Folha de S. Paulo


Ghostwriter de sucesso revela o mundo secreto dos autores de aluguel

Andrew Crofts já escreveu 80 livros e vendeu 10 milhões de cópias em uma carreira de 40 anos, em geral sob nomes muito mais famosos do que o seu –pelo menos até agora

"Por trás da descrição 'ghostwriter', conversei com reis e bilionários da mesma forma que com prostitutas e moradores de rua, e frequentei bastidores com astros do rock e atores. Pude enfiar o nariz nos assuntos alheios e fazer todas as perguntas impertinentes que me ocorressem. Ao mesmo tempo, também pude levar uma agradável vida de escritor..."

Na semana que vem, em um dos raríssimos momentos de suspensão de uma discrição rigorosa e duradoura, Andrew Crofts, um dos escritores menos visíveis e mais bem sucedidos do Reino Unido, autor de muitos best sellers ainda que seu nome seja quase desconhecido, sairá das sombras e erguerá o véu de uma disciplina quase tão antiga quanto a mais antiga das profissões. Oferecendo mais que um vislumbre de revelações titilantes e erguendo as saias da fama, seu "Confessions of a Ghostwriter" sai em momento mais que oportuno.

Toby Phillips/Divulgação
O ghostwriter Andrew Crofts.
O ghostwriter Andrew Crofts

Há um velho ditado de que não se deve julgar um livro pela capa. É uma verdade tradicional que talvez jamais tenha valido tanto quanto hoje. Em grau que poderia espantar o público leitor, porcentagem significativa dos títulos que formam a lista de best sellers não foram escritos pelos autores cujos nomes enfeitam suas capas.

Entre os muitos mistérios do mundo do livro britânico, nenhum é tão opaco quanto o da vida do ghostwriter, o homem ou mulher invisível que satisfaz a vaidade daqueles que querem ver seus nomes na capa de um livro mas que não são capazes de escrever, nem que a casa caia.

Você talvez não saiba disso, mas fantasmas literários estão espalhados por toda parte. Nessa era dourada da leitura, as editoras desesperadas por títulos de magnetismo comercial infalível nos gêneros de maior venda - memórias de sofrimento, vidas de atletas e autobiografias de celebridades - não hesitam em contratar escritores de aluguel.

Por trás de nomes como Sir Alex Ferguson, Jordan, Andy McNab e Victoria Beckham, se esconde a tímida figura de um fantasma. Às vezes, não há acobertamento. "Vida", de Keith Richards, foi escrito por James Fox, e Katie Price (mais conhecida como Jordan) se vangloria de nem digitar seus textos, e usou os serviços de Rebecca Farnsworth para lançar sua carreira como romancista, com "Angel". Mais abaixo na cadeia alimentar, até mesmo o irritante suricato dos anúncios da comparethemarket.com publicou um livro escrito por Val Hudson, antes editora na Headline Books.

A categoria dominante entre os títulos escritos por ghostwriters continua a ser a de memórias de sofrimento, livros como "Tell Me Why, Mummy", ou "Please, Daddy, No", ou "Sharon Osbourne's Extreme: My Autobiography". Em seu pico, esse gênero respondia por quase 10% do mercado de livros do Reino Unido, seguido de perto pelas autobiografias de celebridades ("My Booky Wook", de Russell Brand), memórias de criminosos reais ("Stop the Ride, I Want to Get Off", de Dave Courtney), vidas de atletas ("My Story So Far", de Wayne Rooney) e histórias de aventuras (Bruce Parry, Bear Grylls, etc.).

Ser ghostwriter é um grande negócio, nos países de fala inglesa. O termo foi cunhado pelo norte-americano Christy Walsh, que fundou o Christy Walsh Syndicate, em 1921, para explorar a produção literária dos heróis do esporte norte-americano. Walsh não só contratava ghostwriters para produzir os livros como impunha um severo padrão de conduta para suas pálidas existências. Regra número um: "Não insulte a inteligência do público alegando que os atletas mesmo escreveram seus livros".

O código de Walsh persiste. A página de agradecimentos de muitos livros escritos por ghostwriters menciona parceiros, filhos e até mesmo animais de estimação, antes de, como que a contragosto, mencionar os homens e mulheres invisíveis que extraem a escultura do mármore. É comum, e até mais frequente, que os créditos incluam termos como "história contada a", ou "escrito com", ou "editado por".

Essas frases inócuas muitas vezes mascaram um mundo de dor pessoal: entrevistas chorosas, confrontos furiosos, ameaças de violência, revelações chocantes, e sempre a espera, espera interminável. Na França, os ghostwriters são conhecidos como "nègres", e existe uma forma de escravidão implícita na transação. O mundo dos ghostwriters pode envolver ameaça, mas dificilmente é perigoso como Robert Harris descreve no thriller de suspense "The Ghost", um livro que muita gente considera ter exposto a arte de escrever em nome dos outros.

Como no caso de qualquer outro livro, as dificuldades de um ghostwriter para escrever um trabalho se relacionam sempre a amor e dinheiro. Primeiro vem a disputa inevitável quanto aos termos do contrato. Tradicionalmente, o ghostwriter fica com um terço do adiantamento (e mais royalties). Na recessão, esse quinhão foi comprimido para apenas 10%, em alguns casos, uma porcentagem que os melhores entre os ghostwriters certamente desdenharão.

Muitas vezes, as batalhas quanto a dinheiro empalidecem diante da gigantesca disputa de egos que surge quando o assunto é tomar a voz e personalidade alheia para expressá-la na página. Alguns ghostwriters, que só falam sob a condição de que seus nomes não sejam citados, reportam que o tema que abordam com mais receio é o da personalidade frágil com pretensões literárias.

Quem, afinal, não está vulnerável à pressão do amor próprio? O ghostwriter, que começa como mistura de terapeuta, musa e amigo, adentra um campo minado psicológico. Por isso, eles em geral são aconselhados a não esquecer que, no final do processo, sua posição na hierarquia fica a meio caminho entre a de um faxineiro e a de um lacaio.

Lembro, alguns anos atrás, de uma estrela pop que compareceu à cerimônia de premiação de uma feira literária na qual suas memórias, escritas por uma ghostwriter e grande sucesso de vendas, ficaram entre os finalistas. Antes da cerimônia, ela havia se vangloriado de não ter aberto, quanto menos lido, o livro que carregava seu nome na capa. E ao vencer, como esperado, ela deixou a ghostwriter na mesa e aceitou o prêmio graciosamente, com sorridos modestos, gratidão e humildade - uma escritora modelo. Mas ao voltar à mesa da sua editora, a mulher que havia de fato escrito o livro estendeu o braço instintivamente na direção do troféu. Má ideia. A estrela pop arrancou o troféu das mãos da ghostwriter, acertando o rosto da escritora com ele, como que para lembrá-la de quem mandava. Quem paga a conta decide o cardápio.

Crofts escreveu cerca de 80 livros, vendeu mais de 10 milhões de cópias e já esteve uma dúzia de vezes nas listas britânicas de livros mais vendidos. Em rara entrevista ao "Observer", Crofts descreveu seus cerca de 40 anos como ghostwriter. Sujeito pacato e de jeito jovial, apesar de já ter passado dos 60, Crofts estudou no Lancing College mas se descreve como "arrogante demais" para a universidade, e que chegou à profissão de escritor de aluguel por acaso - ele diz que a escolheu porque "eu não queria ter um emprego permanente".

Os ghostwriters, Crofts aponta, levam vidas episódicas. "É um arranjo perfeito. Você recebe um pedido, passa pela aventura - em qualquer parte, de um palácio a um bordel - e depois retorna à segurança de seu lar". Ele é um típico jovem dos anos 60, e parece ter transformado um desejo de perambulação permanente em forma de ganhar a vida. Aos 17 anos, quando concluiu o segundo grau, abrigava vagas ambições literárias, escreveu um romance ("que tinha mais de Robert Harris que de Virginia Woolf"), sofreu a inevitável rejeição editorial e passou a trabalhar como redator para uma empresa de relações públicas. Com a autodepreciação característica dos ingleses, ele se descreve como "um escrevinhador oportunista", que "fazia qualquer coisa que me pagassem para fazer". Diante da insistência do entrevistador, ele admite se orgulhar da carpintaria de seus textos e de ter conseguido "ganhar bem a vida por 40 anos trabalhando como escritor".

Quando ele começou no ramo, "trabalhar como ghostwriter era visto como degradante". Em 1984, com a ousadia da juventude, ele decidiu começar no ramo. Sua abordagem foi simples e direta. Colocou um anúncio de três palavras - "ghostwriter oferece serviço" - na revista especializada "Bookseller" e ficou à espera de contatos.

Crofts teve sorte. O momento não poderia ter sido mais oportuno. A produção de livros estava passando por uma reviravolta por conta da tecnologia da informação. E a Web também transformou seu segmento do mercado. "A Internet fez toda diferença", diz Crofts, um dos primeiros ghostwriters a criar um site. Agora, ele recebe três a quatro consultas por dia. "Escrevo o tempo todo", diz.

Sob seu nome, e por se orgulhar de seu ramo de trabalho, ele publicou "Ghostwriting", um manual de como trabalhar como escritor de aluguel. Quando Robert Harris leu o livro como parte de sua pesquisa para "The Ghost", buscou permissão para citar alguns dos preceitos profissionais de Crofts ("de todas as vantagens que trabalhar como ghostwriter oferece, uma das maiores deve ser a oportunidade de conhecer pessoas interessantes") como epígrafes dos capítulos. "'The Ghost'", diz Crofts, "foi um presente dos deuses. Harris fez um grande favor a todos nós".

Desde 2007, Crofts se tornou uma espécie de escritor fantasma dos escritores fantasmas, o profissional de referência em um mercado florescente. "Cobro caro", ele admite, e reconhece que seus honorários ficam na casa dos centenas de milhares de libras. Crofts, que no momento fatura mais do que a maioria dos escritores profissionais do Reino Unido, é muito procurado por celebridades, políticos e astros internacionais, especialmente da Índia. Ele também trabalha com africanos, árabes, sul-americanos e russos. "Todo mundo ama Londres", diz. "É um exemplo do poder brando em ação. Londres é vista como o lar do mercado editorial, uma cidade de respeito, cujas ruas foram percorridas por Dickens".

Sua regra para aceitar novos clientes é que a história que eles têm a contar seja interessante. Ele aceitou trabalhar com Alexandra Burke (de "The X-Factor") por conta do sacrifício da carreira da mãe de Burke. "Ela estava no hospital, vendo sua filha na TV, levando a vida que ela poderia ter levado", diz, e confessa se interessar especialmente por histórias de abuso na infância. "Sold", a chocante história do estupro de Zana Muhsen, vendeu cinco milhões de cópias e, na estimativa de Crofts, criou um novo mercado para livros como "The Little Prisoner", de Jane Elliott. Crofts também trabalhou com Pete Bennett, do "Big Brother", vítima da síndrome de Tourette, porque respeita muito "o seu caráter extraordinariamente atraente"; ele co-escreveu "Pete: My Story", outro best seller, com Bennett.

Há algo que ele se recusaria a fazer? "Preciso estar interessado", diz, mas reconhece que coexistiria alegremente com monstros. "Tenho a horrenda sensação de que, se me telefonassem da Alemanha nos anos 30, teria corrido para o avião como uma irmã Mitford"

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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