Folha de S. Paulo


O escritor Junot Díaz fala de imigração, machismo e de xingar em espanhol

O autor dominicano se tornou uma das vozes da América contemporânea

Chego cedo ao B&G Oysters, um restaurante arrumadinho na Back Bay de Boston, e abro "Drown", o primeiro livro de Junot Díaz, no glossário. Incluído por insistência do editor, o glossário oferece um vislumbre dos temas caros ao escritor nascido na República Dominicana. Lá encontro "FOB" [saído primeiro do barco], "carajo" [um palavrão] e "zángano" [uma pessoa que muito fala e nada faz]. E, claro, encontro também "cojones" [culhões] e "nalgas" [nádegas]. O glossário também oferece um cumprimento conveniente. "Como te sientes?", eu pergunto ao vê-lo descendo as escadas.

"Bem, irmão", diz Díaz. E ele tem direito a isso. Desde a publicação de "Drown", em 1996, o escritor recebe elogios que fariam um tirano corar. O primeiro de seus livros, uma coleção de contos passados em suas "duas casas", Nova Jersey e a República Dominicana, funde inglês e espanhol com gírias de hip-hop e jargão de pós-graduação, e fervilha com uma cadência furiosa. O livro fez de Díaz, 45, um astro; lá estava uma voz pronta a ecoar na América poliglota contemporânea. O "New York Times" comparou "Drown" a "Huckleberry Finn". Seu segundo livro, o romance "A Fantástica Vida Breve de Oscar Wao" (2007), lhe valeu o prêmio Pulitzer. Em 2012, ele recebeu uma bolsa "para gênios" da Fundação MacArthur.

Lily Oei/Bloomberg News
O escritor Junot Díaz
O escritor Junot Díaz

Encontramos uma mesa nos fundos da seção coberta do restaurante, espaçosa e brilhantemente iluminada. Díaz mantém uma postura rígida; quando tinha pouco mais de 20 anos, machucou as costas em uma entrega de mesas de piscina –o emprego que encontrou para ajudar a pagar a universidade. Usando óculos e um cavanhaque, ostentando uma calva cuidadosamente raspada a gilete, e mantendo uma pose controlada que apenas o movimento constante de sua perna direita atraiçoa, o escritor se assemelha a um mestre batalhando para manter a calma zen.

Ele vive em Cambridge, separada de Boston pelo rio Charles, desde 2003, quando começou a lecionar redação criativa no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Em seu terceiro e mais recente livro, "É Assim que Você a Perde" (2012), Yunior, o narrador da maior parte das histórias de Díaz, se queixa de se sentir "exilado" em Boston, uma cidade "sem graça". Mas Díaz me diz que considera a cidade, bem como "o fosso que separa cidade e universidade", "infinitamente fascinante".

Ele diz que sempre vem a esse restaurante com sua parceira, Marjorie Liu, paranormal e romancista de fantasia. Por recomendação (remota) dela, escolho um salmão ao molho tártaro e um lobster roll, acompanhados por uma garrafa pequena de Harpoon IPA, uma cerveja artesanal local. Díaz não pede álcool, e escolhe chá verde, salada de tomate e os "temíveis" mariscos fritos.

O prato é "uma coisa da infância". Quando Díaz tinha seis anos, sua família se mudou da República Dominicana para a costa de Nova Jersey. Muitos de seus contos retratam o jovem Yunior e seus pais enfrentando as dificuldades da vida como imigrantes recentes. "Os Estados Unidos são um lugar difícil, onde até o diabo termina apanhando", diz a mãe de Yunior em "Invierno". No mesmo conto, Yunior, como Díaz incapaz de falar inglês quando menino, brinca na neve com uma menina do bairro. "Ficamos sentados lá por algum tempo, minha cabeça doendo com o desejo de me comunicar."

Digo a ele que considero suas histórias como uma resposta inspiradora à retórica política que muitas vezes obscurece a realidade das vidas dos imigrantes recentes. "Nossa visão de uma comunidade de imigrantes e da experiência do imigrante é altamente moralista", ele diz. "Sinto que nossa realidade é como um encontro entre William Gibson e Toni Morrison, mas a forma pela qual interpretamos a moralidade dos imigrantes vêm direto de Chaucer". Em outras palavras, a jornada da imigração não é a única característica de um imigrante; eles têm vidas complexas. Díaz acrescenta que as "molduras" pelas quais muita gente no Ocidente compreende os imigrantes, por exemplo como uma fonte de mão de obra barata, "tendem a ser altamente simplistas e altamente redutoras, e nada generosas, estranhamente".

Em que medida Díaz se viu propelido pelas experiências de sua família? Ele responde quando a comida chega à mesa –entradas e pratos principais com um forte cheio de mar. "Cresci em uma família onde todos se sentavam juntos à mesa mas não se comunicavam –falávamos, mas não nos comunicávamos". Essas múltiplas gerações não conseguiam entender as vidas umas das outras. "Sempre tive o desejo de colocar nos livros as conversas que nunca aconteceram em minha casa", ele diz.

Em "Otravida, Otravez", de "É Assim que Você a Perde", Díaz descreve as dificuldades de Ramon para encontrar emprego fixo, sustentar a família, comprar uma casa. Os imigrantes de segunda geração, diz o escritor, "não sabem coisa alguma sobre essa merda, e precisam ser expostos à experiência dolorosa, à evisceração, ao combate em linha de frente, dos imigrantes de primeira onda". A voz dele, que tem a levada metódica de um professor universitário mas é pontuada por gírias de rapper, estende imensamente a palavra "evisceração", retorcendo-a a cada sílaba.

Enquanto me esforço para manter os membros trêmulos da lagosta dentro do brioche em que ela é servida, sugiro que a história de Ramón, como outras em "É Assim que Você a Perde", revela o poder exercido pela cultura do país de destino. Será que Ramón não está buscando o sonho americano? "Acredito mesmo que seja muito, muito verdade que nossas narrativas e nossos roteiros nos envolvem e propelem, mesmo em momentos em que já não os sentimos mais", ele afirma. No caso de Ramón, "é difícil decidir que parcela de sua motivação vem dele e que parte depende do fato de que seguimos esses roteiros que nos mantêm vivos: família. Trabalho. Lar. É quase como uma versão laica da força de ascensão".

A escrita de Díaz representa em parte um esforço de descrever "essa encruzilhada norte-americana na qual cresci e na qual todas essas culturas entravam em contato umas com as outras". Como Saul Bellow, cronista urbano da experiência judaica nos Estados Unidos, ele funde um idioma estrangeiro (o iídiche, para Bellow; o espanhol, para Díaz) com o inglês e com o jargão vernáculo. Em "Oscar Wao", Díaz descreve como o personagem título, um "namorado apaixonado", com seu "placar triplo zero com as damas", observa as jogadoras de um time de vôlei e encontra "latinas gostosas demais que só namoravam morenos levantadores de peso ou malandros latinos que escondem armas em seus apartamentos". Já Yunior é "um sucio, um cuzão".

Mastigando ferozmente sua montanha de mariscos, Díaz acrescenta que sua escolha de palavras tem propósito instrumental. "Acredito firmemente que a experiência da leitura é um forte convite ao leitor para que se aproxime dos outros, forme uma comunidade ao encontrar uma linguagem que não compreende". Isso implica sua irritação quanto à inclusão do glossário em "Drown". Foi só quando ele chegou aos 13 anos que o inglês se tornou o seu idioma principal para pensar. "Jamais pensei em todos esses idiomas e todas as múltiplas culturas, como temíveis, como restritas, como algo que não me permita entrar".

A prosa hiperativa de Díaz é explícita. Ao descrever a obsessão de um "apparatchik" depravado com a irmã de Oscar Wao, ele escreve: "O Gângster era um homem do mundo, que já tinha fodido mais prietas do que somos capaz de contar", e acrescenta descrições genitais que causariam horror ao guia de estilo do "Financial Times".

Fico imaginado, com isso, qual é o melhor idioma para palavrões. "Creio que os palavrões ingleses são muito mais fortes e diretos. No espanhol, eles são muito mais pessoais. Os xingamentos em espanhol eu sinto na medula. Embora eles às vezes demorem um pouco para fazer efeito. Você faz aquela pausa e pensa, 'uau'. Em inglês não há pausa. É só dizer que aquele 'motherfucker' fez isso ou aquilo".

Ele foi criticado pela maneira com que retrata as mulheres –ou melhor, pela sua forma de retratar a maneira de Yunior retratar mulheres. Há, entre outros exemplos, a chica com "aquela imensa bunda dominicana que parecia existir em uma quarta dimensão além dos jeans". Em artigo para a revista "Elle", Virginia Vitzhum elogia a obra de Díaz, mas argumenta que "sua constante desconsideração às mulheres, como nada mais que conjuntos de culos e tetas, bate a porta em minha cara".

O machismo ereto de seus personagens, diz ele, é uma trama deliberada, com fins críticos. Quando aluno da Universidade Rutgers, no final dos anos 80 e começo dos 90, ele viu escritoras negras como Alice Walker acusadas por colegas homens de "patologizar os homens negros para o consumo de audiências brancas". Mas Díaz relembra a "cultura hipermachista" em que cresceu e acredita que "a representação masculina na escrita dessas mulheres era um ato de generosidade".

Por isso, ele buscou "não só confirmar mas estender as críticas dessas escritoras negras ao 'erguer um espelho'" que exibisse o tipo de sujeito com o qual ele cresceu. Mastigando os bocados finais dos mariscos, Díaz recorre a uma explicação digna de um seminário sobre teoria cultural. "Vivemos em um imaginário patriarcal no qual os homens não são capazes de conceituar as mulheres como plenamente humanas", mas em seguida acrescenta um toque de malandragem dominicana –"o que importa é a maneira pela qual essa merda reside em nós, como isso simplesmente vive em nós, cara, mesmo que sejamos bons sujeitos. Isso deveria fazer com que qualquer filho da puta parasse para pensar".

Há mais que teoria feminista por trás de sua crítica implícita à masculinidade. Como os homens de "É Assim que Você a Perde", o pai de Díaz, segundo o escritor, era infiel e galinha. E ele por algum tempo seguiu seu exemplo. "Acordei um dia e pensei comigo mesmo que eu era meu pai. Acordei um dia e pensei que tinha me tornado um calhorda igual ao homem que havia me transformado em vítima e partido meu coração quando menino". O pai dele, veterano do exército, impunha disciplina feroz aos cinco filhos (quatro meninos, uma menina), ainda que não seguisse a mesma disciplina. Díaz diz que o pai não fala com ele ou com qualquer de seus outros filhos desde que o escritor tinha 19 anos; ele "desapareceu completamente".

"Quando você tem nove anos de idade e seu pai prefere piranhas catadas na rua a ficar com você, é difícil comunicar o que isso significa para uma criança. Acredito que minha incapacidade de me comunicar comigo mesmo eu traduzo na forma de Yunior". Díaz não planeja ter filhos –"acho que, a essa altura, é tarde demais para mim".

Sua família seguia uma rígida ética militar. Para mim é difícil coadunar essa imagem com a do escritor casual e informal que insiste em que eu "experimente esses mariscos, porra".

"Não falo muito sobre isso", diz Díaz, ainda que a influência desse período persista. Os três irmãos dele todos se alistaram; sua irmã se casou com um militar e nos anos 80 vivia em uma base de blindados na Alemanha. Se Díaz não tivesse conseguido admissão à universidade, ele teria se alistado no exército. "Acho que sou uma personalidade casual mas com uma estrutura muito formal do velho mundo", ele diz. A mãe de Díaz é tratada por "señora" em casa –"pense só: chamar a mãe de senhora". No MIT, ele insiste em que os alunos se chamem pelo prenome. Durante nosso almoço, ele me trata por "irmão" ou "sir". E depois que pedimos café em lugar da sobremesa, ele pergunta se tudo bem ir ao banheiro. Respondo que não é problema.

Refrescado, ele prossegue no tema. "Na nossa família, jamais houve qualquer celebração de realizações, nunca", ele diz. "Lembro-me de que quando ganhei o Pulitzer, não houve festa ou celebração". Os amigos dele terminaram por intervir e disseram "foda-se a sua família, venha beber com a gente". "Foi só então que eu percebi que o jeito da minha família ainda pesa muito sobre mim".

O sucesso foi uma libertação para ele? "Tenho aquele medo profundo de catástrofe que muitos imigrantes têm", ele responde. Nos 11 anos que separam "Drown" e "Oscar Wao", ele só faturou US$ 50 mil com a venda de livros, desconsiderados os impostos. As coisas melhoraram, mas ele continua a lecionar no MIT. Gosta dos alunos, que diz serem melhores por não quererem ser romancistas, ao contrário do que acontece em outros cursos de redação criativa. "Se você acha que aprender salsa é o seu futuro, logo se torna insuportável nas aulas de salsa".

Além disso, o MIT lhe oferece um plano de saúde, e a bolsa MacArthur "é uma boa grana" (US$ 100 mil ao ano por cinco anos), mas ele sofre com as costas. Díaz estima que o Pulitzer tenha valido 400 mil cópias vendidas adicionais para seus livros, mas o problema é que "sou o escritor mais lento que existe". Três livros em duas décadas, de fato, dificilmente é uma produção digna de Agatha Christie. Será que não ter produzido mais o incomoda?

"Temos um compromisso para com a ideia de que um livro precisa viver no presente, mas a realidade, que é difícil para nós reconhecer, é a de que o livro tem de viver no futuro". Ele estima, por exemplo, que hoje em dia haja probabilidade de apenas 50% de que uma livraria tenha um livro de Norman Mailer em papel à venda. "Uma pessoa que vivesse nos anos 70 jamais imaginaria que isso pudesse acontecer". A volatilidade do presente propicia algum conforto ao escritor, no entanto: "Seria muita sorte para mim que um dos meus livros sobrevivesse no futuro".

Houve rumores de que o próximo livro de Díaz se passará no futuro. Ele admira fantasia, ficção científica e quadrinhos. "O Senhor dos Anéis", de Tolkien, é um dos livros que ele diz que gostaria de ter escrito. "Oscar Wao" toma por estrutura os quadrinhos do Quarteto Fantástico, ideia inspirada por "Tempestade de Gelo", romance de Rick Moody. O livro também está repleto do que o personagem título define como "referências de gênero". "O mano carregava sua nerdice do mesmo jeito que um Jedi carrega seu sabre de luz", escreve Díaz sobre Oscar, para quem as mulheres eram "o começo e o fim, o alfa e o ômega, a DC e a Marvel".

Díaz diz que o mercado de livros desempenhou papel importante em "dar a formas marginais [de ficção] uma posição central". "Muitos escritores descobriram que escrever uma história sobre um lobisomem é bom para a conta bancária". Mesmo assim, esse tipo de ficção não é aceito plenamente pelos críticos convencionais. "Existe um forte conceito de que o 'escapismo' não realista não é sério, é juvenil".

De fato, formas "escapistas" de literatura podem ser profundas. "Os gêneros são bons para pensar sobre aquilo que fica além dos limites, além da análise de nossos discursos respeitáveis e realistas". Incorporar essas outras formas de escrita também serve a um propósito político, de forma semelhante ao seu amálgama de espanhol, inglês e gíria. "Também existe um senso de que existem conversações [na ficção de gênero] que a sociedade mais ampla preferiria não ter".

A essa altura, diz Díaz, ele estaria feliz se seu próximo romance fosse "só Um Romance". Terminado o café, nos preparamos para sair. Tento uma vez mais perguntar se sua intrigante mistura de malandragem e academicismo o levará a tentar a ficção científica. "Eu não me incomodaria em tentar alguma coisa que me desafie em termos de forma e de gênero; há conversações das quais desejo fazer parte. Mas nem todo mundo é capaz de jogar críquete, cacete".

JOHN MCDERMOTT é colunista do "Financial Times"

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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