Folha de S. Paulo


O que esperar da chegada de El Niño, o menino travesso do clima

RESUMO El Niño deve voltar a ocorrer na virada de 2014/15, mas, segundo indicadores mais recentes, terá intensidade moderada ou fraca. Ainda assim pode trazer de volta a seca para o Nordeste, já castigado em 2012 e 2013 com a pior estiagem em 80 anos, pouco divulgada pela mídia e que consumiu R$ 9,1 bilhões do governo federal.

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El Niño vem aí. É certo que o ano de 2014 verá repetir-se o aquecimento anormal das águas do Pacífico Leste que costuma pôr a atmosfera mundial em polvorosa. Estima-se que a probabilidade de ele chegar antes de setembro seja de 70%, e de outros 80% até o mês de dezembro.

Quem mora na região metropolitana de São Paulo e se apavora com um possível agravamento da seca que reduziu a pó (ou lama) os reservatórios do sistema Cantareira -fonte de abastecimento para 9 milhões de pessoas- pode esquecer El Niño. O nível continuará baixando, mas o Pacífico nada terá a ver com isso.

Antonio Malta Campos

"A relação do El Niño com chuvas no Sudeste é zero", diz Gilvan Sampaio de Oliveira, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Quando muito, o menino travesso do clima ocasionará temperaturas ligeiramente mais altas no final do inverno e na primavera de paulistas, mineiros, fluminenses e capixabas.

Os maiores estragos causados pelo fenômeno se concentram no Nordeste e na Amazônia, onde ocasiona estiagens graves. No último El Niño de grande intensidade, 1997-98, a floresta ressequida pegou fogo em Roraima, levando à destruição de 11 mil km² de matas. Em outra ocasião, entre 1982 e 83, prolongou uma seca iniciada em 1979 que pode ter feito mais de 100 mil mortos no Nordeste.

A perspectiva de um El Niño forte preocupa porque o semiárido nordestino acaba de atravessar dois anos de seca (2012-13). Foi a pior dos últimos 80 anos. A precipitação ficou abaixo da média de abril de 2012 até março deste ano.

Pereceram 4 milhões de reses, com prejuízo de R$ 3,2 bilhões para a pecuária. A safra agrícola teve quebra de 21,5%, com perdas de 70% na de algodão e de 29% na de feijão. Só o governo federal despendeu R$ 9,1 bilhões para atenuar o efeito social da ausência de chuvas na região.

Não há razão para alarme -ainda. Embora o próximo advento do El Niño sejam favas contadas, a maior chance, hoje, é de que se revele fraco ou moderado. Isso significa que seus efeitos se concentrariam na primavera do hemisfério Sul, quando não chove mesmo no Nordeste brasileiro.

CAJU

As águas podem começar a cair em dezembro, as chamadas "chuvas do caju". Se não vierem até 19 de março, dia de são José, todo sertanejo sabe, o ano estará perdido. "O clima do Nordeste está totalmente relacionado às condições oceânicas", diz Sampaio de Oliveira, do Inpe. "É um dos mais previsíveis do mundo."

A correlação de anos de El Niño com secas no semiárido brasileiro é muito forte. Só no século 20, houve 18 casos de coincidência. Como se explica, contudo, que uma alteração de temperatura num oceano que nem mesmo banha o Brasil possa desencadear hecatombes como a de 1877-79, com 3 milhões de flagelados e talvez 500 mil mortos de fome e varíola?

O normal é que as águas superficiais do Pacífico, aquecidas pelo sol, sejam empurradas na direção da Indonésia pelos ventos alísios, que sopram de leste para oeste. Por motivos desconhecidos, porém, em alguns anos esses ventos se enfraquecem. O bolsão de água quente se desloca para a costa ocidental da América do Sul e provoca chuvas sobre uma região usualmente seca.

Os efeitos planetários dessa anomalia são vários. A pesca no litoral do Peru e do Chile pode entrar em colapso na época do Natal (daí a alusão ao menino Jesus, "El Niño"). Enchentes no sul da América do Sul e estiagem no leste da Amazônia e no Nordeste. Secas na Indonésia e na Austrália. Atraso e enfraquecimento das chuvas de monção na Índia -como, de resto, já está acontecendo.

Na origem do fenômeno está o que se chama de célula de Walker. O oceano aquecido gera uma corrente ascendente de ar na região da Indonésia, que normalmente desce -quente e seco- a milhares de quilômetros dali, sobre o litoral oeste da América do Sul.

O padrão de circulação foi descoberto pelo físico Gilbert Thomas Walker (1868-1958). Diretor dos Observatórios Britânicos na Índia, estudou o fenômeno das monções, cujo colapso causou fome generalizada na colônia em 1899.

Nos anos de El Niño, a célula se desloca para leste, e o braço descendente se transfere para o Norte e o Nordeste brasileiros, onde previne a ocorrência de chuvas. Em contrapartida, o fenômeno aumenta a precipitação no Sahel, a zona de transição entre o Saara e as savanas africanas.

Assim como os camponeses pobres do Sahel, os privilegiados californianos também podem estar torcendo por um El Niño vigoroso. A anomalia levaria chuvas à estorricada Califórnia, que enfrenta incêndios causados por três anos consecutivos de estiagem, a pior em muitas décadas.

De acordo com os últimos dados da Administração Nacional de Oceanos e Atmosfera dos EUA (Noaa, na abreviação em inglês), de segunda-feira (30/6; tinyurl.com/z7jr4), contudo, a temperatura das águas do Pacífico, que vinha subindo até abril, perdeu força desde então. Para Sampaio de Oliveira, do Inpe, é um sintoma de que El Niño virá fraco ou moderado, e não intenso.

O Nordeste pode respirar, aliviado, se a previsão sobre os humores do Pacífico se confirmar. Mas só até o final do ano, porque o sertanejo tem outro algoz com que se preocupar, tão forte quanto ele, e muito mais próximo.

CONVERGÊNCIA

Os anos de 2012 e 2013, mesmo sem o advento de El Niño, trouxeram a pior seca ao Nordeste em oito décadas. O culpado, neste caso, foi o dipolo do Atlântico.

As chuvas que impedem o chamado Polígono das Secas -1.348 municípios, que cobrem 1,1 milhão de km²- de ser inteiramente árido se devem à Zona de Convergência Intertropical (ZCIT), de que se ouve falar às vezes nas previsões do tempo pela TV. Trata-se de uma banda de nuvens que se espalha pela região equatorial do planeta, no sentido leste-oeste.

A faixa úmida pode deslocar-se mais para o sul ou mais para o norte, em torno da linha do Equador. Se as águas do Atlântico ficarem mais frias ao sul do paralelo que separa os hemisférios, a ZCIT é empurrada para o norte, o que pode provocar até 80% de déficit de chuva no Nordeste brasileiro. E vice-versa (daí o nome "dipolo"): se as águas atlânticas se aquecem ao sul, chove mais no semiárido.

Como no caso do El Niño, os climatologistas não sabem bem por que ocorre essa oscilação de temperatura nas águas oceânicas. A única certeza é que tanto o Pacífico quanto o Atlântico, em geral, estão esquentando, na esteira do aquecimento global. Mas não há clareza quanto à hipótese de que a mudança climática venha a trazer El Niños mais fortes.

"O último relatório do IPCC [Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima] ainda não cravou grande confiança nessa previsão", diz Carlos Afonso Nobre, secretário de Políticas e Programas de Pesquisa e Desenvolvimento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), que supervisiona o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden).

"Há uma ligeira, talvez maior probabilidade de El Niños mais fortes pelo simples aumento das temperaturas do mar em todo o Pacífico, mas ainda não se pode dizer se, de fato, a frequência será substancialmente alterada."

Antonio Malta Campos

De todo modo, a ZCIT alcança seu ponto mais ao sul por volta da segunda quinzena de março. Não é por acaso, assim, que os habitantes do sertão nordestino elegeram o dia de são José como data-limite para sua expectativa de chuvas. Só no final de 2014, contudo, começará a ficar claro se o dipolo oscilará na direção da estiagem nordestina.

RETIRANTES

Tão avassaladoras quanto previsíveis, as secas do Nordeste deixaram marcas fundas na cultura e na história do Brasil. José do Patrocínio inaugurou a literatura da seca com "Os Retirantes" (1879). Euclydes da Cunha, com "Os Sertões" (1902), inscreveu a terra, o homem e a luta do semiárido no imaginário nacional como sinônimos de atraso e embrutecimento.

"A Bagaceira" (1928), de José Américo de Almeida, abriu uma longa linhagem de romances regionalistas centrados no homem nordestino andrajoso que abandona terra, plantação e gado mortos para buscar alimento e melhor sorte: "Andavam devagar, olhando para trás, como quem quer voltar. Não tinham pressa em chegar, porque não sabiam aonde iam. [...] Não tinham sexo, nem idade, nem condição nenhuma. Eram os retirantes. Nada mais". Uma década depois surge o clássico "Vidas Secas", de Graciliano Ramos.

O historiador Marco Antonio Villa estima, no livro "Vida e Morte no Sertão" (Ática, 2000), que 3 milhões de pessoas tenham morrido como vítimas das várias secas nordestinas de 1825 a 1984.

Apenas três décadas atrás, quando o maranhense José Sarney já entrara para a Academia Brasileira de Letras na vaga de José Américo de Almeida e se tornara candidato a vice-presidente na chapa de Tancredo Neves, ainda partiam os paus-de-arara -caminhões com bancos apinhados de retirantes- do Nordeste para o sul, e milhares de pessoas sucumbiam à fome.

As "soluções" para a região-problema nunca variaram muito: doações de alimentos para os flagelados (em geral desviados e vendidos no mercado paralelo), frentes emergenciais de trabalho, construção de açudes (em alguns casos, obras que duravam várias décadas), migração mais ou menos forçada para a Amazônia (como os quase 50 mil "soldados da borracha" recrutados na Segunda Guerra Mundial, entre os quais se estima que morreram 10 mil -contra os 443 que tombaram na Itália).

Toda uma burocracia surgiu para cuidar da seca sem, de fato, resolvê-la -do Departamento Nacional de Obras contra a Seca (Dnocs, nascido como Inspetoria em 1909) à Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene, criada em 1959 por Juscelino, "descriada" em 2001 por FHC e recriada em 2007 por Lula).

Açudes e poços de profundidade, escavados com dinheiro público, passaram a beneficiar mais os grandes proprietários, o que o jornalista Antonio Callado chamou de "indústria da seca" numa série de reportagens para o "Correio da Manhã", em 1959. A transposição do rio São Francisco, na visão dos seus críticos, representa somente a extensão -versão 2.0, turbinada- dessa política tradicional.

Dissipam-se bilhões em obras gigantescas e intermináveis, de novo, mas que não resolvem o problema da evaporação e servem mais para beneficiar uns poucos. E quase nunca, muito menos de forma permanente e sustentável, a população mais pobre. Esta pode até ser vizinha dos canais, mas não necessariamente terá acesso à água, pela falta de uma rede de distribuição eficiente (adutoras etc.) e pela prioridade dada à irrigação sobre o abastecimento.

CISTERNAS

Muita coisa mudou, contudo, no Nordeste. Não se tem notícia de pessoas morrendo de fome nas secas de 2012 e 2013, apesar de o gado morto ter rendido algumas imagens chocantes, mas que mal reacenderam o interesse da imprensa nacional pelas agruras da região mais pobre do país.

Não foi estiagem trivial. Nada menos que 1.243 de 2.429 municípios (51%) foram afetados -uma população de 9,8 milhões de habitantes. Um dos Estados mais prejudicados foi a Paraíba, onde a pecuária teve quebra de 29%.

Metade dos reservatórios da região semiárida caiu para um nível abaixo de 30%, o que levou o presidente da Agência Nacional de Águas (ANA), Vicente Andreu Guillo, a soar o alarme, há um mês, pela hipótese de El Niño.

Mesmo que ele venha, porém, o efeito mais temido será sobre o já estressado sistema elétrico nacional. É muito improvável que falte água para abastecimento residencial e alimentos para a população, como era a regra até há pouco.

Os bilhões despejados na região pelo governo Dilma, para mitigar os impactos da seca de 2012 e 2013, decerto contribuíram para a nova situação. Mas não foi só isso.

Um dos maiores entraves para a solução por meio da açudagem é a evaporação intensa. Para o consumo humano, a saída mais simples e eficaz são as cisternas, tanques de alvenaria ou plástico para armazenar água de chuva ou distribuída por caminhões-pipa.

Segundo o governo federal, já foram entregues 546 mil cisternas, 71% da demanda, calculada em 770 mil. A promessa é completar a cifra de 750 mil até dezembro deste ano. Outras 76 mil beneficiarão a lavoura de produtores rurais. Nada menos que 8.812 caminhões-pipa foram mobilizados para distribuir água, numa operação que envolveu até o Exército.

BOLSA ESTIAGEM

O assistencialismo campeou também na modalidade monetária. Agricultores com renda inferior a um salário mínimo e meio e que tiveram perdas de 50% da produção passaram a receber ajuda batizada Garantia-Safra, valor que varia de R$ 140 a R$ 155 mensais. Uma Bolsa Estiagem de R$ 80 por mês beneficiou 890 mil produtores que não se enquadravam nos requisitos da Garantia-Safra. Municípios receberam empréstimos emergenciais no valor de R$ 3,45 bilhões.

A paulatina transformação do Nordeste, entretanto, começou muito antes de Dilma Rousseff. Sua população rural, a mais vulnerável à estiagem, se reduziu a 27%. A renda aumentou. O Bolsa Família, a partir do governo Lula, e a aposentadoria rural, a partir dos anos 1990, tornaram obsoleta a figura dos retirantes da região.

No entanto isso ainda fica longe de configurar uma solução, assinala o historiador Marco Antonio Villa: "A miséria -ou pobreza, dependendo da cidade-, em termos estruturais, permanece. Os indicadores, como educação, mortalidade infantil etc., até melhoraram, mas não há uma economia local que permita dar um sentido para as comunidades", diz. "O sertanejo não migra pois o assistencialismo permite que ele sobreviva."

O que faltaria para o Nordeste, assim, seria abandonar os remendos emergenciais em favor de uma verdadeira adaptação -mesmo porque, se materializados os piores cenários do aquecimento global, a temperatura na caatinga pode elevar-se de 3,5°C a 4,5°C, e a precipitação, reduzir-se em 40-50% até o ano 2100, segundo o Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas. O semi-árido se lançaria então no caminho da aridização completa.

CATA-VENTOS

Em lugar de uma futura Bolsa Aridez, o sertanejo precisará de sistemas de irrigação com tecnologia avançada para minimizar a evaporação e a salinização dos solos. Mas parece evidente que o sertão tem capacidade só para uma população limitada, mesmo que a agropecuária se volte para atividades que demandem menos água, por exemplo substituindo gado bovino por caprino.

O processo de urbanização terá de ampliar-se. Para tanto, será necessário criar empregos nos setores de serviços e industrial.

O Nordeste tem uma vocação clara para complementar a energia hidrelétrica do Sudeste e do Centro-Oeste com fontes renováveis. É enorme o potencial para a energia eólica no litoral e para a solar (fotovoltaica) no interior.

"Isso pode gerar uma economia de base energética, na qual populações locais possam auferir algum ganho tanto no arrendamento de terras para cata-ventos e painéis solares como empregos urbanos para instalação e manutenção descentralizada dos parques de geração", prevê Nobre, do MCTI.

A transposição do rio São Francisco, nesse sentido, representaria mais do mesmo. O Nordeste precisaria de mais do novo, e não de rezas para que Pacífico e Atlântico se comportem.

MARCELO LEITE, 56, é repórter especial e colunista da Folha.

ANTONIO MALTA CAMPOS, 53, é artista plástico. Participa da coletiva "Pangaea: New Art from Africa and Latin America", até 2/11 na Saatchi Gallery, em Londres, e tem exposição individual em cartaz na galeria Pilar até 9/8.


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