Folha de S. Paulo


A crônica do primeiro plano de fuga de Pizzolato

SOBRE O TEXTO O trecho abaixo é parte do livro "Pizzolato - Não Existe Plano Infalível", que será lançado pela LeYa neste mês e que refaz os principais passos do único mensaleiro que tentou fugir da condenação. A narrativa revela que ele pensou em simular a própria morte, antes de decidir ressuscitar o irmão Celso, morto em 1978.

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Era uma sexta-feira pós-feriado, daquelas em que as ruas estão mais vazias e as pessoas parecem ter menos pressa, quando Henrique Pizzolato entrou num cartório no centro do Rio de Janeiro decidido a falar de seu próprio fim. Naquele 24 de abril de 2009, ele levou alguns documentos pessoais, dois amigos a tiracolo e a disposição de formalizar seus desejos póstumos. Tinha na cabeça a lista de últimas vontades, elaborada dias antes, quando um amigo de longa data havia sentenciado:

"Pizzolato, só tem um jeito: tu vai morrer".

Não se tratava de uma ameaça, apesar da maneira firme, quase autoritária, com que as palavras foram ditas. Era só mais um plano mirabolante dentre vários que foram pensados em momentos de desespero pela situação de Pizzolato.

Tudo saiu da desordenada imaginação de Alexandre Cesar Costa Teixeira, um companheiro de Pizzolato do Banco do Brasil desde os tempos em que ambos eram sindicalistas atuantes. Dono de um vozeirão alguns decibéis acima da média, com pensamentos eloquentes e temperamento explosivo, não é de espantar que o corpulento Alexandre também atenda pelo apelido de Terremoto. Ou "Teremoto", com som de apenas um "r", como pronunciado por Pizzolato e seus conterrâneos de Santa Catarina descendentes de italianos.

A ideia era radical, como o próprio Terremoto definiu, e assumiu um caráter bastante ousado. Consistia em simular a morte de Pizzolato, para que ele "sumisse" em caso de condenação e prisão. Viveria para sempre clandestino. Apenas uma pessoa saberia onde estaria escondido, e o visitaria somente de tempos em tempos.

O COMEÇO

Quando o plano em questão surgiu, em 2009, a situação do ex-diretor de marketing do Banco do Brasil, Henrique Pizzolato, parecia estável na Justiça. Ele já tinha ido ao inferno três anos antes, quando fora transformado em um dos principais alvos da CPI dos Correios no Congresso Nacional. Também já fora réu no Supremo Tribunal Federal, onde se defendera e assistira ao lento tramitar do processo. Ainda não havia data marcada para o julgamento do escândalo do mensalão quando cogitaram a morte dele.

O próprio Pizzolato se surpreendeu com a ideia do amigo. A primeira reação foi perguntar se Terremoto estava maluco. Terremoto não hesitou. Ao contrário, insistiu e disse que o plano era duro e seria necessário "morrer" para todos, inclusive para o pai, as irmãs e os sobrinhos. Era preciso se preparar para fazer a família chorar sua morte e se afastar de tudo e de todos, a fim de que ressuscitasse como clandestino. Na cabeça de Terremoto, o amigo se esconderia por uns 20 anos em um canto qualquer do Brasil, sem falar com nenhum parente ou amigo, apenas com visitas semestrais da mulher. De que forma ele morreria, não sabia.

Diante da assertiva de Terremoto de que o jeito era mesmo morrer para o mundo e se livrar das consequências mais drásticas do julgamento do mensalão, Pizzolato quis saber como fariam. A explicação veio de pronto:
"O primeiro passo é fazer uma escritura. Tu faz um testamento", detalhou o amigo.

Quando narrou ao tabelião do cartório suas últimas vontades antes de morrer, Pizzolato estava acompanhado de duas testemunhas: o próprio Terremoto e a mulher do amigo, Marta Alfonço Teixeira, a Martinha. Eles assinaram embaixo quanto à primeira parte do plano, que consistia no testamento.

O cartório onde Pizzolato foi naquela sexta-feira havia se mudado da sobreloja no burburinho do centro do Rio para um prédio comercial na Barra da Tijuca. Deixou o coração da Cinelândia, com suas ruas estreitas, algumas exclusivas para pedestres, e prédios históricos, e foi para a larga e longa Avenida das Américas, num centro comercial modesto, comparado aos enormes condomínios e luxuosos shoppings que brotam a cada dia na Barra. Mas o testamento público de conteúdo pouco usual continua válido e arquivado no 19º Ofício de Notas do Rio de Janeiro. Pelos termos do documento de três páginas e seis itens, Pizzolato dispensou enterro, tristeza e luto para conseguir manter sua morte praticamente sob sigilo.

ÚLTIMOS DESEJOS

Ele foi explícito ao pedir que não fossem realizados "velório, homenagem, celebração nem missa de sétimo dia", desejos pouco usuais para um católico fervoroso, ex-seminarista e colecionador de imagens de São Francisco de Assis. A lista de pedidos do quinto item do testamento é ainda mais extensa. Pizzolato não queria "nenhuma divulgação, comunicado ou anúncio do seu falecimento". E registra o motivo: "Pois não deseja que pessoas fiquem tristes e enlutadas".

Nem mesmo seu santo favorito, que abdicou de tanta coisa na vida, abriu mão de ser enterrado. Giovanni di Pietro di Bernardone, depois de uma adolescência profana, optou por uma vida religiosa dedicada à pobreza e passou a ser conhecido como Francisco de Assis. Adepto à pregação itinerante, abriu mão dos mosteiros e se juntou aos mais pobres. Morreu aos 44 anos. Teve o corpo examinado por muitas testemunhas antes de ser sepultado, inicialmente, na igreja de São Jorge. Poucos anos depois, foi canonizado pelo papa Gregório 9. Ficou conhecido como santo dos animais e do meio ambiente. Nos anos 1230, foi construída uma basílica para guardar seu túmulo definitivo e, desde então, é possível visitar suas relíquias.

No caso da morte de Pizzolato, não deveria haver túmulo nem vela. Além do testamento, Terremoto também o ajudou a pensar numa solução para sumir com o corpo e, assim, despistar qualquer um que tentasse investigar futuramente a morte abrupta do ex-diretor de marketing do Banco do Brasil. Registraram entre as últimas vontades de Pizzolato que seu corpo fosse cremado "o mais rápido possível, e suas cinzas [...], jogadas no mar".

BASE DO FUTURO

O passado e o presente de Vitalino Venanci com Pizzolato acabaram por ser a base do futuro do ex-diretor de marketing do Banco do Brasil. Amigo dos tempos de faculdade e do início de carreira na instituição financeira, ele fora escolhido para revelar os últimos desejos gravados no testamento. Como inventariante e testamenteiro, Pizzolato tinha o poder de escolher quem quisesse para ajudá-lo depois da morte. E colocou Venanci para executar essa parte do plano.

Aliado fiel, Vitalino sempre esteve ao lado de Pizzolato. Fora parceiro no banco, havia dividido apartamento na juventude, montado sindicatos e cooperativas e, nos últimos tempos, mudara-se para a casa do amigo para oferecer apoio incondicional. Ao longo do tempo, colecionou confissões e foi depositário de muitos segredos.

Para não levantar suspeitas, o testamento também continha desejos típicos, como o destino dos bens de Pizzolato, que seriam todos repassados para o nome da mulher dele, a arquiteta Andréa Eunice Haas, com quem vivia desde 1980.

Temendo o confisco dos bens pela Justiça, Pizzolato já havia se desfeito, ao menos no papel, da maior parte de seus imóveis.

No Rio, o único ainda em seu nome era uma cobertura na rua Domingos Ferreira, a uma quadra da praia de Copacabana, perto do Posto 3 -avaliada hoje em mais de R$ 3 milhões, graças à explosão do mercado imobiliário carioca, que turbinou os preços. Além desse apartamento, Andréa teria direito às duas aposentadorias do marido, a da Previ (o fundo de previdência dos funcionários do Banco do Brasil) e a do INSS. No testamento, Pizzolato também deixara para a mulher a parte que lhe cabia da herança do pai, caso esse morresse depois dele.

DESAPARECIMENTO

Terremoto estava disposto a arrumar a papelada necessária para o amigo desaparecer. Pensou em quase tudo, por isso escolheu um feriado prolongado, daqueles em que a cidade vazia parece funcionar em câmera lenta. Durante a elaboração do plano, cogitou a criação de uma identidade nova para Pizzolato, mas disse não ter levado a ideia adiante. Faltou imaginar, por exemplo, como driblaria a burocracia para ter um atestado de óbito falso e simular a cremação. "Não tinha nada construído; era uma ideia. Mas o primeiro passo a gente deu, que era a escritura", diz, rindo da própria maluquice.

O plano de matar Pizzolato, assim, de mentira, não vingou. Para Terremoto, que disse ter imposto condições terroristas de isolamento para seu plano dar certo, o casal jamais conseguiria se separar por muito tempo. Seis anos depois de registrar em cartório os desejos póstumos do amigo, ele próprio admite que simular a morte de Pizzolato para evitar a prisão foi uma ideia muito, muito louca.

FERNANDA ODILLA, 35, é repórter da Folha em Brasília.


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