Folha de S. Paulo


Um trecho do canto 6 da "Odisseia"

SOBRE O TEXTO A nova tradução da saga de Odisseu, a ser lançada em outubro pela Cosac Naify, valoriza aspectos de oralidade da obra de Homero, como a repetição de expressões e estruturas poéticas, e o emprego de fórmulas, como os nomes seguidos de epítetos, das quais este trecho fornece vários exemplos. A edição conta com apresentação do homerista norte-americano Richard Martin e posfácio do escritor e professor Luiz Alfredo Garcia-Roza. A imagem abaixo é uma das 26 colagens que estarão em edição especial da obra, com tiragem limitada de 2.000 exemplares.

Reprodução

Assim ele lá dormia, o muita-tenência, divino Odisseu,
dominado por sono e fadiga. E Atena
foi até a terra, a cidade dos varões feácios.
Eles antes moravam na espaçosa Hipereia,
próximo aos ciclopes, varões arrogantes,
que os lesavam, pois na força eram superiores.
De lá fê-los erguer-se o deiforme Nauveloz,
e assentou-os em Esquéria, longe de varão come-grão;
em volta puxou muro para a cidade, construiu casas,
fez templos de deuses e dividiu as glebas.
Mas ele, já subjugado pela morte, partira ao Hades,
e Alcínoo regia, versado em projetos vindos de deuses.
À sua casa foi a deusa, Atena olhos-de-coruja,
o retorno do enérgico Odisseu armando.
Foi até o quarto muito artificioso no qual uma moça
dormia, semelhante a imortais no físico e na aparência,
Nausícaa, filha do enérgico Alcínoo,
e junto duas criadas, cuja beleza vinha das Graças,
de cada lado do umbral, as brilhantes portas trancadas.
Como o sopro do vento, lançou-se à cama da moça,
parou acima da cabeça e dirigiu-lhe o discurso,
assemelhada à filha de Dimas, famoso pelas naus,
de mesma idade que ela e agradável a seu ânimo.
Semelhante a ela, disse-lhe Atena olhos-de-coruja:
"Nausícaa, como a mãe te gerou assim desleixada?
Tuas vestes lustrosas jazem descuidadas,
e tuas bodas estão perto, onde tu mesma deves belezas
trajar e as de outros providenciar, de quem te conduzir;
graças a isso, marcha entre os homens um dizer
bom, e o pai e a senhora mãe se agradam.
Vamos, temos que lavar tudo quando a aurora surgir;
contigo seguirei como ajudante, para que rápido
aprontes, pois não serás virgem por muito tempo.
Pela cidade, já te cortejam os melhores
entre todos os feácios, onde está tua própria família.
Vamos, incita o famoso pai antes da aurora
a preparar mulas e carro, para que conduza
cintos, peplos e lustrosas mantas.
Também para ti mesma será bem melhor que ir
com os pés: os poços são bem longe da cidade".
Ela, após falar assim, partiu, Atena olhos-de-coruja,
ao Olimpo, onde dizem a sede dos deuses, sempre segura,
ficar: não é sacudido por ventos, nunca por chuva
é molhado nem neve a ele se achega, mas o céu de todo
se estende sem nuvens, e acima corre branco clarão;
ali deleitam-se os deuses ditosos todos os dias.
Para lá foi a olhos-de-coruja, após instruir a moça.
Logo veio Aurora belo-trono, que a despertou,
Nausícaa belo-peplo; presto espantou-se com o sonho
e saiu pela casa para anunciar aos genitores,
e lá dentro os encontrou, ao caro pai e à mãe.
Essa, sentada junto à lareira com criadas mulheres,
volteava fios púrpura na roca; e com aquele na porta
deparou, de saída para encontrar reis renomados
no conselho, chamado por ilustres feácios.
Ela, parada bem perto, disse ao caro pai:
"Querido papai, não poderias preparar-me um carro,
alto, boas-rodas, para eu levar esplêndidas vestes
ao rio para lavar, aquelas minhas que sujas estão?
Também convém que tu, na companhia dos próceres,
planejes planos com roupas limpas sobre a pele.
E são cinco os teus filhos que vivem no palácio,
dois deles casados, três, florescentes solteiros;
eles sempre querem, com roupas recém-lavadas,
ir à arena de dança: tudo isso ocupa meu juízo".
Assim falou, com vergonha de nomear vicejantes bodas
ao caro pai; ele tudo percebeu e reagiu com o discurso:
"Não te nego as mulas, criança, ou outra coisa.
Vai; e para ti os escravos prepararão um carro,
alto, boas-rodas, equipado com a parte superior".
Isso dito, deu a ordem aos escravos, e eles obedeceram.
Eles então, fora, o carro boas-rodas com mulas
aprontavam, conduziam as mulas e jungiram ao carro;
e a moça trazia do quarto resplandecentes roupas.
Essas ela dispôs sobre o carro bem-polido.
A mãe na canastra punha iguarias deliciosas
de todo o tipo, punha alimentos e vertia vinho
em odre de cabra; e a moça embarcou no carro.
Deu-lhe fluido óleo de oliva em lécito dourado
para que se ungisse com suas criadas mulheres.
Ela pegou o chicote e as rédeas lustrosas
e chicoteou para puxarem; e as mulas faziam estrépito.
Esticavam-se sem cessar; levavam a roupa e a ela,
não sozinha, mas com ela seguiam duas criadas.
Quando alcançaram a mui bela corrente do rio,
onde as tinas eram perenes, e muita água,
bela, corre do fundo, para limpar até o bem sujo,
lá elas desatrelaram as mulas para longe do carro.
Enxotaram-nas ao longo do vertiginoso rio
para pastarem capim doce como mel; e outras, do carro,
pegavam a roupa com as mãos e levavam à água escura,
e pisoteavam-na nas tinas rápido, rivalizando.
Mas depois de lavar e limpar toda a sujeira,
em ordem estenderam-na ao longo da orla, onde o mar
ao bater na praia mais lavava pedregulhos.
Elas se banharam e ungiram à larga com óleo,
partilharam o almoço junto às margens do rio
e aguardaram a roupa secar sob os raios do sol.
Mas após as escravas e ela deleitarem-se com comida,
brincavam com a bola, tendo as fitas soltado,
e entre elas Nausícaa alvos-braços dirigia a música.
Tal vai Ártemis pelos montes, a verte-setas,
ou pelo muito elevado Taigeto ou pelo Erimanto,
deleitando-se com javalis e corças velozes.
Com ela as ninfas, filhas de Zeus porta-égide,
campestres, brincam, e no juízo se alegra Leto;
aquela mantém cabeça e fronte acima de todas,
é fácil de reconhecer, e todas são belas -
assim, entre as criadas, sobressaía a virgem indomada.
Mas quando ia de novo retornar para casa,
após jungir as mulas e dobrar as belas vestes,
teve outra ideia a deusa, Atena olhos-de-coruja:
Odisseu despertaria e veria a moça de bela face
para que ela o guiasse à cidade dos varões feácios.
A rainha então lançou a bola para uma criada;
ela errou a criada, e em fundo remoinho caiu.
Soltaram alto grito, e despertou o divino Odisseu.
Sentando-se, revolvia no juízo e no ânimo:
"Ai de mim, dessa vez atinjo a terra de que mortais?
Serão eles desmedidos, selvagens e não civilizados,
ou hospitaleiros, com mente que teme o deus?
É como se me envolvesse feminina gritaria de moças,
de ninfas, que habitam escarpados cumes de montes,
fontes de rios e campos forrageiros;
talvez esteja perto de homens dotados de fala.
Pois bem, eu mesmo vou verificar e ver".
Isso dito, dos arbustos emergiu o divino Odisseu,
e do bosque cerrado quebrou, com mão encorpada, ramo
folheado, para no corpo proteger as vergonhas de homem.
Foi como leão da montanha, confiante na bravura,
que vem castigado por chuva, vento, e seus olhos
faíscam. Mas ele vai para o meio de bois e ovelhas
ou atrás de corças selvagens; ordena-lhe o estômago
que, para testar as ovelhas, vá a uma casa protetora -
assim ia Odisseu às moças belas-tranças
unir-se, embora nu: a necessidade o atingiu.

HOMERO (séc. 8 a.C.) poeta grego a quem se atribui a autoria de "Ilíada" e "Odisseia".

CHRISTIAN WERNER, 43, professor livre-docente de língua e literatura grega da USP, dedica-se à poesia helênica e a Guimarães Rosa.

ODIRES MLÁSZHO, 54, é artista plástico. Participa até 30/12 da exposição "Fronteiras Incertas: Arte e Fotografia no Acervo MAC USP", na unidade Ibirapuera do museu.


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