Folha de S. Paulo


Os favores que Sérgio Cabral pedia a um vizinho

RESUMO Moradores do mesmo prédio no Leblon e colegas de condomínio na praia, Sérgio Cabral, então governador do Rio, e o presidente da Fecomércio fluminense, Orlando Diniz, trocaram fartas mensagens por e-mail. A Folha teve acesso à correspondência, na qual o político pede ajudas para familiares, assessores e amigos.

*

Depois de assistir a "Getúlio" (o filme lançado neste ano), Dilma Rousseff passou a dizer que se identificou com uma frase atribuída ao ex-presidente, já próximo de cometer suicídio: "Nunca me pediram nada para o país. Sempre me pedem algo para alguém".

Dilma, como seus antecessores no Palácio do Planalto, evita detalhar como se dá o assédio e a troca de favores. Nos governos estaduais e prefeituras, também é incomum saber como se processa o intercâmbio de gentilezas. Muito menos quando quem pede é o político que está no governo.

Compadrio e troca de favores são comuns na política brasileira. Em Brasília, parlamentares pedindo cargos para amigos ou parentes fazem parte da paisagem. A taxa de sucesso dos pidões é desconhecida. Não há governo no mundo cuja transparência atinja esse nível.

Mais raro ainda é conseguir documentar como se dá essa fisiologia miúda no momento exato em que o mimo é solicitado. Os detalhes ficam confinados às sombras.

Quando a promiscuidade entre o poder público e o privado se torna conhecida, é sempre de maneira inadvertida. Foi o que se passou com o vazamento de um grande lote de e-mails de dentro da Federação do Comércio do Rio de Janeiro -um crime que deve ser apurado no âmbito de um inquérito já aberto em fevereiro na polícia fluminense.

Milhares de mensagens nesse vazamento parecem não ter importância. Mas algumas delas, no período de 2008 a 2011, demonstram como o então governador do RJ, Sérgio Cabral (PMDB), não fazia cerimônia ao pedir favores ao presidente da Fecomércio, Orlando Diniz. E como Diniz usufruía do prestígio do político.

Cabral e Diniz são amigos e vizinhos em dois endereços. Eles moram no mesmo edifício na rua Aristides Espínola, no Leblon. O ex-governador ocupa o apartamento 401. O presidente da Fecomércio, o 201. Ambos também usam casas de veraneio em Mangaratiba, pequeno município situado 85 km ao sul da cidade do Rio de Janeiro.

MASTERCHEF

"Querido Orlando (...) esqueci um pedido. Dá pra conceder um aumento para a minha chef Ana Rita? Ela é sensacional", escreveu Sérgio Cabral num e-mail enviado de seu aparelho celular BlackBerry, no início da madrugada de 12 de maio de 2009. A resposta, pela manhã: "Oi sergio estou chegando na sede já vejo isso abc orlando". Antes do almoço, o então governador respondeu: "Maravilha".

A chef de cozinha Ana Rita Menegaz dá expediente no Palácio da Guanabara, sede do governo do Estado do Rio de Janeiro. À época dessa troca de mensagens, recebia um salário de aproximadamente R$ 8.700 do Senac (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial), entidade sob o comando da Fecomércio.

Na manhã de 19 de maio de 2009, Diniz mandou uma mensagem curta para Cabral, sem pontuação entre as palavras: "Bom dia Sérgio caso Ana Rita resolvido 10.369,29 Abc Orlando". Era o salário da cozinheira reajustado: R$ 10.369,29. "Excelente! Muito obrigado!!", escreveu o governador no dia seguinte. Hoje, os vencimentos da chef estão na faixa de R$ 15 mil.

Ana Rita não quis comentar a promoção. A Folha a encontrou por celular em junho e explicou o assunto da entrevista. A chef ouviu e em seguida disse que a ligação havia perdido qualidade -"Não estou entendendo". Ainda assim, conseguiu recomendar à reportagem que procurasse a assessoria do Senac. Não atendeu mais as ligações.

Não há nada de ilegal na situação funcional de Menegaz. Ela ganha pelo Senac e presta serviços no Palácio da Guanabara. É responsável pelo dia a dia da cozinha e por preparar os banquetes para ocasiões especiais. Quem busca referências sobre sua capacidade de trabalho encontrará elogios semelhantes ao "ela é sensacional" escrito por Sérgio Cabral.

Mas chama a atenção o governador de um dos mais importantes Estados da Federação encontrar tempo, no início de uma madrugada, para pedir um aumento para sua chef de cozinha. Consultado, Cabral não quis falar. Por meio de sua assessoria, declarou que preferia não comentar um fato divulgado pela ação de um crime, a violação da privacidade de seus e-mails.

A assessoria e o advogado de Diniz dizem que nada de ilegal ocorreu. A presença de alguém do Senac no Palácio da Guanabara compensaria o salário de Ana Rita, por expor a marca da entidade e a excelência dos serviços prestados pela sua mão de obra.

O advogado de Orlando Diniz também declarou que o presidente da Fecomércio não usava a conta de e-mail que aparece no lote de mensagens incluídas no vazamento. A Folha tem segurança, entretanto, sobre a integridade do material. São 62 gigabytes de dados que não sofreram alterações ao serem extraídos dos computadores da Federação do Comércio.

A Folha teve acesso ao conteúdo dos e-mails e perguntou à Confederação Nacional do Comércio se a entidade tinha conhecimento dos dados -pois a CNC havia atuado como interventora do Sesc e do
Senac do Rio. Eis a resposta:

"A CNC confirma ter recebido conteúdo documental que corresponde exatamente ao apresentado em sua consulta. Tais documentos chegaram a nosso conhecimento por via de denúncia anônima. Não realizamos nenhuma averiguação sobre os documentos mencionados por não terem sido os mesmos encaminhados pelas vias oficiais".

INTIMIDADE

Sérgio Cabral e Orlando Diniz são da mesma geração. O primeiro tem 51 anos. O segundo, 50. Ambos frequentam eventos sociais semelhantes. Nos e-mails que trocam, demonstram manter uma relação de proximidade, inclusive entre suas famílias.

Em agosto de 2009, Orlando Diniz escreve convidando Cabral e a mulher, Adriana, para a "abertura da exposição Channel" na Mansão Figner, um centro de artes mantido pelo Sesc. "Querido Orlando, com o maior prazer", aceita o então governador, que no dia seguinte pergunta: "Você vai pra Mangá nesse fim de semana?". "Mangá" é Mangaratiba.

Favor com favor se paga. Diniz ajudava Cabral com promoções e empregos para amigos e parentes. Mas também fazia seus pedidos. Por exemplo, no início de 2009, quando comerciantes do Rio estavam alarmados com a criação de novos feriados, que "diminuem a arrecadação do Estado", como escreveu o presidente da Fecomércio em um e-mail ao governador. Uma lei estadual havia sido aprovada pela Assembleia Legislativa fluminense para impedir a introdução de novas datas festivas com paralisação das atividades econômicas. Faltava sancionar a nova regra.

"Tem alguns assuntos junto ao Executivo que são de suma importância. O projeto de lei 1.339/08-feriados que temos interesse na sua sanção (...) Solicito uma audiência", escreveu Diniz para o e-mail pessoal do governador. Cabral estava em viagem internacional. Respondeu ao desembarcar em Londres, às 5h07: "Querido Orlando, com o maior prazer. Quanto à sanção, já o fiz. Relaxe."

CUNHADA

Em meio a um convite e outro para atividades sociais, aparecem outros favores pedidos por Cabral. Como em 22 de setembro de 2008: "Presidente [Orlando Diniz]. Trata-se da minha cunhada. Publicitária com enorme experiência em grandes agências de publicidade. Te agradeço. Sérgio".

Abaixo dessa solicitação está reproduzida a íntegra de um e-mail de Mauricio Cabral, irmão do governador do Rio. Explica que ficou sabendo "que há uma vaga no depto. de marketing do Senac". E emenda: "Tem chance de indicar a Jacqueline para esta vaga?". Jacqueline é a cunhada citada por Sérgio Cabral no e-mail a Diniz.

Em novembro de 2009, um funcionário público "amigo há 35 anos" pede uma promoção para a mulher, que já trabalha no Senac do Rio. Cabral encontra tempo para encaminhar o pedido às 16h35 de uma quinta-feira. Na mensagem para Orlando, escreve: "Te agradeço se puder promover".

Em 24 de fevereiro de 2011, logo cedo, às 9h17, o governador fluminense pede emprego para uma jornalista na assessoria de imprensa da Fecomércio. "Querido vizinho, é uma jornalista muito competente que está selecionada pelo teu pessoal (...) Ainda não foi decidida a sua contratação. Posso garantir que ela é muito competente!! Abs., Sérgio".

A contratação não sai. No mês seguinte, a mãe da jornalista então manda um e-mail fazendo um apelo a Sérgio Cabral e a Adriana Ancelmo, a então primeira-dama. A mensagem é encaminhada a Orlando, na Fecomércio: "Querido amigo, você poderia atender aquele meu pedido? Abs., Sérgio".

Em setembro de 2009, outro assunto ligado à parentela do governador. "Querido Orlando, Vamos resolver o assunto da minha prima!!", escreve Cabral, repassando um pedido de colocação no Sesc "para complementar" a renda de pessoa de sua família. E o presidente da Fecomércio: "Já não foi? Tem certeza? Vou conferir. Abraço, Orlando".

Em seu perfil, no site da Fecomércio, Orlando Diniz se apresenta como alguém que "tem investido toda sua energia na articulação entre governo, sociedade e empresários, objetivando um ritmo maior para desenvolvimento econômico do Rio de Janeiro".

Muitas das contratações e promoções solicitadas por Cabral não foram atendidas, informou um advogado de Orlando Diniz. Mas o mesmo advogado também informou que os e-mails poderiam não ser do presidente da Fecomércio.

FERNANDO RODRIGUES, 51, é jornalista da Folha em Brasília e colunista do jornal.


Endereço da página: