Folha de S. Paulo


Arquivo Aberto - No ateliê de Balthus

Paris, 1952

Em 1952, em meados de novembro, passei alguns dias em Paris, quando fui levado pelas espirituosas mãos de Marianne Peretti ao ateliê de Balthus. Embora estivesse nos esperando, pois fora marcado um encontro com antecedência, quando nós nos anunciamos, o seu desespero por ser incomodado foi demasiado evidente, estava escrito em sua face, no seu sorriso amarelo de "boas-vindas", nos seus olhos perscrutadores, por instantes, toldados pela nossa quase grosseira intrujice.

Uma vez no interior do ateliê, que não era tão espaçoso como eu pensava -talvez até um pouco menor do que aquele de Picabia, utilizado por mim em 1951- pude me certificar de todos os meus temores: ele, de fato, pintava uma enorme tela que se encontrava no cavalete bem no centro da sala. Inúmeros tubos de tintas e, sobretudo, latas contendo cores, algumas delas entreabertas, estavam espalhadas no chão, junto às paredes e na base do cavalete.

Para agravar ainda mais a situação, uma moça fazia companhia ao pintor e devia, sem dúvida alguma, ser o modelo do quadro. À nossa entrada, logo sentou-se nas bordas da janela do ateliê e dali não arredou o pé, até sairmos. Como não podia deixar de ser, era uma adolescente como tantas outras que Balthus já utilizara como modelo. Ela era "um Balthus" até a medula. Perturbadoramente balthusiana, como se houvesse saltado daquele quadro momentos antes de chegarmos e, às pressas, se recomposto.

Pirozzi/Akg-images/Latinstock
O quadro
O quadro "O Quarto" (1952), de Balthus, que Brennand viu sendo pintado pelo artista francês

Na grande tela de mais de três metros e quase outro tanto de altura -portanto, no seu tamanho natural- a moça permanecia nua. O seu corpo sagrado, banhado por uma luz sofregamente dourada, era o de alguém que se acumpliciara com os deuses para possuir e revelar uma beleza impossível. De resto, uma pergunta se impunha desde os primeiros instantes dessa muda contemplação ou contemplações, pois éramos agora quatro os que olhavam o enigma quase metafísico dessa cena. Quem é, e o que representa esta hedionda figura que afasta (ou fecha?) com violência e determinação as cortinas daquela alcova onde jaz, inerme, a Bela Adormecida? O próprio Balthus, travestido de um gnomo que tudo pode ousar, desde que estes seres sagrados presidem o que a terra contém.

Ao descermos as escadas do ateliê, Marianne e eu, não sei por que pressenti que o pintor, logo ao fechar a porta nas nossas costas, teria pronunciado um sonoro palavrão. De minha parte, imaginei: será que Balthus ainda conseguiria retomar a pose interrompida?

Balthus era um dos artistas mais cultos de nossa época e esse seu saber erudito, jamais traduzido por palavras, laboriosamente conquistado e finalmente transposto em termos plásticos (com requintes de perfeição), está cravado no coração de suas pinturas e só delas emana. Ele soube cumprir com dignidade o longo silêncio que se impôs. Nem uma só queixa, nem uma só tentativa de explicar aquilo que suas imagens traduzem (ou escondem), eloquentemente, repetidamente, apaixonadamente. Múltiplo, ardiloso, secreto, às vezes até irascível. Guardou, como poucos artistas contemporâneos souberam guardar, o avesso de suas conquistas mais solenes.

Faz-se necessário desabotoar-lhe as vestimentas para saber quais as cores que secretamente mantém por dentro. Nenhum exibicionismo. Um pintor secreto. Um cavalheiro polonês que se diz nobre e poderia, se assim o quisesse, atender pelo nome de conde. Na sua juventude, segundo declara James Thrall Soby (1906-79), um dos seus mais autorizados críticos fora da França, Balthus passou bastante tempo visitando a Inglaterra, e uma de suas avós era uma Gordon, da Escócia, de alguma maneira relacionada ancestralmente a Lord Byron.

Mais uma vez compreenda-se a complexidade de um espírito propenso romanticamente à melancolia. Suas múltiplas influências, algumas capitulares e reprodutivas, outras apenas circunstanciais. Seus pendores literários jamais confessados. O empenho com que tratou das ilustrações do romance de Emily Brontë, "O Morro dos Ventos Uivantes", chegando a travestir-se de Heathcliff, mostrando-se a si próprio, apreciando Catherine no seu quarto de vestir, num quadro que ele chamou de "La Toilette de Cathy" (1933).

Recentemente descobri que a moça que servira como modelo para o quadro ainda inacabado -chamado "O Quarto"- era Laurence Bataille, filha do grande escritor francês Georges Bataille.

Quando de minha visita ao ateliê de Balthus, a mãe de Laurence, Sylvia, estava havia muito divorciada de Bataille e se casara com o famoso psiquiatra francês Jacques Lacan. No ano seguinte, Balthus trocaria Paris pelo castelo de Chassy, na Borgonha.

FRANCISCO BRENNAND, 87, é ceramista e artista plástico pernambucano. O texto aqui publicado é um trecho editado do livro inédito "Diário de Francisco Brennand".


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