Folha de S. Paulo


Europa enfrenta catástrofe humanitária com mortes de refugiados

ONU pondera criar centros de processamento de refugiados, com a aproximação da "temporada de navegação" que deve elevar fortemente o número de emigrantes

A ONU se viu forçada a considerar o estabelecimento de centros de processamento de refugiados na África do Norte e Oriente Médio, devido ao número cada vez mais alto de emigrantes que tentam a perigosa travessia do Mediterrâneo em um esforço desesperado para chegar à Europa.

A UNCHR, a agência de assistência a refugiados das Nações Unidas, declarou pela primeira vez que pode ser necessário conduzir o processamento em larga escala de refugiados e emigrantes fora da Europa, em países como o Egito, Líbia e Sudão, já as que as autoridades diretamente envolvidas com o problema alegam ter sido abandonadas por Bruxelas diante de uma "catástrofe humanitária colossal".

Centenas de milhares de pessoas estão se preparando para realizar uma travessia traiçoeira, em barcos precários, da costa da África do Norte para a Grécia e Itália, agora que está chegando o verão europeu, a tradicional "temporada de navegação", dizem as autoridades. Os números referentes aos primeiros meses deste ano já mostram alta dramática no número de emigrantes e refugiados, ante anos anteriores.

Filippo Monteforte/AFP
Imigrantes resgatados pela guarda costeira próximos a ilha de Lampedusa em outubro de 2013
Imigrantes resgatados pela guarda costeira próximos a ilha de Lampedusa em outubro de 2013

Vincent Cochetel, diretor de operações europeias da UNHCR, disse ao "Guardian" que "não seríamos totalmente opostos ao processamento externo se certas salvaguardas estivessem em vigor –direito de apelo, equanimidade processual, o direito de permanência enquanto transcorrem os apelos".

A União Europeia ainda não encontrou mecanismos efetivos para prevenir a morte dos emigrantes no mar, ele disse. Em lugar de concentrar seus esforços em endurecer ainda mais seus controles de fronteira, a União Europeia deveria estabelecer rotas seguras.

Os ativistas que trabalham pelos direitos dos refugiados até agora rejeitavam a ideia de grandes campos de processamento fora da Europa, temendo que os refugiados ficassem à mercê de países com históricos negativos de justiça e direitos humanos.

"Não há como isso funcionar", disse Judith Sutherland, da Human Rights Watch (HRW). "Em teoria, a HRW não vê problema na criação de canais de acesso a asilo na União Europeia por meio de centros no exterior, mas não é possível imaginar que as condições necessárias sejam criadas hoje na Líbia, ou mesmo no Egito e Marrocos".

A Grécia, atual detentora da presidência da União Europeia, também está pressionando pela criação de centrais de processamento de refugiados na África do Norte e Oriente Médio, a fim de tratar da situação dos refugiados e emigrantes antes que eles atinjam o território europeu. Além disso, o governo grego está pedindo a criação de uma força-tarefa marítima internacional para patrulhar o Mediterrâneo e tentar conter o influxo de migrantes. A Grécia apresentará suas propostas na conferência de cúpula da União Europeia dentro de um mês, de acordo com importantes funcionários do governo em Atenas.

"A formulação de uma política abrangente de imigração é uma das principais prioridades [da presidência grega], bem como da presidência italiana, que se seguirá à nossa", disse Evangelos Venizelos, primeiro-ministro assistente da Grécia.

"Os países mediterrâneos da União Europeia estão trabalhando em estreita cooperação. Mas a costa grega é mais longa que a de todos os demais países membros somados. Sem uma reavaliação substancial de políticas, não teremos como enfrentar a crise", ele acrescentou.

Miltiadis Varvitsiotis, o ministro grego da Marinha Mercante, disse que escritórios de processamento deveriam ser estabelecidos na Síria ou Turquia a fim de "examinar quem é e quem não é elegível, antes que as pessoas embarquem, colocando suas vidas em risco, e que violem nossas fronteiras".

A Itália prometeu forçar a inclusão da questão dos emigrantes como item prioritário na agenda da União Europeia quando assumir a presidência da organização, em julho. "Durante sua presidência da União Europeia, a Itália não pretende socar a mesa, mas virar a mesa", declarou Angelino Alfano, o ministro italiano do Interior, na semana passada.

A mudança na posição da UNHCR –e a crescente pressão da Grécia e Itália por ação– surge no momento em que os números mais recentes indicam rápida aceleração do problema. Cerca de 42 mil pessoas tentaram cruzar o Mediterrâneo em direção à Itália até agora este ano, de acordo com a Frontex, a agência de fronteiras da União Europeia. No ano passado, 3.362 chegadas haviam sido registradas até o final de abril, segundo a UNHCR.

Na semana passada, mais de mil emigrantes tentaram atravessar uma cerca de arame farpado para ingressar em Melilla, enclave espanhol no Marrocos, e chegar a território europeu. Mais de 400 deles conseguiram passar pela barreira. No mesmo dia, a polícia de choque francesa usou escavadeiras para destruir três acampamentos que abrigavam centenas de refugiados no porto de Calais.

O Ministério da Marinha Mercante grego disse que 15 mil emigrantes sem documentos haviam tentado entrar na Europa pela rota marítima da Grécia no ano passado, o que forçou o deslocamento de um terço da guarda costeira grega, que conta com um efetivo de sete mil homens, para o leste do Mar Egeu.

Os números vêm sendo engordados por grande número de refugiados sírios que buscam escapar da guerra civil, que forçou milhões de pessoas a abandonar suas casas nos últimos três anos. Cerca de sete mil refugiados da Síria chegaram por mar à Itália nos nove primeiros meses de 2013, ante 350 em 2012 como um todo. Eles são o segundo grupo mais numeroso a chegar por mar à Itália este ano, atrás dos eritreus. A maioria dos refugiados que chegam de barco à Grécia são refugiados sírios, entre os quais mulheres e crianças.

Desde que o governo da Grécia ergueu uma cerca de arame farpado de 10,5 quilômetros ao longo de sua fronteira com a Turquia, 90% da imigração ilegal vem sendo canalizada pelo leste do Mar Egeu, com a guarda costeira envolvida em uma batalha diária contra os traficantes de pessoas.

Filippo Monteforte/AFP
Parte dos imigrantes africanos que foram retirados do mar aguardam desembarque na ilha de Lampedusa
Parte dos imigrantes africanos que foram retirados do mar aguardam desembarque na ilha de Lampedusa

"Fica claro que a cerca [grega]... redirecionou o fluxo para o Egeu", disse Sutherland, da HRW. Outra cerca, planejada para a fronteira entre a Grécia e a Bulgária, deve ter impacto semelhante. "Selar aquela fronteira conduzirá a um número ainda maior de travessias marítimas", ela disse.

Nas últimas semanas, aconteceram dezenas de morte no Mar Mediterrâneo e no Egeu, entre a Turquia e a Grécia. A Cruz Vermelha italiana apelou pela criação de um "corredor humanitário" para permitir a passagem de pessoas em fuga da guerra e da fome.

Em uma declaração na qual condena a inação da União Europeia, a Anistia Internacional afirmou que "dada a completa falta de rotas seguras e legais para a Europa, os emigrantes se veem cada vez mais lançados aos braços dos contrabandistas e traficantes de pessoas, e se veem forçados a arriscar suas vidas em embarcações precárias".

Pelo menos um terço das pessoas que tentam chegar à Grécia terminam precisando de resgate. Muitos dos barcos têm condições precárias e viajam superlotados. Além disso, "os emigrantes viajando em pequenos botes infláveis têm instruções explícitas dos traficantes de pessoas para afundar os barcos quando avistam a guarda costeira helênica, para que possam ser recolhidos em águas da União Europeia", disse Varvitsiotis.

"Não podemos continuar enfrentando esse problema sozinhos para sempre. A Europa precisa de uma política que divida igualmente essa carga", ele afirma.

A Sicília recebe a maioria absoluta dos imigrantes ilegais que se encaminham à Itália, depois do fechamento temporário de um centro de recepção em Lampedusa, uma ilha menor, e as autoridades locais dizem se sentir abandonadas por Bruxelas e por Roma, prevendo que o número de chegadas continuará a subir nos próximos meses.

"Se não tomarmos medidas fortes, será um desastre", disse Enzo Bianco, de centro-esquerda, prefeito da cidade siciliana de Catania e antigo ministro do Interior. "Ou bem surge uma iniciativa forte do governo italiano e da União Europeia ou enfrentaremos um verdadeiro desastre, de proporções colossais. Se 50 mil chegadas criam uma crise, imagine o que aconteceria se elas fossem da ordem dos 500 mil a 600 mil".

No funeral de 17 emigrantes que morreram ao largo da costa da Líbia, em Catania na semana passada, Bianco condenou o "silêncio ensurdecedor" da Europa. "Diante de uma catástrofe humanitária iminente, e colossal, com quase 800 mil pessoas na costa africana prontas a cruzar o Mediterrâneo... diante desses caixões, a Europa precisa escolher se deseja enterrar junto com eles a nossa consciência como homens civilizados".

Depois que 366 migrantes morreram ao largo da costa de Lampedusa no final do ano passado, a Comissão Europeia criou a Eurosur, uma operação de vigilância cujo objetivo é permitir reação mais rápida quando barcos enfrentam situações de emergência. A Mare Nostrum, uma operação italiana de busca e resgate, reforçou essas ações, que até agora resgataram 30 mil pessoas do mar, a um custo de mais de nove milhões de euros mensais.

A Itália diz que a sede da Frontex, a agência de fronteira da União Europeia, deveria ser transferida da Polônia para a Sicília, a fim de enfrentar a crise cada vez mais grave. "A Europa não está prestando a atenção. Mas a Europa não pode fingir que nada está acontecendo. O problema existe... precisamos de recursos", disse Luigi Ammatunna, prefeito da pequena cidade de Pozzallo, na costa sudeste da Sicília, que recebeu 8,5 mil migrantes este ano.

O governo grego, que enfrenta uma crise de caixa, disse que gastou 65 milhões de euros para proteger sua fronteira marítima leste no ano passado, e que a União Europeia só contribuiu com dois milhões de euros para esses gastos.

O número crescente de refugiados e migrantes alimenta a adesão aos políticos de direita na Itália e Grécia. O partido grego Aurora Dourada, neofascista, que fez dessa questão a peça central de sua agenda, apresentou desempenho inesperadamente forte nas eleições locais e nas eleições para o Parlamento Europeu na Grécia. Matteo Salvini, líder da Liga Norte, partido de extrema direita e xenófobo da Itália, viajou à Sicília no mês passado para exigir o fim das operações da Mare Nostrum.

Alfano, o ministro do Interior italiano, adotou uma retórica cada vez mais provocativa com relação a Bruxelas, durante a campanha eleitoral para o Parlamento Europeu, ameaçando desafiar as regras de asilo da União Europeia e "permitir que eles" [as pessoas que buscam asilo] saiam da Itália rumo a outros países.

Na semana passada, ele advertiu Bruxelas de que, se a União Europeia não cobrisse o custo diário de 300 mil euros das operações da Mare Nostrum, o governo italiano descontaria o dinheiro de sua contribuição para a União Europeia. A Itália, ele disse, não deve se tornar "a prisão dos refugiados que querem ir para o norte da Europa".

Enquanto isso, os refugiados que estão na Sicília continuam alojados em acomodações improvisadas, como escolas e ginásios de esporte, com instalações inadequadas de recepção e processamento. A chegada de grandes números de migrantes, entre os quais muitas crianças desacompanhadas, "cria problemas para nós –não porque não os queiramos, mas porque queremos lhes dar uma recepção digna desse nome", disse Ammatunna. "Receber essas pessoas e depois tratá-las mal, sem poder lhes fornecer os serviços que gostaríamos de prestar a elas –isso nós não desejamos".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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