Folha de S. Paulo


Uma reflexão de Richard Serra sobre o que não é leve

SOBRE O TEXTO O texto "Peso", que data de 1988, estará no livro "Richard Serra - Escritos e Entrevistas (1967-2013)", a ser lançado na sede carioca do Instituto Moreira Salles no próximo dia 29, quando ali se inaugura, para convidados, mostra de seus desenhos (em cartaz até 28/9). Richard Serra participa ainda de debate com Michael Kimmelman, crítico de arquitetura do "New York Times", no teatro Adolpho Bloch, também no Rio. Já não há vagas para o evento, que abre, no dia 27, às 18h, o fórum Arq.Futuro 2014 (arqfuturo.com.br).

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Peso

Uma das minhas recordações mais antigas é a de estar atravessando com meu pai a ponte Golden Gate de carro, ao amanhecer. Íamos para o antigo estaleiro da Marinha, onde ele trabalhava como encanador, para a cerimônia de batismo de um navio. Era o outono de 1943, no dia do meu aniversário. Eu tinha quatro anos. Quando chegamos, o cargueiro coberto de aço preto, azul e laranja, estava equilibrado num poleiro. Ele era desproporcionalmente horizontal e, para um menino de quatro anos como eu, tinha as laterais grandes como um arranha-céu. Eu me lembro de passear ao redor do casco com meu pai e olhar a enorme hélice de cobre, espiando através dos suportes. Então, numa lufada repentina de atividade, as estacas, as vigas, as placas, os postes, as barras, os blocos da quilha, toda a proteção foi removida; os cabos foram cortados, as correntes foram soltas, as travas foram abertas. Houve uma total incongruência entre o deslocamento dessa enorme tonelagem e a velocidade e a agilidade com que a tarefa foi executada. À medida que a estrutura de apoio foi desfeita, o navio começou a se mover para baixo, ao longo da calha, na direção do mar. Ouviu-se o som da celebração, os gritos, as buzinas, os berros, os assobios. Livre de suas amarras, com as toras rolando, o navio escorregou do berço com um movimento sempre crescente. Foi um momento de tremenda ansiedade quando o cargueiro chacoalhou, balançou, se inclinou e bateu de encontro ao mar, meio submerso, para então emergir e se levantar e encontrar seu equilíbrio. Não apenas o navio havia recobrado o equilíbrio, mas a multidão de espectadores também. O navio havia passado por uma transformação: de um enorme peso morto para uma estrutura brilhante, livre, flutuante e à deriva. O espanto e a admiração que eu senti naquele momento permaneceram. Toda a matéria-prima de que eu necessitava está contida no reservatório dessa lembrança, que se tornou um sonho recorrente.

O peso é um valor para mim. Não que ele seja mais expressivo que a leveza; mas simplesmente eu sei mais sobre o peso do que sobre a leveza, e tenho, portanto, mais a dizer sobre ele, mais a dizer sobre o equilíbrio do peso, a diminuição do peso, a adição e a subtração do peso, a concentração do peso, a manipulação do peso, o suporte do peso, a colocação do peso, o travamento do peso, o efeito psicológico do peso, a desorientação do peso, o desequilíbrio do peso, a rotação do peso, o movimento do peso, o direcionamento do peso, a forma do peso. Eu tenho mais a dizer sobre os ajustes perpétuos e meticulosos do peso, sobre o prazer que deriva da exatidão das leis da gravidade. Tenho mais a dizer sobre o processamento do peso do aço, sobre as forjas, as usinas de laminação e as fornalhas.

Divulgação
"Basalt Columns", desenho de Richard Serra (pastel litográfico sobre papel, Svartifoss, Islândia, 1993)

É difícil empregar objetos do dia a dia para expressar ideias de peso, pois a tarefa seria infinita. Há uma vastidão imponderável no peso. No entanto, eu posso registrar a história da arte como uma história da particularização do peso. Tenho mais a dizer sobre Mantegna, Cézanne e Picasso do que sobre Botticelli, Renoir e Matisse, ainda que eu admire o que me falta. Tenho mais a dizer sobre a história da escultura como uma história do peso; mais a dizer sobre os monumentos à morte, sobre o peso e a densidade e a concretude de inúmeros sarcófagos, sobre câmaras funerárias; mais a dizer sobre Michelangelo e Donatello; mais a dizer sobre a arquitetura micênica e inca, sobre o peso das cabeças olmecas.

Nós somos todos restringidos e condenados pelo peso da gravidade. No entanto, Sísifo empurrando eternamente o peso da sua rocha montanha acima não me impressiona tanto quanto o trabalho incansável de Vulcano no fundo da cratera fumegante, martelando a matéria bruta. O processo construtivo, a concentração e o esforço diários me atraem mais que o leve e o fantástico, mais que a busca pelo etéreo. Tudo que escolhemos na vida pela sua leveza logo revela seu insuportável peso. Estamos diante do medo do peso insuportável: o peso da repressão, o peso da constrição, o peso do governo, o peso da tolerância, o peso da resolução, o peso da responsabilidade, o peso da destruição, o peso do suicídio, o peso da história que dissolve o peso e erode o sentido de uma construção calculada de leveza palpável. O resíduo da história: a página impressa, a cintilação da imagem, sempre fragmentária, sempre dizendo algo aquém do peso da experiência.

É a distinção entre o peso pré-fabricado da história e a experiência direta que evoca em mim a necessidade de fazer coisas que ainda não foram feitas. Eu tento continuamente confrontar as contradições da memória e fazer tábula rasa, de modo a ter que apelar para as minhas próprias experiências e os meus próprios materiais, mesmo diante de uma situação sem chance de realização. Inventar métodos sobre os quais eu não sei nada, utilizar o conteúdo da experiência de modo que ele se torne conhecido para mim, para então questionar a autoridade daquela experiência e assim questionar a mim mesmo.

RICHARD SERRA,74, é escultor e desenhista norte-americano, célebre por suas peças de grandes proporções.

PALOMA VIDAL, 39, escritora, tradutora e professora de teoria literária na Unifesp, é autora do romance "Mar Azul" (Rocco).


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