condor" (Companhia das Letras, 2005), o historiador norte-americano John Dinges, especialista no tema e professor da Universidade Columbia, diz que a Operação Condor abrangeu "todo o Cone Sul". E detalha: "Dos 4 mil km da costa do Pacífico do Chile, passando no sul pelo estreito de Magalhães e pelo cabo Horn, no leste pelas praias atlânticas da Argentina e do Uruguai, e depois no norte pelos quase 6,5 mil km que abarcam o altiplano dos Andes da Bolívia, as planícies do Paraguai e as imensas cidades e vastidões amazônicas do Brasil".

O que no começo se limitava a uma troca de informações sobre o movimento das guerrilhas de esquerda transformou-se em uma ação militar coordenada, cujo saldo de mortos chega a 60 mil.

"Todos os países têm interconexões por meio de tratados, diplomacia, inteligência. O que fizeram durante a vigência da Operação Condor foi aproveitar o que já estava armado e buscar outro tipo de contato para fazer tudo mais rápido. Eliminaram-se as formalidades, não só para acelerar as ações, mas diretamente para sequestrar pessoas e transportá-las", diz um dos promotores do caso na Argentina, Pablo Ouviña.

A megacausa Condor começou a ser julgada na Argentina em 2011 e tem, entre os imputados, os generais argentinos Reynaldo Bignone (que governou o país entre 1982 e 1983), 86, Santiago Omar Riveros, 91, e Jorge Carlos Olivera Rovere, 88. Também se inclui entre os acusados o uruguaio Manuel Cordero, 76, um dos principais responsáveis pelo aparato de repressão de seu país, que foi extraditado pela Justiça brasileira para responder às acusações na Argentina.

Já o Peru negou o pedido de extradição do ex-ditador Francisco Morales Bermúdez, que governou o país entre 1975 e 1980 e tem hoje 92 anos. Após o pedido argentino, a Corte Suprema peruana pediu que Bermúdez fosse investigado, mas dentro das fronteiras peruanas. O ex-ditador também responde a processo aberto por um juiz na Itália pelo desaparecimento de 25 cidadãos italianos no Peru, durante seu governo.

Alguns acusados argentinos, como o ex-presidente Jorge Rafael Videla (1976-81) e o ex-ministro do Interior Albano Harguindeguy (1976-83), morreram antes que a causa chegasse ao fim.

"É verdade que muitos dos acusados estão bastante idosos. Mas eu não acho que a idade interesse nesse caso. Não haverá verdadeira democracia na América Latina enquanto não se esclarecerem essas histórias. Os pactos de anistia são pactos de amnésia que só ajudam a formar sociedades sociopatas", disse à Folha o jornalista norte-americano Jon Lee Anderson, que assina o prefácio de "Condor" -o posfácio é do juiz espanhol Baltasar Garzón, responsável pela prisão do ex-ditador chileno Augusto Pinochet (1974-1990), em Londres.

ANISTIA

De fato, em vários dos países envolvidos na Operação Condor, vigoram atualmente indultos e leis de anistia. Por isso, a megacausa foi aberta em Buenos Aires a partir de casos em que os corpos das vítimas ainda não foram descobertos.

"Só assim, pode-se falar de 'delito permanente'. Como os cadáveres não apareceram, presume-se que o delito segue sendo executado. Se o delito continua, é impossível anistiar ou indultar", diz outro promotor da causa, Miguel Ángel Osorio.

João Pina
Avião usado na Argentina para jogar prisioneiros no rio da Prata ou ao mar
Avião usado na Argentina para jogar prisioneiros no rio da Prata ou ao mar

Por serem conhecidos os paradeiros dos cadáveres, não entraram na lista casos famosos da Operação Condor, como os assassinatos de apoiadores do governo socialista deposto no Chile em 1973, o general Carlos Prats e o diplomata Orlando Letelier -ambos vítimas de ataques com carros-bomba, ocorridos respectivamente em Buenos Aires e em Washington.

Por outro lado, o desaparecimento da mãe de Macarena Gelman, neta do poeta argentino Juan Gelman (1930-2014), no Uruguai, caso de grande repercussão em seu país natal, está incluído.

Da mesma forma, integram a lista os argentinos Norberto Armando Habegger, Susana Pinus e Horacio Campiglia. Eles foram capturados no Brasil durante a Contraofensiva Montonera de 1978 -nome dado à ação de reagrupamento e retorno de guerrilheiros exilados no exterior- e devolvidos a Buenos Aires.

Em entrevista à Folha, em sua casa na capital argentina, Florinda Habegger, 70, viúva de Norberto, disse que espera que o Brasil ajude na apuração do que aconteceu com o marido, desaparecido no aeroporto do Galeão, no Rio. "Norberto queria seguir os passos do padre colombiano Camilo Torres [1929-66], precursor da Teologia da Libertação. Já não era tão jovem como os outros militantes, tinha 37 anos."

Dos casos investigados agora, o maior contingente, 48, corresponde a uruguaios desaparecidos em Buenos Aires. Numa oficina mecânica de nome Automotores Orletti funcionou, entre 1976 e 1983, um centro de detenção e tortura destinado a receber prisioneiros estrangeiros e operado pelos Exércitos argentino e uruguaio.

Porque a ditadura argentina teve início em 1976 -depois, portanto, da chilena (1973), da uruguaia (1973), da boliviana (1971) e da brasileira (1964)-, o país abrigava muitos militantes refugiados.

Quando os militares chegam ao poder na Argentina, a Operação Condor já estava instalada e já tivera início a caça aos opositores dos regimes autoritários. Muitos foram parar no galpão da oficina Orletti. Os chilenos se refugiavam principalmente em Mendoza, perto da fronteira; os bolivianos, em Jujuy, no norte; e uruguaios e brasileiros, em Buenos Aires.

FBI

Com a sentença da megacausa, a ser divulgada em janeiro de 2015, espera-se a revelação de novos documentos, pedidos pela Justiça argentina ao governo norte-americano. A participação dos EUA na operação havia sido confirmada com a divulgação, nos anos 1980, de um relatório de um agente do FBI na Argentina.

No documento, elaborado pouco depois do assassinato do chileno Letelier, em 1976, o agente Robert Scherrer dizia: "Operação Condor é o nome-código para a coleta, a troca e o armazenamento de dados de inteligência a respeito dos assim chamados 'esquerdistas', comunistas e marxistas". Mais adiante, o texto afirma que que a operação envolvia a "formação de equipes especiais dos países-membros a fim de executar sanções que chegam até ao assassinato dos terroristas".

Em "Os Anos do Condor", John Dinges explica o apoio do ex-presidente Richard Nixon ao golpe contra Salvador Allende, no Chile, em 1973, e demonstra que os EUA tinham conhecimento dos planos de assassinar Letelier em solo norte-americano.

João Pina
O ex-guerrilheiro e ativista paraguaio Martín Almada, 77
O ex-guerrilheiro e ativista paraguaio Martín Almada, 77

"Nos EUA, falava-se de Condor desde o fim dos anos 1970, mas era tudo muito nebuloso. Com o tempo, o governo foi revelando documentos, mas ainda há muito para ser revelado. O Brasil também deveria trazer mais elementos à tona. Como vamos ensinar nossas crianças se não acertarmos contas com o passado?", afirma o jornalista Jon Lee Anderson.

Um dos personagens retratados no livro de João Pina é uma figura-chave na revelação desse tipo de documentos. Trata-se do advogado e ativista paraguaio Martín Almada, 77, que em 1992, após uma denúncia anônima, descobriu, nas antigas instalações de uma delegacia policial nos arredores de Assunção, o conjunto de registros que passou a ser conhecido como Arquivos do Terror.

Além de milhares de fichas de presos políticos em vários países que integravam o esquema, estavam ali a carta-convite enviada ao governo Stroessner para que participasse da reunião que instituiu a Operação Condor, em 1975, em Santiago, e uma cópia da ata da mesma sessão.

Almada havia passado três anos no campo de concentração de Emboscada, preso com militantes chilenos e argentinos. Sua primeira mulher, Celestina, morreu do coração ao receber a falsa notícia de sua morte, depois de dez dias ouvindo por telefone os sons da tortura imposta ao marido.

Pina conta que os depoimentos dos sobreviventes variam muito de país para país, mas que ele encontra em todos um traço em comum: a angústia causada pelo desconhecimento sobre o que se passou com os familiares desaparecidos.

"É claríssimo que, seja de que país sejam, o sofrimento torna-se mais horrível por nunca terem conseguido velar os seres queridos. Pude acompanhar alguns casos em que familiares conseguiram recuperar ossadas na Argentina, onde atua o extraordinário EAAF (Equipo Argentino de Antropologia Forense) e sou testemunha da mudança que causou na vida dessas pessoas o simples fato de alguém os chamar e dizer: 'Estes são os ossos do teu filho'."

O fotógrafo acrescenta, ainda, que em países "onde muito pouco se tem mexido no passado", como a Bolívia e o Brasil, "a mágoa é muito maior, sobretudo pela sensação de abandono que as vítimas têm em relação ao Estado e à sociedade civil".

Entre os personagens brasileiros do livro está Sebastião Rodrigues de Moura, mais conhecido como major Curió, que combateu a guerrilha do Araguaia. Ao fotógrafo, Curió -único repressor a falar para "Condor" - disse: "Torturar o povo foi um erro. Tínhamos de vencê-los, não que torturá-los. Erramos ao usar a força".

RETROCESSO

A expectativa dos ativistas de direitos humanos no continente é de que o julgamento na Argentina estimule outros países a abrir documentos e investigar o passado. Para Lorena Balardini, coordenadora do Centro de Estudos Legais e Sociais da Argentina, em alguns deles, houve "retrocesso", como no caso do Uruguai. No ano passado, a Corte Suprema de Justiça do país declarou inconstitucional o fim da lei de anistia, aprovado pelo Congresso em 2011. Assim, os crimes cometidos pelo Estado durante a ditadura não podem ser investigados.

O Brasil instituiu a Comissão da Verdade, em 2011, mas não prevê o fim da Lei da Anistia, de 1979. Já na Argentina, a legislação com relação aos crimes cometidos na última ditadura militar (1976-83) sofreu várias alterações.

De início, o primeiro presidente democrático, Raúl Alfonsín (1983-89), instituiu os Julgamentos das Juntas, nos quais foram condenados repressores e guerrilheiros. Sob pressão política e militar, porém, emitiu, em 1986 e 1987, as leis de Ponto Final e de Obediência Devida, que determinavam que aqueles que tivessem atuado na repressão sob ordens de superiores não deveriam ser condenados. Já o governo do peronista Carlos Menem (1989-99), com um discurso de conciliação nacional, ofereceu indultos de forma generalizada.

A chegada do também peronista Néstor Kirchner ao poder, em 2003, foi uma virada de jogo. Foram anuladas todas as leis de anistia, e os julgamentos recomeçaram, com a condenação de mais de 700 pessoas, entre elas o general Videla, que acabou morrendo na prisão no ano passado.

Em muitas ocasiões, a política governista foi chamada de "revanchista", por punir apenas os crimes de Estado, e não os cometidos pela guerrilha. A ONG Celtyv - Víctimas del Terrorismo de Argentina, comandada pela advogada Victoria Villaruel, pede indenizações para mais de 10 mil parentes de vítimas civis de ataques das guerrilhas.

O argumento do governo é que esses crimes, por terem sido cometidos por civis, já prescreveram, enquanto os cometidos pelo Estado são considerados, segundo o Estatuto de Roma, de lesa-humanidade -por isso não prescrevem.

Na semana passada, no Chile, o governo enviou ao Congresso uma proposta para derrubar a lei de anistia promulgada ao final da ditadura de Pinochet. Como Michelle Bachelet tem maioria na casa, a aprovação é tida como certa. No caso chileno, porém, a Justiça já realiza julgamentos e condenações baseada em jurisprudência.

"É obvio que a Justiça não pode se transformar em algo vingativo, e talvez o governo argentino faça propaganda desses julgamentos como se fosse uma revanche. Mas acredito que, ainda assim, os julgamentos são válidos e necessários. É hora de questionar a decisão de aceitar o que os militares disseram ao sair do poder: 'Não venham atrás de nós'", conclui Jon Lee Anderson.

SYLVIA COLOMBO, 42, é repórter especial da Folha.

JOÃO PINA, 33, fotógrafo português radicado em Buenos Aires.


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