Folha de S. Paulo


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Elias da Silva, 55. "Estou há 1 ano e 2 meses, acusado de tráfico. Me levaram no fórum duas vezes, mas as audiências foram canceladas. Sou viúvo. Meus 6 filhos tão lá fora." Quem cuida deles? "Deus." Outro pede a palavra, Denide Jr. Cardoso, 20 e poucos anos. "Sou preso condenado a 19 anos por furto e roubo. Cumpri quase 5. Há 4 meses nessa unidade. Poxa, sou preso condenado, não posso dar um abraço no meu filho porque esta cadeia é de preso provisório."

Motivo de orgulho do governo do Espírito Santo, o Centro de Detenção Provisória de Viana 2 é uma prisão moderna, cópia de unidades americanas. Segue determinações do Depen (Departamento Penitenciário Nacional). Inaugurada há quatro anos para receber presos provisórios, que ainda não tenham sido julgados, já está superlotada, inclusive de condenados. É um exemplo da velocidade com que se constrói presídios e se prende no Brasil. Entre as principais causas do superencarceramento está uma série de leis rígidas, aprovadas a partir de 1990.

A 1.200 km dali, senadores se preparam para votar, em Brasília, o projeto de novo Código Penal, em gestação no Senado desde 2012, com leis que podem tornar a vida desses presos ainda mais difícil. O senador Vital do Rêgo (PMDB-PB), atual relator do projeto, que ainda pode receber emendas, espera votá-lo em plenário neste semestre.

Em dezembro passado, o projeto elaborado por um grupo de juristas sofreu modificações e foi aprovado pela Comissão Temporária de Reforma do Código Penal, de onde seguiu para análise na CCJ (Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania), composta pelos mesmos senadores da Comissão Temporária. Se não houver surpresas, os fundamentos do futuro código estão postos. O senador Pedro Taques (PDT-MT), relator da Comissão Temporária e membro da CCJ, explica em seu relatório que se impõe "ao Estado (no caso, ao Poder Legislativo) o dever de legislar no sentido de evitar a impunidade dos agentes criminosos, situação que, especialmente em dias atuais, tem levado à descrença do povo quanto à efetividade do sistema vigente".

O objetivo da proposta é reduzir a criminalidade, ao tornar a legislação mais austera. Se aprovada, vai à Câmara. O jurista e ex-ministro da Justiça Miguel Reale Júnior, preocupado com o aumento no encarceramento, critica o projeto. "É uma bomba-relógio que estoura o sistema penitenciário".

Um dos aspectos que tornam a proposta tão dura é a coleção de obstáculos à progressão de pena. Vai ficar difícil e demorada a passagem de um preso do regime fechado para o semiaberto, do semiaberto ao aberto e, então, à liberdade, o que elevará a população carcerária. Pode inviabilizar o sistema progressivo -criado para estimular o bom comportamento do preso com a ideia da passagem para regimes mais brandos, além de prepará-lo de maneira gradual para a vida do lado de fora.

O defensor público Patrick Cacicedo, coordenador do Núcleo de Situação Carcerário da Defensoria de São Paulo, explica que "o coração [do novo código] está na parte geral, aquela que diz como vai ser aplicada a pena, como vai ser a progressão. Nessa parte o endurecimento foi absurdo".

A proposta aumenta o tempo de progressão de quase todos os crimes. Atualmente, com exceção de delitos hediondos ou equiparados, a legislação estabelece, como regra geral, que o encarcerado cumpra um sexto da pena (pouco menos de 17%) antes de seguir para o próximo regime, independentemente de ser réu primário ou reincidente. Se tiver bom comportamento, um condenado, por exemplo, ao cumprir um sexto no fechado, tem direito de subir para o semiaberto, onde cumpre mais um sexto do que resta da pena, para progredir ao aberto, onde passa mais um sexto do que falta, para ganhar a liberdade.

Willian Silva, desembargador e presidente da Comissão de Enfrentamento e Prevenção à Tortura do Tribunal de Justiça do Espírito Santo, que contribuiu no projeto como consultor, defende a mudança. "Por causa do atual sistema progressivo, o sujeito sabe que, se condenado a 12 anos, não vai ficar 12, vai ficar dois, um sexto. E se for um crime hediondo, vai ficar no máximo quatro anos." Pedro Taques acrescenta: "O fato é que o patamar de um sexto tem gerado -de forma uníssona e reiterada- o reconhecimento da total sensação de impunidade (e nem estamos aqui enfrentando o problema decorrente do alargamento cada vez mais constante dos benefícios relacionados com os indultos natalinos)".

Os senadores extinguiram no projeto a fração de um sexto (17%), menos dura. Pelo texto aprovado na Comissão Temporária, o período mínimo para progredir passa a ser 25%, um quarto da pena, e vale apenas para quem não reincidir em crimes dolosos. Se reincidente em delinqüência dolosa e/ou se o crime for cometido com violência ou grave ameaça, a fração é maior, um terço (33%).

HOMICÍDIOS

Apesar do endurecimento das leis nos últimos anos, enquanto a taxa de homicídios se estabilizou ou caiu na maior parte do mundo, na América Latina e no Caribe subiu 11%, de 2000 a 2010, segundo o Relatório Regional de Desenvolvimento Humano de 2013-2014/ PNUD. O mesmo documento diz que um em cada três latino-americanos lidou, em 2012, com algum crime violento. Mais de 30% dos homicídios ocorrem na América Latina. O uso de políticas duras para reduzir a criminalidade é então criticado pela ONU. O chileno Heraldo Muñoz, hoje ministro das Relações Exteriores em seu país, quando subsecretário geral da entidade escreveu que sociedades mergulhadas em brutalidade adotam "políticas míopes, de mão dura, que provaram ineficazes."

Pedro Taques afirma em seu relato que o projeto "representa um avanço" em relação ao código vigente, por atualizar à sociedade de agora uma legislação criada em 1940 e reformada em 1984. "A pena no direito penal moderno continua sendo uma resposta a uma necessidade de vingança, uma reação passional, apesar de, hoje, de intensidade graduada em relação aos séculos passados. O ato criminoso viola sentimentos comuns à grande média dos indivíduos da mesma sociedade", afirma o senador.

O juiz Marcelo Loureiro, coordenador do mutirão carcerário do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), não vê eficácia em um código austero. "O tamanho da pena importa pouco na vontade do agente. Aquele que pratica o crime acredita que não será punido. O Estado precisa acabar com a impunidade, e não se preocupar em aumentar penas."

O esforço do Mutirão Carcerário não acompanha a velocidade do aprisionamento. Desde 2008, o mutirão analisou 400 mil processos e concedeu mais de 80 mil benefícios, como progressão de pena e direito a trabalho externo, além de libertar 45 mil que haviam cumprido pena mas continuavam encarcerados. Uma prisão superlotada não recupera ninguém, observa Loureiro. "É importante que o Estado dê um tratamento correto para que essa pessoa retorne ao convívio social."

O aumento no ritmo da construção não suficiente. Em 1994, eram 511 unidades (Instituto de pesquisas Avante Brasil); em 2012, 1.478 (Depen). No ano passado, no entanto, 550 mil presos se espremiam em 309 mil vagas (Depen). Neste ano, 567,6 mil ocupam 357,2 mil vagas (CNJ). O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, afirmou que preferiria morrer a cumprir pena nos presídios brasileiros, que chamou de "masmorras medievais".

O deputado Marcelo Freixo (PSOL-RJ), presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do RJ, conhece as irregularidades. "Entro em prisões há mais de 20 anos, desde que dava aula em cadeias. Colocamos lá quem queremos esquecer. Se a lei é cumprida ou não, pouco importa. O grande problema no Brasil é a confusão entre justiça e vingança."

Segundo Roy Wamsley, do anuário online World Prison Brief, nas últimas duas décadas o crescimento da população carcerária brasileira só foi superado pelo do Camboja, que passou de 1.981, em 1994, para 15.404, em 2011, um aumento de mais de 700%.

CAOS

É notória a situação de caos no sistema carcerário brasileiro, que registra com frequência greves de agentes, decapitações e presídios comandados por presos. Em Pedrinhas (MA), desde o ano passado foram mais de 60 homicídios. Na penitenciária de Alcaçuz (RN), em 2012, outros 20 mortos. Em Presidente Venceslau (SP), cinco foram decapitados em 30 horas de rebelião em 2005. No Urso Branco (RO), mais 27 mortos e mais decapitações, em 2002. Mais de 200 presos morreram de janeiro de 2013 até hoje em 24 Estados (Alagoas, Bahia e Rondônia não informaram os números à Folha). Assim como em Rondônia, Rio Grande do Norte e São Paulo, o governo do Maranhão prometeu resolver o problema construindo unidades modernas como Viana (ES).

O complexo capixaba, inaugurado em 2010, com seis unidades, tenta deixar para trás outro palco de horrores. A nova prisão foi construída sobre os alicerces da antiga Casa de Custódia de Viana, onde, a partir de 2004, houve vários assassinatos e ao menos dez esquartejamentos -o último deles em 12 de março de 2009, quando um jovem de 23 anos morreu no dia em que entrou. Naquele ano, a Casa de Custódia atingiu superlotação máxima, 1.213 homens onde cabiam 360, segundo o Conselho Estadual de Direitos Humanos. Assim como hoje em Pedrinhas e em outras detenções superlotadas, o presídio capixaba era controlado internamente pelos presos. Agentes penitenciários vigiavam, do lado de fora, os pavilhões.

Em 2013, a nova Viana já estava superlotada, abrigando 1.284 presos em 864 vagas. Pelo ritmo do encarceramento no Estado, a cada quatro meses seria necessária uma unidade com 400 vagas.

A princípio, o futuro código não afetará processos antigos. Por isso, a consequência sobre o ritmo do encareceramento será sentida de maneira gradativa. O secretário de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça, Marivaldo de Castro Pereira, afirmou, baseado em um estudo preliminar, que o número de presos, com as leis rigorosas do projeto do Senado, deve subir. "Pode haver aumento do contingente entre 45% e 87%."

TRANCA PAGA

Trancafiado no Centro de Detenção de Viena, Fábio Martins, 31, reincidente em crime doloso, foi condenado a oito anos em regime fechado por furto qualificado. Pelo código atual, teria direito de progredir ao semiberto após um ano e quatro meses, um sexto da pena. Se fosse condenado na vigência do projeto do Senado, o detento precisaria cumprir um terço, ou seja, dois anos, antes de pedir pela progressão. De qualquer maneira, a Justiça é lenta e, mesmo tendo direito, Fábio segue no fechado. "Paguei minha tranca. Pode perguntar à direção [do presídio], sou preso de boa conduta. Não sei por que estou aqui." Na época dessa entrevista, ele estava há dois anos e cinco meses, mas continua a dividir uma das celas, de 12 m², construída para quatro pessoas, com outras seis. Aqueles que não dormem nas camas se ajeitam no chão. Ao fundo, uma pia e privada de metal. Do lado de fora, chuveiros para um banho de 90 segundos.

São sete galerias, seis delas com dois andares. As três maiores têm 48 celas. Os exaustores não dão conta do calor no verão. O prédio de concreto lembra filmes americanos em que, ao comando do agente, as portas das celas se abrem automaticamente. A cada 15 dias, os detentos podem receber visitas em uma das 12 janelas de acrílico dos parlatórios. Falam por interfone, sem contato físico -de vez em quando, alguns ganham permissão para abraçar familiares numa pequena praça. A vigilância fica a cargo de 28 agentes por plantão, 80 câmeras e 70 monitores.

O defensor Bruno Shimizu, do Núcleo de Sistema Carcerário da Defensoria de São Paulo, ilustra as consequências do projeto. "Dobrar o lapso para a progressão, em casos de reincidência e violência ou grave ameaça, significa que em todas as ocorrências de roubo, o condenado vai cumprir praticamente a pena inteira no fechado, mesmo nas menos graves, que representam 80% dos roubos, naquelas sem lesão, sem arma, em que o sujeito puxa uma bolsa, pega um celular."

Condenado a três anos e seis meses de prisão, em São Paulo, em 2011, Jonathan dos Santos, na época com 18, teria destino diferente se a nova lei vigorasse. Com um amigo, invadiu uma residência para roubar um laptop. Na fuga da polícia, bateram a moto em uma árvore. Jonathan teve uma perna amputada. Durante os três meses em que os dois aguardaram o julgamento presos, Jonathan recebeu pouca atenção médica. Chegou à audiência em cadeira de rodas, com dor e infecção no local da amputação. Confessou a tentativa de roubo e foi condenado. O juiz fixou o regime aberto, pois ele não tinha condições de saúde para cumprir pena na cela. Pelo projeto do Senado, que proíbe o aberto para roubo, por ser um crime de violência e grave ameaça, o magistrado estaria impedido de tomar tal decisão. Roubo, disparo de arma de fogo e homicídio simples se enquadram nessa categoria e abarcam 32% dos presos de todo o sistema, segundo dados de 2012 do Depen.

HEDIONDOS

O projeto não muda a progressão de pena para crimes hediondos -mas aumenta a lista de ilícitos nessa categoria. Entre as novas modalidades estão a redução e a tentativa de reduzir uma pessoa à condição análoga a de escravo, racismo, tráfico de seres humanos e órgãos, corrupção ativa e passiva e crimes contra a humanidade.

A reincidência é punida em todos os crimes, na nova proposta. Se há reiteração em delito "praticado com violência ou grave ameaça", como roubo, o condenado precisa cumprir metade da penitência para progredir, bem mais do que um sexto (17%) que hoje vale mesmo para quem volta a delinquir.

A advogada Isadora Fingermann, coordenadora institucional do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa), afirma que, se a proposta passar, na prática, "o sistema progressivo acaba". Segundo ela, "apesar de hoje a lei prever a progressão com um sexto, há varas de execuções, como a de Guarulhos, em que um pedido demora de um ano e meio a dois. Depois, o preso permanece de seis a oito meses no fechado, aguardando uma vaga no semiaberto. É o cumprimento integral no fechado, na prática."

O procurador regional da República Luiz Carlos Gonçalves, relator do grupo de juristas, que preparou o anteprojeto de código à Comissão Temporária de Reforma do Código no Senado, defende o endurecimento. "O problema não é o projeto. Se for pensar assim, enquanto a Justiça for lenta, não altero a lei penal."

REINCIDÊNCIA

A reincidência é alta no Brasil. O ex-ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) César Peluso e o ministro Gilmar Mendes, da mesma corte, estimam que, de cada dez presos, sete sejam reincidentes. A pesquisa "Crime, segurança pública e desempenho institucional em São Paulo", coordenada por José de Jesus Filho, assessor jurídico da Pastoral Carcerária, realizada com a FGV, a Universidad Nacional de Tres de Febrero e a ONU, apurou no ano passado que 49,4% dos presidiários no Estado foram condenados anteriormente.

A proposta do Senado eleva de cinco para dez anos a permanência da reincidência na ficha de um condenado.

O futuro código restringe o início do cumprimento de pena no regime aberto. A pena exigida para o início no aberto passa de quatro anos ou menos para dois anos ou menos. Os senadores também exigem que o crime não tenha sido praticado com violência e grave ameaça e mantêm a determinação da lei de hoje de que o preso não seja reincidente.

No aberto, o preso trabalha durante o dia e dorme em casas de albergado (estabelecimentos de segurança mínima). Caso não haja vaga nesses albergues, o que é comum -existem apenas 64 no país- o juiz decide se envia o sentenciado para casa (em prisão domiciliar) ou se o retém no regime anterior até que surja lugar.

Entre os mais atingidos pelas novas regras, estão aqueles enquadrados em tentativa ou consumação de roubo simples -a ação, por exemplo, de empurrar a vítima, ou imobilizá-la, ou agredi-la, ou ameaçá-la para pegar uma bolsa. Aqui, a pena mínima é de quatro anos, acima dos dois anos estabelecidos pelo futuro código para o início no aberto.

Também seriam afetados condenados em tentativa ou infração de homicídio privilegiado, quando "o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob domínio de violenta emoção, logo seguida de injusta provocação". Casos em que a lei atual permite o início no aberto.

A proposta amplia a penalidade para um condenado por homicídio privilegiado. Eleva a pena mínima de seis para oito anos, o que põe a chance de redução da pena a pouco mais de cinco anos, acima do limite para começar no aberto até pela lei atual. Outro problema, de acordo com Miguel Reale Júnior, é que "o projeto cria tantas hipóteses para homicídio qualificado que nenhum deixará de ser qualificado. E aí a pena mínima é de 12 anos." Pedro Taques defende o aumento nas penas. "É importante não perdermos de vista que o homicídio ainda é o pior dos crimes. Seja simples ou qualificado, é inegável o fato de que é, em si, dotado de hediondez."

BESTEIRA

Em uma das quatro salas de aula de Viana, entre 15 colegas, estudam Jessi Assis, 49, condenado por homicídio simples, e, ao seu lado, acusado de homicídio qualificado, Josias Souza, 31. Jessi foi condenado a oito anos e dois meses de prisão. Conta que vendeu um revólver a um vizinho e ficou de receber depois. Quando passou para pegar o dinheiro, o homem quis desfazer o negócio. "Foi aí que apareceu um indivíduo, roubando a arma entre a mão dele e a minha. O rapaz tava com ele. Acabei cometendo uma besteira."

Como cumpriu um ano e meio de prisão pelo assassinato do cúmplice do comprador da arma, Jessi pode pedir progressão para o semiaberto. Alternativa que deixaria de ter com o novo código, já que poderia ser enquadrado em alguma das novas qualificadoras do projeto, como a que diz que é homicídio qualificado se cometido "com uso de arma, artefato bélico ou acessório de uso proibido ou restrito". Aí a pena aumentaria para 12 ou até 30 anos. A progressão de um sexto subiria para dois quintos da pena, pois homicídio qualificado, diferente de simples, é crime hediondo.

O processo de Josias corre na Justiça. Era meeiro na zona rural próxima a Colatina (ES). Conta que o proprietário o mandou embora e não queria lhe pagar. Suplicou: "Rapaz, não posso ficar parado. Tenho filhas." Diz que a resposta foi: "Filho de macaco se trata com banana". Josias relata que pediu respeito e levou um soco. "Acertei uma facada nele. Minha esposa estava com barrigão... Tanto que, quando fui para cadeia, dali 15, 20 dias, ganhou neném. Sei que o que fiz é caso de Justiça. Quero pagar."

O juiz aceitou a acusação de homicídio qualificado por motivo torpe, sem que a vítima, atacada pelas costas, tivesse chance de reagir, e proferiu que o réu fosse a júri. Mas, se a versão de Josias for a verdadeira, é homicídio privilegiado, por ele ter reagido "sob domínio de violenta emoção, logo em seguida de injusta provocação". Poderia ter iniciado a pena no semiaberto ou aberto, como possibilita a legislação atual. Em março deste ano, após dois anos e sete meses aguardando julgamento, Josias pôde deixar a cadeia, em liberdade provisória, beneficiado por um habeas corpus.

EXAME

A volta da obrigatoriedade do exame criminológico para todas as infrações, que consta do projeto, pode ser mais um entrave à progressão. O laudo, feito a pedido do Judiciário, avalia se o preso "merece" ou não progredir. Parte do princípio de que psicólogos, psiquiatras e assistentes sociais podem mensurar se um indivíduo tende a cometer outro crime ou fugir após conseguir a liberdade condicional ou o semiaberto. A progressão, assim, pode ser negada mesmo que o apenado já tenha cumprido a pena e possua bom comportamento.

Dúvidas sobre a efetividade e a demora, muitas vezes de mais de um ano na obtenção do laudo, levaram à extinção de sua obrigatoriedade em 2003. Na época, 80 mil apenados, em condições de receber a progressão ou a liberdade, aguardavam o exame. Em 2010, o Conselho Federal de Psicologia proibiu psicólogos de aplicar o exame.

A solução que o projeto oferece é que o juiz pode decidir sem o laudo se este não ficar pronto em 60 dias. O procurador Gonçalves defende o exame. "Recentemente, um sujeito que estuprava e matava crianças foi posto em liberdade sem esses cuidados [sem o exame]. O que ele fez? Estuprou e matou de novo."

O defensor Bruno Shimizu considera que o prazo de 60 dias pode levar um magistrado a barrar a progressão. "O juiz vai falar: 'Como não deu para fazer o exame, não vou deferir a progressão'". A defensora paulista Juliana Belloque, que participou do grupo de juristas do anteprojeto e foi voto vencido, também é contra. "Prazo no processo e na execução penal é algo que costuma ser descumprido. A lei diz que todo processo precisa ter audiência de instrução e julgamento em 60 dias, e as pessoas estão há um ano esperando essa audiência presas, e se entende que é razoável."

'SEMIFECHADO'

Freixo escolheu o presídio semiaberto Vicente Piragibe, em Bangu, para conversar com presos sobre a proposta de código -muitos dos presos não estariam ali se o código proposto pelo Senado estivesse em vigor, pelos empecilhos à progressão.

Além da superlotação (2.324 detentos para 1.200 vagas) outra característica do Piragibe chama a atenção do deputado e mostra as distorções na aplicação das penas: pouquíssimos presos recebem autorização de saída para trabalhar ou visitar a família. A maioria cumpre pena como se estivesse no fechado. Por isso, os presidiários e o CNJ, que esteve ali em 2011, apelidaram o Piragibe de "semifechado". O deputado explica que os juízes usam a morosidade da Justiça para segurar o apenado: "O magistrado cria obstruções, pede [exame] criminológico, que não deveria mais pedir e, na prática, não concede a visita. Há o medo de fuga, de um crime com visibilidade".

Muitos no Piragibe têm algum benefício vencido. Walbert Vitoriano, que cumpriu seis dos oito anos por tráfico, ilustra outra mudança que o projeto faz. Há sete meses, o detento aguarda, no presídio carioca, a concessão do livramento condicional, que lhe daria liberdade imediata. O novo projeto extingue o livramento condicional.

A lei hoje diz que o juiz pode conceder o livramento ao preso condenado a dois ou mais anos em regime fechado após o cumprimento de mais de um terço da pena, desde que não reincidente em crime doloso e com bons antecedentes. Caso remitente, o encarcerado precisa cumprir mais da metade. Se sentenciado por crime hediondo, deve passar mais de dois terços na prisão antes de pedir o livramento. A prerrogativa é vedada àqueles reincidentes em infrações dessa gravidade. Se o preso em condicional cometer uma penalidade antes da data final da sentença, além de perder o benefício, perde o tempo da pena decorrido fora da cadeia.

O procurador Gonçalves defende o fim do livramento. "O sistema de progressão e do livramento concorrem entre eles, com um detalhe: se a pessoa em livramento delinqüir, volta a cumprir toda a pena. Além disso, você a joga na rua no dia seguinte. A progressão tem uma gradação. Vale a pena coexistirem ou é melhor aperfeiçoar a progressão e deixá-la como incentivo ao bom comportamento?"

O caso de Marcela Batista, que desde agosto de 2008 cumpria oito anos e 20 dias por roubo na penitenciária do Butantã, em São Paulo, mostra que o livramento e a progressão nem sempre servem aos mesmos propósitos.

Marcela poderia ter progredido em 2010, mas seu pedido não foi apreciado. Em maio de 2012, teve um bebê. É comum em penitenciárias paulistas a mãe ficar com o filho por seis meses para amamentação. Depois disso, agentes tiram a criança e, se ninguém da família se dispuser a cuidar dela, a colocam para adoção. Para impedir isso no caso de Marcela, a Defensoria fez um pedido de extensão da amamentação. "() Requer-se (...) a permanência da mãe com seu bebê (...) pelo prazo mínimo de 02 (dois) anos, conforme orientação do Ministério da Justiça (...)."

Após cumprir mais da metade da pena no regime fechado, sem progressão, Marcela recebeu o livramento em dezembro de 2012. Com a reforma do código, continuaria presa ou talvez progredisse para o semiaberto, separada da criança.

Shimizu levantou o número de pessoas em livramento e em regime aberto na capital paulista hoje e fez as contas do impacto do projeto. Concluiu que só na cidade seriam quase 30 mil pessoas a mais presas. "Seria necessária a construção de mais 70, 80 presídios." Ele frisa que a maior parte dos presos que perderiam benefícios pelo novo código são pessoas sentenciadas por furtos, crimes patrimoniais ou pequenos traficantes. " O juiz não dá o livramento quando o crime é grave. Vai criar um colapso no sistema."

Belloque lembra que o benefício pode ser a última chance de um encarcerado em um sistema que não cumpre prazos. "A realidade é que as penas de curta ou média duração são cumpridas quase que integralmente no fechado, porque não dá tempo de progredir. O que salva esses condenados é o livramento."

FRACASSO

Miguel Reale Júnior lembra que projetos de penas pesadas como resposta à criminalidade fracassaram nos EUA, onde a população carcerária quadruplicou entre 1980 e 2009. Hoje esse tipo de proposta vem sendo abandonada. Fernando Delgado, professor da Clínica de Direitos Humanos da Universidade Harvard e colaborador da ONG Justiça Global, concorda. "O Brasil, infelizmente, segue em direção de políticas penais falidas."

A população carcerária brasileira, que é a quarta do mundo (depois de EUA, China e Rússia) quase quintuplicou entre 1992 e 2012; saltou de 114,3 mil para 549,5 mil, segundo dados do Centro Internacional para Estudos de Prisão (ICPS). E continua crescendo. Neste ano, já são 567,6 mil detentos. Somando as pessoas em prisão domiciliar, o número chega a 715,6 mil, de acordo com o CNJ. Se os 373,9 mil mandados de prisão em aberto fossem cumpridos, o total saltaria para mais de um milhão (CNJ).

Após anos de políticas encarceradoras pesadas aos cofres, sem relação clara com a redução da violência, americanos e europeus tentam diminuir suas populações nas grades. Estudos descrevem uma relação limitada entre cadeia e segurança. Steven D. Levitt, economista da Universidade de Chicago, e William Spelman, especialista em políticas públicas da Universidade do Texas, avaliam em seus trabalhos que a cada 10% de aumento no número de encarcerados, há uma queda de 2 a 4% na criminalidade. Spelman acredita que é uma redução restrita dado o tamanho do gasto financeiro e do custo social.

Os gastos e a limitação aumentam na proporção em que a população carcerária cresce. Por exemplo, em 2003, California e Nebraska tinham índices de criminalidade similares, cerca de 4.000 delitos por 100.000 moradores, segundo o Departamento de Justiça. Para reduzir a violência em 2 a 4%, a Califórnia, com uma população prisional de 162,6 mil presos teria que encarcerar mais 16 mil pessoas. Nebraska, com 3,9 mil, precisaria colocar na cadeia outros 400. Com a média americana de gastos por preso em U$ 22.650 por ano, na época, a Califórnia gastaria U$ 355 milhões a mais que Nebraska.

No Brasil, a cada 10% na elevação do encarceramento, há uma redução de 0,5% em homicídio (Ipea/ 2013). Luiz Octávio Coimbra, coordenador do Observatório Hemisférico de Segurança da OEA, calculou, com base nos dados do Ipea: "Para reduzir a taxa de mortes intencionais no Brasil (27 por 100 mil habitantes) até chegar à média mundial (7/100 mil), deveríamos [...] botar na cadeia mais de 2 milhões de brasileiros."

Segundo a CPI do Sistema Carcerário, de 2009, o custo médio mensal por detento equivaleria a R$ 1.300. Além de encarcerar se tornar custoso, chega um momento em que prender aumenta a violência, em vez de reduzi-la. Raymond V. Liedka, da Universidade de Oakland, Anne Morrison Piehl, da Universidade de Nova Jersey, e Bert Useem, da Universidade de Purdue, Indiana, analisaram dados dos 50 Estados americanos, mais D.C., de 1970 a 2000, e perceberam que a criminalidade sobe após o aprisionamento atingir entre 325 e 492 detidos por 100.000 habitantes.

O que pesquisadores como a socióloga americana Dina R. Rose e o professor Todd R. Clear, da Universidade de Nova Jersey, encontraram é que o superencarceramento destrói laços sociais e familiares. Adultos mandados à cadeia deixam de criar, educar, dar amor e sustentar suas crianças. Comunidades pobres se tornam miseráveis.

Em 2012, a média brasileira de presos, segundo o Depen, era de 287 detentos por 100.000 habitantes. No entanto, alguns Estados chegaram ao limite comentado na pesquisa de Liedka, Piehl e Useem ou o ultrapassaram. No Paraná, o encarceramento atingiu 340 presos por 100.000 habitantes; em Mato Grosso, 371; em Roraima 395; no Espírito Santo, 419; Brasília, 447; São Paulo, 463; Mato Grosso do Sul, 499; Rondônia, 516; e, no topo, o Acre, 521 detentos.

Em números absolutos, São Paulo pula para primeiro lugar, com um terço da população de presos do país, 198.818. Segundo a Pastoral Carcerária, a cada mês, entram 9.000 presos e saem 6.000 da carceragem, o que acarreta um acréscimo de 3.000 no sistema. Levando em conta que a capacidade de uma unidade paulista gira em torno de 700 detentos, seriam necessárias quase quatro novas unidades ao mês para absorver esse saldo. "Isso, sem contar o atual déficit no sistema paulista de 80 mil vagas", frisa Rodolfo Valente, advogado da Pastoral.

O superencarceramento provocou o surgimento de novas superprisões, que pareciam em vias de extinção com a demolição do Carandiru, em 2005, em São Paulo. O Centro de Detenção Provisória de Pinheiros, por exemplo, mais conhecido como Cadeião, ganhou o apelido adicional de Novo Carandiru. Com capacidade de 2.176 vagas, sua lotação quase triplicou: estão lá 6.496 presos (dados da Secretaria da Administração Penitenciária do Estado).

Uma pesquisa realizada em 2012 pelo Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC) e pela Pastoral Carcerária, no Centro de Detenção Provisória de Pinheiros I e na Penitenciária Feminina de Santana, dá uma ideia do perfil de quem está sendo preso e como comunidades são afetadas. 81,2% das mulheres e 53% dos homens declararam ter filho; 33,6% dos presos e 30,5% das presas disseram ser os provedores da família; 70,1% dos homens e 75,4% das mulheres afirmaram possuir renda familiar de até três mínimos. 16,9% deles e 13,8% delas não têm renda.

Entre 1990 e 2005, a criminalidade caiu nos EUA. No entanto, Spelman e outros pesquisadores mostraram que o encarceramento foi responsável por apenas 25% da queda. Os 75% restantes seriam reflexos de investimentos em educação, policiamento, aumento no poder aquisitivo da população, envelhecimento populacional, redução do desemprego e da taxa de urbanização. Levitt identificou que, a cada 10% de aumento no policialmente de uma cidade, há redução de 11% nos crimes violentos e de 3% nos delitos à propriedade.

No Brasil, um aumento de 10% no efetivo policial provoca quedas entre 0,8% e 3,4% nos homicídios do ano seguinte (Ipea/ 2013).

Os economistas Eric D. Gould, da Hebrew University of Jerusalem, Bruce A. Weinberg, da Universidade de Ohio, e David B. Mustard, da Universidade da Georgia, constataram que aumentos de 10% no salário médio de trabalhadores sem formação universitária diminuem em 25,3% os crimes violentos. Outros dois economistas, Lance Lochner, da Universidade Western Ontario, e Enrico Moretti, de Berkeley, apontam que 10% mais graduações no ensino médio baixam a criminalidade em 9,4%. Do outro lado da mesma moeda, o Ipea percebeu que o crescimento de 1% na evasão escolar eleva em até 0,1% os homicídios.

A redução do encarceramento nos Estados Unidos tem, além de interesses sociais, econômicos. Em 2007, o Mississipi reduziu em 80% o confinamento em solitárias e fechou, 3 anos depois, sua unidade de segurança máxima, economizando U$ 5 milhões anuais. No Texas, tratamentos a usuários de drogas e abrandamento de leis para facilitar a progressão contribuíram para a redução de 5.000 presos, de 2007 a 2012. De 2006 a 2009, a Califórnia diminuiu a população de 173.000 presos para 136.000. Segundo a Justiça californiana, a superlotação era a "principal razão" da incapacidade do Estado em manter programas de saúde aos detentos. Em Nova York, dados de 2013, mostram que, em mais de 10 anos, houve queda de 32% na população prisional com redução na criminalidade na mesma proporção. José de Jesus explica: "Houve investimento pesado em policiamento e políticas sociais [em Nova York]. Colocou-se o aparelho repressor do Estado nos pontos quentes, criou-se alternativas de lazer, educação."

Recentemente, Eric Holder, procurador-geral dos EUA, afirmou: "Precisamos garantir que a prisão seja usada para punir, desencorajar e reabilitar – não simplesmente para condenar, armazenar e esquecer", disse. "Um ciclo vicioso de pobreza, criminalidade e prisão envolve muitos americanos e enfraquece muitas comunidades." Lembrou que essas mudanças vão "acabar economizando bilhões" e manter os americanos "seguros."

De 2011 a 2012, a população prisional americana, de 2,2 milhões, apresentou redução de quase 2%, pelo terceiro ano, segundo o Departamento de Justiça.

As leis americanas anticrime

Ao investir em políticas alternativas, a Holanda, em 2009, fechou oito unidades. Este ano, desativou mais 19, economizando €$ 271 milhões. A Suécia também fechou prisões, com penas alternativas e revisões judiciais.

O doutorando da Sociologia da USP Marcelo Campos vê, no novo código, a continuidade de uma política de recrudescimento. "É ver no direito penal a solução, passando pelo encarceramento." Ele pesquisou e identificou o surgimento de 49 leis punitivas de 1989 a 2006. O conjunto de leis que forma a legislação de crimes hediondos é importante exemplo do recrudescimento e uma das causas da explosão carcerária. São três, aprovadas a partir de 1990.

O rigor desse conjunto de leis provocou uma certa queda de braço entre o Judiciário e o Legislativo em dois momentos. Primeiro em 2006 quando o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional uma parte central da legislação de crimes hediondos de 1990, responsável pelo aprisionamento, que obrigava um juiz a sentenciar o condenado a cumprir toda a pena em regime integralmente fechado, independente de qualquer particularidade do caso e do réu. A legislação ia contra o artigo 5o da Constituição Federal que pede para que seja respeitado o princípio de individualização da pena, quer dizer, o magistrado deve aplicar uma pena levando sempre em consideração as características específicas de cada caso com que se depara, além de analisar as circunstâncias pessoais do réu. Outra irregularidade da norma é que ficava inviabilizada a chamada progressão de regime, em que o condenado vai progredindo de regime fechado, a semiaberto e assim por diante. Escreveu o relator da decisão, na época, ministro Marco Aurélio: "A progressão no regime de cumprimento da pena, nas espécies fechado, semiaberto e aberto, tem como razão maior a ressocialização do preso que, mais dia ou menos dia, voltará ao convívio social."

Em resposta, no ano seguinte, o Congresso editou uma nova lei modificando a norma. O novo texto da legislação de crimes hediondos trocava a observação de que a pena deveria ser "cumprida integralmente em regime fechado" para "cumprida inicialmente em regime fechado". Em 2012, o STF indicou qual o entendimento sobre o tema. Ao julgar um Habeas Corpus da Defensoria do Espírito Santo, o plenário da corte decidiu que a imposição de um regime inicial fechado também é inconstitucional. Novamente o Supremo observou que o princípio da individualização da pena deveria ser respeitado mesmo no momento da fixação inicial de cumprimento de pena. A defensora Juliana Belloque lembra: "A gente ficou nisso por quase duas décadas até que muitos governadores falassem: '[o sistema prisional] Está explodindo'. Até que o Supremo Tribunal Federal julgou inconstitucional a lei. O calo é mesmo a progressão de regime."

DROGAS

Outra causa de superencarceramento deriva da lei de 2006 que instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas. Parecia que a norma desafogaria o sistema, ao eliminar a prisão a usuário. Mas, como, na prática, a Justiça continuou sem fazer distinção precisa entre usuário e traficante, muitos seguiram sendo presos como traficantes, agora sob penas maiores. A lei subiu de três para cinco anos a pena mínima, impedindo a aplicação de penas alternativas, e manteve a máxima em 15. Também proibiu a concessão de liberdade provisória e vedou, para reincidentes, o direito ao livramento condicional. Em 2010, o STF considerou inconstitucionais as partes da lei que proibiam a liberdade provisória e impediam a possibilidade de pena alternativa aos condenados por tráfico.

Com a legislação de 2006, quadruplicou o número de encarcerados por tráfico. Um ano antes da lei, 32,8 mil espremiam-se em cadeias pelo crime; cinco anos depois, eram 125,7 mil (Depen). A porcentagem de detidos por drogas em relação à população carcerária total aumentou de 13,4%, em 2005, para 24%, em 2012. Agora, tráfico e roubo qualificado (18%) são as principais causas de prisão.

A lei criada para deter o grande traficante, na prática, enjaulou o traficante eventual, que comercializa para consumo próprio, e o usuário. Em um levantamento do ITTC e da Pastoral Carcerária (2012), em São Paulo, é possível ver a dificuldade em se separar usuário, pequeno traficante e grande. Entre os crimes de drogas, registrados em boletins de ocorrência, 98% foram classificados como tráfico, associação e produção; 1% como de usuários-traficantes; e apenas 1% foram enquadrados exclusivamente como usuários.

Outro estudo de 2011 do Núcleo de Estudos da Violência da USP sobre o enquadramento que o policial faz no momento da prisão mostra mais imprecisão: 87% dos detidos foram classificados como traficantes, dos quais 11% associados a outros delitos além de tráfico. Nenhum foi considerado usuário.

O trabalho da USP cita a importância da "diferenciação entre usuário e traficante" no início do processo. Essa distinção "vai orientar os rumos do caso no sistema de Justiça criminal" até o final. Em outra pesquisa, a antropóloga brasileira Alba Zaluar lembra como um caso chega distorcido ao juiz: "São os policiais que decidem quem irá ou não ser processado por uso ou por tráfico, porque são eles que apresentam as provas e iniciam o processo".

Segundo Levitt e a professora de business de Columbia Ilyana Kuziemko, o aumento de presos não violentos por legislações antidrogas sobrecarrega o sistema e impede o encarceramento de criminosos graves, diminuindo a eficácia do aprisionamento como redutor de criminalidade. No Brasil, 54% dos presos não praticaram crimes violentos (Instituto Avante Brasil/ 2012).

O projeto do novo Código Penal mantém o viés encarcerador da lei de drogas. A pena mínima de cinco anos de prisão para tráfico continua, assim como a penalidade máxima de 15. Também persiste a prisão para quem induzir alguém ao uso de drogas. Pela proposta, consumo e plantio para consumo deixam de ser crime. Mas continua sem diferenciar com precisão usuário de traficante. O projeto é subjetivo ao dizer que um juiz, além de analisar o local, as condições da ação e a quantidade apreendida (não especifica a quantidade), deverá ficar atento "às circunstâncias sociais e pessoais do agente".

Outro problema do código atual está mantido no projeto. Muitos pequenos traficantes ou usuários perdem a primaridade cedo por delitos simples, como furtos. Com a primariedade, vai-se a chance de serem classificados por tráfico privilegiado, o único que não é considerado crime hediondo e que permite a redução da pena. No projeto do novo código, a possível redução da sentença, que ia de um sexto (17%) a dois terços (67%), foi para, no máximo, um terço (34%).

Em São Paulo, o Departamento de Inquéritos Policiais e Polícia Judiciária da Capital é considerado uma das portas para o sistema prisional. Na sala que divide com outros defensores, Fernanda Balera atende familiares de presos. "Cerca de 80% dos flagrantes em São Paulo chegam aqui. Dá uma noção de quem está sendo preso", explica a defensora.

Muitos processos são de presos provisórios há mais de 6 meses aguardando julgamento por roubo, furto de fio de cobre... Quase todos moradores da periferia, com baixa escolaridade, usuários de drogas, sem dinheiro para advogado. Escolhe um exemplo de 2013. Pede para que o nome não seja revelado.

Depõem dois policiais, únicas testemunhas, que contam que patrulhavam uma das ruas do bairro de Santo Amaro à noite quando flagraram uma mulher com 2,2 g de crack e R$ 420. Ela teria confessado o tráfico, o vício e o trabalho de prostituta, para ajudar um filho de 19. De 2001 a 2004, já fora presa por tráfico. Após aguardar mais de 6 meses pelo julgamento, essa mulher provavelmente será condenada, dessa vez, por não ser mais primária, por crime hediondo de tráfico.

CATÁSTROFE

No Recife está um dos maiores desastres do superencarceramento brasileiro, o presídio Aníbal Bruno, com 6.456 presos para 1.514 vagas, lotação 326% acima da capacidade. Pernambuco também possui a unidade mais superlotada do Brasil: Palmares, com capacidade para 74 detentos, abriga 740 (Ministério Público/ 2013).

Desde 2011, Harvard, a Pastoral Carcerária e a Justiça Global monitoram o Aníbal Bruno. Quem entra no complexo de 19 mil m² sente o bafo quente e o odor fétido. Os presos "administram" o lugar. Cada pavilhão tem seu "presidente", que conta com assistentes, como "chaveiros", que carregam as chaves das celas. Sem espaço, os apenados se revezam para dormir. Faltam higiene, água, médicos. "É um símbolo da catástrofe do superencarceramento em curso no Brasil", define o professor Fernando Delgado, de Harvard. Uma inspeção em agosto de 2013 gerou um relatório à OEA (Organização dos Estados Americanos) contra o Brasil, com 42 casos de violência.

O advogado Eduardo Baker, da Justiça Global, explica. "Quando você tem prisões com uma lotação limite de 500, 600 pessoas que têm 3 mil presos dentro, você acaba achando que através do medo vai conseguir controlar aquilo melhor. E qual a forma de o agente ou policial que está atuando lá impor medo? É através da tortura. E muitas vezes, por incapacidade do Estado, os próprios presos acabam gerindo aquele espaço prisional."

Uma inspeção no Aníbal Bruno em agosto de 2013 gerou um relatório à OEA (Organização dos Estados Americanos) contra o Brasil, com 42 casos de violência.

Segundo o documento, presos foram agredidos, torturados e colocados no isolamento por "chaveiros". Um deles mostrou as marcas de choques e chutes nas costelas e na cabeça. O mesmo afirmou que pagou R$ 650 a uma assistente social do presídio para receber tratamento.

Um apenado, com ferimentos, afirmou que um dos diretores o espancou por meia hora com cassetete e coronhadas. Um agente penitenciário aparece em vários casos, inclusive por agredir a mãe de um detento. Há denúncias de disparos letais contra presos. Um ficou paraplégico ao levar um tiro de um PM de guarita de controle.

O relatório denuncia que homicídios são registrados como suicídio. Em junho de 2013, Luciano Barbosa morreu ao chegar à enfermaria com sangramento no ouvido. Nove dias antes, relatara à ONG Serviço Ecumêmico de Militância nas Prisões que fora torturado por um chefe de segurança. Na época, Luciano apresentava inchaço nas costelas, pus no ouvido, queixava-se de fortes dores na cabeça e não conseguia ficar em pé.

PERPÉTUA

Na interpretação de Bruno Shimizu, o código em gestação no Senado institui a pena perpétua. Está escrito: "Sobrevindo condenação por fato posterior ao início do cumprimento da pena, far-se-á nova unificação, com limite máximo de quarenta anos, desprezando-se, para esse fim, o período de pena já cumprido." Ou seja, explica: "Se uma pessoa tiver cumprindo 30 anos e no último dia for condenada por outro crime grave, pode pegar mais 40, ficando no total com uma pena de até 70 anos. Quer dizer, quem entrar na cadeia com 18, dificilmente sai vivo. É inconstitucional. "

O desembargador Willian Silva discorda. "Hoje a expectativa de vida do brasileiro é de 70, 73. Então o tempo de pena tem que aumentar também."

Colaborou LUANNA BARROS


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