Folha de S. Paulo


Todos os títulos e os muitos nomes de Spinoza

RESUMO A obra do filósofo holandês Spinoza (1632-77), embora considerada seminal para a modernidade, não estava integralmente disponível naquela que era a língua de sua família: o português. Lançamentos recentes cobrem essa brecha e jogam luz sobre o estudioso excomungado da comunidade judaica por suas ideias.

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"Maldito seja de dia e maldito seja de noite, maldito seja seu levantar e maldito seja seu deitar, maldito ele em seu sair e maldito ele em seu entrar." Foi com essas palavras que um homem de 24 anos foi expulso da comunidade judaica de Amsterdã, no ano de 1656. Em 1674, os Estados Gerais da Holanda proibiriam a impressão de seu livro "Tratado Teológico-Político", considerado "blasfematório e pernicioso para a alma", e, quatro anos mais tarde, vetariam a divulgação de sua obra póstuma.

Benedictus de Spinoza, como assinou suas obras em latim, ou Baruch de Espinosa ou Baruch Spinoza, como aparece em documentos oficiais (1632-77), foi, por muitos anos, considerado subversivo por suas teses filosóficas, que incluem a identidade entre Deus e natureza, a negação do livre-arbítrio do homem e uma concepção de religião que dispensa templos, cerimônias e teologias. Hoje, é considerado um dos inauguradores do pensamento moderno, junto a nomes como René Descartes e Thomas Hobbes.

Até este ano, porém, o leitor brasileiro não dispunha de uma tradução das obras completas de Spinoza na íntegra. A edição em quatro volumes da editora Perspectiva vem preencher esta lacuna. O projeto foi organizado pelo editor Jacó Guinsburg e pelo jornalista Newton Cunha -que também traduziram os livros- em conjunto com o professor de filosofia da Unicamp Roberto Romano.

A coleção traz, no primeiro volume, o "(Breve) Tratado de Deus, do Homem e de sua Felicidade", "Princípios da Filosofia Cartesiana", "Pensamentos Metafísicos", "Tratado da Correção do Intelecto" e o "Tratado Político" [R$ 75, 488 págs.] e publica pela primeira vez a correspondência completa de Spinoza, acompanhada da primeira biografia do filósofo -"A Vida de Barukh de Spinoza" (1705), de Johannes Colerus [R$ 69, 392 págs.], no segundo tomo da série.

O terceiro volume é dedicado ao "Tratado Teológico-Político" [R$ 69, 394 págs.] e o quarto, que deve sair ainda neste mês, contempla a "Ética" e, também pela primeira vez em português, o "Compêndio de Gramática da Língua Hebraica", traduzida por Jacó e sua mulher, Gita Guinsburg.

Além da Perspectiva, a editora Autêntica conta, desde 2011, com a Série Espinosana, que pretende lançar, separadamente, todas as obras do filósofo, sob coordenação do professor de filosofia da USP Homero Santiago, de Ericka Marie Itokazu, professora da Unirio, e de André Menezes Rocha, doutor em filosofia pela USP.

A coleção, que também publica ensaios sobre o filósofo, conta, por ora, com dois títulos: "A Unidade do Corpo e da Mente - Afetos, Ações e Paixões em Espinosa" [trad. Luis César Guimarães Oliva e Marcus Ferreira de Paula, R$ 39, 208 págs.], da professora francesa Chantal Jaquet, e "Breve Tratado de Deus, do Homem e do seu Bem-estar" [trad. Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Luis César Guimarães Oliva, R$ 47, 176 págs.], lançado em 2012, a primeira tradução desse texto de Spinoza para a língua portuguesa.

GEÔMETRAS

A Edusp, por sua vez, deve lançar até o fim do ano uma nova tradução da "Ética" (cujo nome completo é "Ética Demonstrada à Maneira dos Geômetras"), feita pelo Grupo de Estudos Espinosanos, sob coordenação da professora de filosofia da USP Marilena Chaui. Essa tradução começou a ser feita nos anos 1990 como uma forma de aprofundar as pesquisas do grupo, e sua edição terá projeto gráfico semelhante ao da edição original, de 1677, na qual se evidencia graficamente a divisão do livro em proposições, demonstrações e escólios (comentários ou explicações de uma proposição).

"Spinoza era um homem muito ligado em ciência, na época dele a geometria era, e ainda é, o exemplo máximo da racionalidade. Aquela forma que Euclides adotou de dizer explicitamente quais são os princípios e estabelecer nexos lógicos depois se transformou numa referência do que é uma obra científica, do que é uma explicitação racional do pensamento. Ele não esconde a sua maneira de evoluir e, muito inspirado em Descartes, estabelece um raciocínio matemático na 'Ética'", afirma o editor César Benjamin.

Ele organizou e publicou recentemente por sua editora, a Contraponto, o volume "Estudos sobre Spinoza" [trad. Eliana Aguiar, Estela dos Santos Abreu e Vera Ribeiro, R$ 82, 372 págs.], que reúne quatro ensaios de estudiosos estrangeiros e consagrados, como o francês Léon Brunschvicg (1869-1944), sobre a obra do filósofo.

Para o professor Homero Santiago, autor de "Espinosa e o Cartesianismo" (Humanitas, 2004), é surpreendente que o português não contasse com uma tradução das obras completas de Spinoza, à diferença do que já acontecia com idiomas como o francês, o inglês, o alemão e o italiano.

Por outro lado, Santiago chama a atenção para um efeito sanfona no interesse pelo filósofo. Ainda que tenha sido constantemente uma referência para grandes pensadores, desde sua morte, no século 17, ele ficou centenas de anos sem reedições importantes. "Ele se tornou quase um espectro sobre a Europa e apenas no século 19 foi republicado, na Alemanha", diz.

"A discussão que há em Spinoza é válida; é a discussão sobre a liberdade humana, sobre os limites da intervenção do Estado, sobre as obrigações entre Estado e cidadão, e, sobretudo, sobre a liberdade de opinião", diz Jacó Guinsburg, editor e fundador da Perspectiva, em seu escritório, cercado por prateleiras contendo os livros que vem publicando desde 1965.

MAIO DE 68

Foi no bojo do movimento francês de Maio de 68 que se retomou de vez a obra do filósofo excomungado de sua comunidade, intelectual judeu de origem portuguesa cuja família fugia da Inquisição. Na França dos anos 1960 foram publicados dois importantes estudos sobre Spinoza. Um foi a obra em dois volumes de Martial Gueroult (1891-1976), professor do Collège de France que chegou a dar aulas no Brasil nos anos 1940 e 1950, e o outro, o de Gilles Deleuze, "Spinoza e o Problema da Expressão", sua tese secundária de doutorado, defendida em 68 -a primeira deu origem ao livro "Diferença e Repetição", obra fundamental do filósofo.

A interpretação de Deleuze "conecta Spinoza a toda a movimentação política, de transformação social do Maio de 68 francês", explica Santiago. A partir daí, os estudos spinozianos ganham ímpeto. "Embora seja um clássico do século 17, ele é um dos filósofos mais em evidência hoje, não só no campo da filosofia mas no das humanidades em geral. Desde a década de 1960 houve um renascimento que só tem se intensificado nos últimos anos."

Nas décadas de 1970 e 1980, estudos fortaleceriam o vínculo entre o filósofo e a política e, recentemente, o influente filósofo marxista italiano Antonio Negri se declararia spinoziano. "Até mais", diz Santiago: "Ele propõe que hoje deve-se ler Marx sob as lentes spinozianas".

"A defesa que Spinoza faz da liberdade de consciência e de expressão é muito atual. Como o Estado não pode alterar consciências, ele não tem que legislar sobre consciências", diz Benjamin.

Para ele, outro aspecto da obra de Spinoza a colocá-lo entre os precursores do moderno é a questão da individualidade. "Em sua época não existia a ideia de indivíduo, cada um pertencia a um grupo e tinha suas qualidades, por meio do qual fazia a mediação com o Estado". Isolado de seu grupo pela excomunhão, Spinoza introduz a questão do indivíduo em sua obra. "Ele é um precursor, o mundo moderno já estava nascendo, e ele, tanto pela obra quanto pela vida, é o precursor dessa modernidade", opina o editor.

LENTE

Spinoza, que se estabelecera como artesão de lentes, recusou o convite para lecionar na universidade alemã de Heidelberg porque, segundo ele, não sabia quanto o fato de ensinar limitaria a liberdade que a instituição lhe havia prometido. No "Tratado Político" o filósofo defende que, em uma república livre, deve haver licença para ensinar publicamente, mas não a expensas do Estado. Spinoza não virou professor e não cuidou dos negócios de produtos orientais da família: passou a vida polindo instrumentos ópticos.

"Ele era um intelectual naquilo que de mais puro podemos pensar: não ter comprometimentos de outra ordem", diz Guinsburg.

"Spinoza se volta para a política como uma maneira de lidar com a multidão, uma forma de fazer avançar o processo civilizatório sem exigir que todas as pessoas sejam intelectuais", explica César Benjamin. Segundo Roberto Romano, nos livros do filósofo é perene a confiança na política, e o "exame cauteloso dos textos" deixa claro por que Spinoza e seus seguidores foram alvo de "tantos ataques, excomunhões e vetos". "Ler Spinoza ajuda a pensar o Estado e a sociedade, sobretudo em suas gravíssimas crises institucionais de hoje. Quem deseja uma vida democrática e livre não se afasta de Spinoza", frisa.

DEUS

Em 1999, Marilena Chaui, maior estudiosa de Spinoza no Brasil, foi entrevistada no programa "Roda Viva", da TV Cultura. Na ocasião, lançava seu imponente estudo sobre o filósofo, "A Nervura do Real" [Companhia das Letras, R$ 104, 1.240 págs.]. O apresentador Paulo Markun perguntou-lhe se acreditava em Deus. Sua resposta causou frisson: "Eu conheço Deus, eu não acredito nele". E explicou, à moda de Spinoza: "Conhecê-lo é exercer o trabalho do pensamento na direção de conhecer a estrutura do universo e seu modo de realização".

Para Spinoza há uma identidade entre Deus e natureza ("Deus sive Natura"). Ao longo do tempo, essa identificação foi vista de diferentes formas: no século 17, foi considerada como ateísmo; no Iluminismo, como religião natural; e, finalmente, no romantismo, como misticismo panteísta. Mas o que Spinoza nega, ao afirmar tal identidade, é um Deus onisciente e onipotente que age com vistas a um fim -visão que, segundo ele, seria a da religião supersticiosa, fundada no medo e na esperança irracionais. Na filosofia spinoziana, o real como um todo pode ser conhecido pelo intelecto humano, e é a ignorância que leva o homem a forjar a imagem de um Deus supremo e todo-poderoso.

Além disso, a liberdade do homem não está em seu livre-arbítrio, mas em fazer parte da natureza, sendo capaz de agir e pensar por si. "Spinoza, assim como Giordano Bruno e Montaigne, Descartes ou Leibniz, é um pensador que volta a estabelecer a importância e a necessidade da filosofia e da liberdade de pensar, ajudando a criação do mundo moderno, ao separar o que diz respeito à crença e à fé daquilo que a razão é capaz de perceber e formular. Em resumo, ao declarar que a verdade é uma busca honesta, uma livre inquirição, não um dogma religioso", complementa Newton Cunha.

"Somos parte de um todo, e não um ser especial, e só a nós cabe construir uma vida em comum, para além e mesmo contra os impulsos e os afetos inevitáveis da natureza, âmbito no qual não há nem o bem nem o mal. A maior alegria do homem é o conhecimento que ele constrói", conclui o tradutor.

ÚRSULA PASSOS, 27, é redatora da "Ilustríssima".


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