Folha de S. Paulo


Sigmund Freud analisa Gustav Mahler

Leiden, Holanda
Agosto de 1910

Gustav Mahler marcou três encontros com Sigmund Freud, e nas três vezes decidiu cancelar. Freud deixou claro que, se o compositor voltasse a desmarcar a consulta, não teria outra oportunidade.

A mulher de Mahler, Alma, vem insistindo. O casamento dos dois, sempre cambaleante, agora está mesmo em crise. Gustav tem cinquenta anos e é quase duas décadas mais velho que Alma. Quando se casaram, há oito anos, poucos amigos acharam que fosse durar. "Ela é uma beldade célebre, acostumada a uma vida social glamourosa, e ele é desapegado das coisas mundanas e adora ficar sozinho", observou um amigo de Mahler, o maestro Bruno Walter.

Alma é gregária e sedutora.1 Gustav é introvertido e ascético. Quando ficam noivos, Alma demonstra interesse em seguir a carreira de compositora, mas Gustav a proíbe. "Você deve se entregar incondicionalmente, moldar a sua vida futura, em todos os detalhes, inteiramente de acordo com as minhas necessidades [...]. O papel de compositor é o meu - o seu é o da companheira amorosa."

Em julho de 1910, Mahler abre uma carta erroneamente endereçada a ele, escrita na verdade para Alma.2 O remetente é o jovem amante da mulher de Mahler, Walter Gropius, afirmando que não consegue viver sem ela e instando-a a largar o marido. Mahler põe Alma contra a parede e ela atribui a culpa ao próprio Gustav: "Passei anos ansiando por seu amor, e ele, absorto em sua fanática concentração por sua própria vida, simplesmente me ignorava".

Mahler promete que vai se emendar; Alma concorda em ficar. Se antes Gustav a tratava com indiferença, agora desenvolveu um ciúme passional, nas palavras de Alma, "de tudo e de todos [...]. Muitas vezes eu acordava no meio da noite e ele estava de pé, ao lado da cama, no escuro". Mas ela não se livra de Gropius e mais uma vez é forçada a escolher. Decide ficar com Mahler, sob uma condição: que ele procure Freud.

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Mahler desconfia da psicanálise há muito tempo. Três anos atrás, quando um amigo mencionou o nome de Sigmund Freud, o maestro vociferou que a psicanálise não lhe interessava: "Freud tenta curar ou solucionar tudo a partir de um certo aspecto". O amigo observou que "ele aparentemente relutou, na presença da mulher, em usar os termos apropriados".

No final de agosto, Mahler finalmente marca a consulta. Freud interrompe as férias no litoral e pega um trem até Leiden.

Os dois fazem uma longa caminhada pela cidade, conversando durante quatro horas.3 Para os passantes, deve parecer uma dupla bizarra: Freud tem mais de um metro e oitenta de altura, e Mahler pouco mais de um e sessenta; o compositor tem um modo de andar incomum: passos largos e irregulares, interrompidos por uma estranha batida do pé.4

Depois de ouvir os problemas conjugais de Mahler, Freud diz que a diferença de idade do casal, que o maestro tanto teme, é precisamente o que o atrai em Alma. "Você amava tanto a sua mãe que a procura em todas as mulheres. Ela era carinhosa e enfermiça, e, inconscientemente, você deseja que a sua mulher seja igual."

Quando Gustav relata a Alma essas conclusões, ela julga que Freud acertou na mosca. "Ele está certo em ambos os casos. A mãe de Mahler se chamava Marie. O primeiro impulso dele foi mudar o meu nome para Marie, apesar da sua dificuldade em pronunciar o r. E, quando ele me conheceu melhor, quis que o meu rosto fosse mais 'pesaroso' - palavra dele próprio. Quando ele disse à minha mãe que era uma pena ter havido tão pouca tristeza na minha vida, ela respondeu: 'Não se preocupe - isso ainda virá'." Alma também concorda com o diagnóstico que Freud faz da fixação dela própria pelo pai. "Sempre procurei um homem pequeno, fraco, que tivesse sabedoria e superioridade espiritual, pois era isso o que eu amava no meu pai."

Freud também fica impressionado com Mahler; jamais conheceu alguém que compreenda tão rápido a psicanálise.

"Mahler disse que agora entendia por que razão sua música sempre tinha sido impedida de alcançar o ponto mais alto nas passagens mais nobres, inspiradas por emoções profundas, sempre arruinadas pela intromissão de alguma melodia trivial. Seu pai, aparentemente uma pessoa brutal, tratava muito mal a mulher, e quando criança Gustav testemunhou uma cena especialmente dolorosa entre o casal. Foi algo insuportável para ele, que saiu correndo de casa. Naquele momento, porém, encontrou na rua um realejo tocando a popular cantiga vienense 'Ach, du Lieber Augustin'. Na opinião de Mahler, a conjunção de alta tragédia e diversão ligeira ficou desde então transfixada em sua mente, e um estado de espírito traz inevitavelmente o outro."5

É claro que é isso o que as pessoas admiram em sua música, é o que a torna inovadora e moderna. Mas, para os artistas, pode ser difícil diferenciar as suas próprias forças e fraquezas, já que ambas coexistem muito proximamente.

Depois da sessão peripatética com Freud, Mahler entra num estado de júbilo. "Sentindo-me animado. Discussão interessante", ele telegrafa a Alma, e, mais tarde, "Vivendo como se tudo fosse novo". No trem, de volta para casa, escreve versos sobre o encontro:

As sombras da noite se dissiparam graças a uma palavra potente.
Acabou o incessante latejar dos tormentos.
Agora unidos, mesclados num só acorde, finalmente,
Meus tímidos pensamentos e tempestuosos sentimentos.

Após retornar, Mahler olhou novamente as composições de Alma e começou a tocá-las no piano. "O que eu fiz? Essas canções são boas, são excelentes [...]. Não vou descansar até que você comece a trabalhar de novo. Deus, como fui tacanho naqueles dias!"

Mahler dedica à mulher sua "Oitava Sinfonia", que ele rege em 12 de setembro de 1910; e também publica cinco "lieder" de Alma, que estreiam em Viena e Nova York.

Nove meses depois, em 18 de maio de 1911, Mahler morre de endocardite bacteriana.6 Meses depois, Freud se dá conta de que jamais enviou a nota da consulta, e então providencia uma, datada de "Viena, 24 de outubro de 1911", anexa dois selos e despacha para a viúva de Mahler, "por serviços prestados".

NOTAS:

1. Ela teve relacionamentos amorosos com Gustav Klimt, Max Burckhard, Alexander Zemlinsky e Oskar Kokoschka, entre outros. Casou-se com Gustav Mahler em 1902, com Walter Gropius em 1915 e com Franz Werfel em 1929.

2. "Na ocasião Gustav acreditou - e passou o resto da vida convencido disso - que o arquiteto tinha endereçado propositalmente a carta para ele, como uma maneira de lhe pedir a minha mão em casamento", escreveria Alma anos mais tarde.

3. Os psicanalistas contemporâneos parecem acreditar que uma consulta tão breve não pode ser classificada propriamente como psicanálise. Ainda assim, em muitos sentidos parece ter sido mais produtiva e mais construtiva do que muitos tratamentos que duram a vida inteira.

4. Na festa de casamento de Mahler, sua sobrinha Eleanor foi flagrada imitando o modo de andar do compositor, e por causa disso foi mandada para casa, em desgraça.

5. "O uso do trivial lugar-comum [...] como meio de expressão prenuncia a principal tendência da arte do século xx", escreveu Donald Mitchell em seu ensaio "Mahler e Freud" (1958). O próprio Freud não era capaz de julgar música: era surdo para notas musicais e melodias.

6. Alma viveria por mais 53 anos. Morreu em 1964.

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Este texto é um capítulo do livro "Um por Um", de Craig Brown, lançado pela editora Três Estrelas. [trad. Renato Marques; R$ 59,90 (536 págs.)]


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