Folha de S. Paulo


Seis e-mails entre dois escritores

Epístolas eletrônicas sobre o contemporâneo

RESUMO As mensagens abaixo foram trocadas via e-mail entre os escritores Emilio Fraia e Antônio Xerxenesky durante o período em que o primeiro visitou o México, no começo deste ano. Entre relatos de viagem e comentários sobre arte, cinema, literatura e tradução, ressaltam aqui e ali indagações dos jovens autores sobre seu tempo.

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Nesky,

Hoje cedo, abri o Facebook e vi uma foto sua dando uma cambalhota no ar, prestes a cair numa piscina. Primeiro, fiquei feliz em saber que você: 1) está bem; 2) de férias; 3) praticando saltos de caráter ornamental. Depois, pensei naquela sensação de quando algo está para acontecer -a superfície da água ali, paradinha, e, num segundo, tudo em movimento.

Faz 30 dias que cheguei ao México, e essa é a sensação. Toda hora parece que algo vai acontecer. Estou em Tulum, num lugar chamado Pico Beach. Meu vizinho de cabana é um argentino, Adán, que está atravessando o país de bicicleta, vendendo chocolates (orgânicos, que ele mesmo faz).

Ele me contou que, quando chegou à cidade, não tinha lugar para ficar. Então conheceu um casal de americanos que havia alugado a cabana por um mês. Por algum motivo, eles precisaram voltar para os Estados Unidos e, como já tinham pago e ninguém devolve dinheiro na temporada, ofereceram o lugar a ele. E o melhor: a cabana tem uma cozinha, onde Adán pode confeccionar de maneira hippie seu chocolate orgânico.

Esses viajantes, gente do Couchsurfing, gente que passa anos viajando, indo de um lugar a outro. É como se os exilados dos livros do [Roberto] Bolaño tivessem trocado de lugar com eles.

Tenho pensado nas motivações, que não são políticas (pelo menos não diretamente políticas), que levam alguém como o Adán a viajar dessa maneira. Há pouco li um ensaio, "Antifragile", de um líbano-americano, Nassim Nicholas Taleb. Ele tenta desenvolver um conceito que seria o contrário da fragilidade. Mas esse oposto não é a robustez nem a resistência.

A ideia é a seguinte: existem coisas que, mais do que resistir, se beneficiam do choque; que crescem ou se modificam quando expostas a situações de aleatoriedade e caos. Perguntei ao Adán a razão de ele ter decidido sair pelo mundo sozinho. Ele não tinha uma resposta pronta, mas deu para perceber aqui e ali que ele é meio que viciado em incerteza. Começou a viajar há 13 anos e nunca mais parou (nesse tempo, voltou para a Argentina duas únicas vezes). Gosta de chegar num lugar sem saber muito bem o que vai acontecer, e não se mover, e ir percebendo como as coisas se configuram.

Na terça-feira, quando estava vindo para cá, peguei o avião em San José del Cabo, na Baixa Califórnia do Sul, fiz escala na Cidade do México, onde tomei um café e realizei breve análise meteorológica da viagem: estou neste país há um mês e ainda não choveu. Na chegada, no aeroporto, me dirigi à esteira de bagagens. Fiquei de pé, cumprindo o procedimento padrão de esperar. As malas circulavam, e as pessoas iam pescando suas coisas. Até que o salão começou a esvaziar.

Rapaz, estava tudo indo bem. Mas, de repente, entendi que estava prestes a viver a experiência cabal de ter a bagagem extraviada. Na esteira, sobrou apenas uma mochila preta, desbotada e murcha, dando volta -até que um funcionário veio e a recolheu.

Fui até a portinhola de onde saem as bagagens. Enfiei a cabeça. Já era noite lá fora e não tinha nada, ninguém, só um carrinho enferrujado, provavelmente o que trouxe as bagagens (menos a minha). Já aconteceu com você? É desolador.

Fui e voltei umas cinco vezes, e eis que, na outra ponta do salão surgiu um guardinha obeso de bigode. Eu me aproximei. Os bocejos do guardinha desenvolviam velocidades negativas enquanto eu contava a situação. Pelo rádio, entrou em contato com o balcão da companhia aérea. Então disse que um funcionário chamado Oliver estava a caminho. Depois de longa espera, o funcionário Oliver surgiu. Preenchi um formulário.

Apontei num diagrama o desenho que mais se assemelhava à minha mochila (descobri que ela se enquadra na categoria "mochila esportiva"). Oliver fez uma série de telefonemas. Até que minha bagagem foi localizada. Estava num outro avião, que sairia naquele momento da capital federal.

Se eu quisesse, poderia ir ao hotel (no caso, minha cabana) e a companhia aérea se encarregaria de entregar a bagagem. Como a sorte já não estava muito do meu lado, achei melhor esperar no aeroporto. Comer um cachorro-quente e morrer. Seria um fim digno.

Em suma: eu poderia estar te contando coisas legais, mas é sempre mais divertido falar daquilo que saiu errado. Também deve ser por isso que o Adán viaja: para que as coisas possam dar errado em algum nível. E ninguém, afinal, quer saber de histórias que não envolvam: 1) ruína; 2) choro; 3) personagens que apanham do início ao fim. Acho que todo bom romance é assim. E tanto melhor se envolver incerteza. (Agora o vento mudou, parece que vai chover.)

Um abraço,

Emilio

Paulo Bruscky

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Dearest Emilio,

Em primeiro lugar, gostaria de romper sua ilusão: não pratico grandes saltos ornamentais na piscina. A foto ficou incrível, não dá para entender onde estão os meus braços, qual o movimento que está ocorrendo, se vou dar de cabeça na laje ou cair de costas na água.

Estávamos na casa do [Daniel] Galera –um dos primeiros lugares onde te encontrei ao vivo, onde começamos essa história de "ser amigos"– e o pessoal queria testar uma câmera que registra zilhões de frames por segundo. Então fui lá, dei um salto desajeitado, caí de costas na água, um tchuf doloroso, mas, isolando aquele frame, parece que realizei uma manobra mirabolante.

Costumam dizer que construímos uma narrativa idealizada de quem somos nas redes sociais. Pode-se dizer que fiz isso. Mas a verdade é que gosto de colocar coisas estapafúrdias no Facebook. Não entendo aquele monte de escritores que lotam minha "timeline" publicando apenas comentários críticos inteligentes sobre tudo que está aí. Parece que não dão cambalhotas na piscina.

Rapaz, quantas aventuras você deve estar vivendo. E você me fala de viagens solitárias e pessoas nômades. Esse mundo parece ficção. Viajar nunca foi tarefa fácil para mim. A primeira vez que saí da América Latina foi em 2013, numa ida à França em maio.

Nunca tive nenhum fetiche por Paris ou pela cultura francesa, nem consigo me lembrar por qual motivo eu e a Gabi escolhemos a França, entre tantos países.

Aliás, tenho um medo tremendo de perder a bagagem. Sou apavorado para certas coisas, e sinto que nem anos de terapia seriam capazes de curar isso. Eu tinha uma certeza inconsciente, por exemplo, de que seria barrado na imigração, mesmo estando com os documentos em ordem, mesmo sendo branco, de classe média, mesmo trajando um blazer.

É nessas barreiras de imigração, por sinal, que você enxerga toda a tensão racial que parece dominar a Europa: enquanto um branquelo como eu passa diretamente, sem grandes inspeções, qualquer mulher trajando uma burca é questionada por minutos e minutos. Em Paris, árabes e negros são vistos mais na periferia e parecem ser tratados com receio e desdém por alguns parisienses. Posso estar enganado, mas foi a sensação que tive.

Paris, aliás, foi uma decepção. É o legítimo caso de uma cidade arruinada pelo turismo predatório. Mesmo evitando lugares mais óbvios, parece que nenhum local está a salvo. E sinto que os moradores de lá desenvolveram certo nojo dos turistas. Com razão. Vi cada demonstração de grosseria que seria capaz de preencher cinco cartas com exemplos.

Impossível não lembrar o que David Foster Wallace diz: o lugar que visitamos seria muito melhor sem a nossa presença. O que não significa que vamos deixar de viajar. Claro, o ideal é evitar atitudes tipicamente turistoides. Mas todos nós acabamos sendo turistas bobões uma hora ou outra. Acho que a regra é a mesma que se aplica para o resto da vida: tentar não ser um idiota.

Não vivi nada maluco e fiquei no lado do conforto na França, mas é curioso pensar que a parte mais legal da viagem foi quando a Gabi e eu tomamos o caminho menos óbvio. Estávamos em Dijon e decidimos beber os tais vinhos da Borgonha. O hotel oferecia esses pacotes turísticos, um ônibus gostosinho com ar-condicionado que nos levaria até um "château".

Pensamos em comprar um pacote, mas estavam esgotados. O que fizemos? Descobrimos que havia um "château" que recebia gente de fora a algumas cidadezinhas de distância. Pegamos um trem até a periferia da cidade e, de lá, um ônibus que passava com frequência desanimadora. Quando entramos no ônibus, estava cheio. Quando descemos, éramos os únicos passageiros.

A cidadezinha ficava no fim da linha. Saímos do ônibus e não havia nada ao redor. Nada. Quer dizer, campos verdejantes. Uma casa à distância. Parreiras. Um cão estropiado. Caminhamos sem rumo. Encontramos uma vovozinha meio surda em uma cadeira de rodas. Ela nos orientou até o "château". Batemos na porta e bebemos os melhores vinhos de nossas vidas.

Uma aventura terrivelmente burguesa, sem dúvida. Mas, céus, estávamos na França e gostamos de vinho. Tudo que fizermos será terrivelmente burguês.

Conto a experiência porque, mesmo visitando o país mais turístico, por um momento nos encontramos perdidos, em terra estranha, e isso pareceu mais especial do que o maldito Arco do Triunfo, que é sem graça pra chuchu.

Saludos,

Nesky

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Nesky,

Pensei em finais alternativos: você e Gabi batem na porta do "château" e bebem os piores vinhos de suas vidas. Ou, depois de toda a epopeia ônibus/trem, descobrem que o lugar está perturbadoramente vazio, com cara de ter sido abandonado às pressas por algum motivo obscuro. Ou vocês se marcam no Foursquare e são perseguidos por um assassino de blazer branco à la Miami Vice.

Quanto ao argentino Adán, meu vizinho de cabana, bem, ele poderia seguir pelo mundo, transmutando manteiga de cacau em chocolate orgânico para, no fim, concluir que seu ideal de aventura na verdade não se cumpriu; que sua experiência ficou abaixo da ficção que formou dela mesma; que, de um jeito ou de outro, em algum nível, tudo é decepção. Mesmo assim, ele não deixaria de viajar. Vai consertar a bicicleta (está com um problema na correia) e continuar em frente, pedalando. Um tipo de "não posso continuar, tenho que continuar".

Ontem, fui visitar as ruínas de Palenque, em Chiapas. E, rapaz, que bonito esse tipo de paisagem, desolada, com a natureza avançando sobre os restos das construções. Dá uma espécie de consciência da transitoriedade das coisas. Principalmente do poder. Ver todos aqueles templos carcomidos, pensar que um dia foram edifícios majestosos, feitos por gente que escravizou e/ou devastou tribos vizinhas, que usurpou o lugar daqueles que, num momento específico, foram tomados como inimigos -uma coisa meio ambiente corporativo, só que com chefes maias de nome K'inich Janaab' Pakal.

Lá pelas tantas, sentei no degrauzinho de uma das pirâmides, fazia um calor desgraçado, e fiquei brincando de tirar fotos em que só aparecessem as ruínas, os templos no meio da selva, sem as pessoas. Esperar o momento, buscar o ângulo certo e, quando não sobrasse ninguém no quadro, clique, clique, fotografar. Coisas estúpidas que a gente faz quando está sozinho (a prática da vida secreta). Mas os ônibus não paravam de chegar. Era muita gente.

Então, analisando as fotos depois, pode-se dizer que minha tentativa de evocar o mundo anterior às procissões de turistas não foi exatamente um sucesso.

E, mesmo que tivesse sido, ainda restaria eu. Porque você tem razão, somos todos turistas bobões (e incômodos), compartilhando nas redes sociais nossas peripécias incômodas de turistas (bobões).

E nunca tinha pensado nisso: o Brasil é um país sem ruínas, né? Sem falar que tudo o que existe de mais ou menos antigo entre nós acaba sendo restaurado e, poxa, seria legal ter uns lugares assim, abandonados e caindo aos pedaços, diz aí.

Do que conheço, tem o castelo do Garcia D'Ávila, na Bahia, e dois presídios, o da ilha Anchieta, em Ubatuba (SP), e o da ilha Grande, no Rio. Não sei se você já esteve lá, mas essas ruínas dos presídios são espetaculares, bons espécimes de passado, ainda que um passado recente. Este último fica numa das praias mais bonitas que já vi, Dois Rios. Foi lá que o Graciliano Ramos ficou preso, nos anos 30. Madame Satã também. E eu peguei um carrapato na perna, tive febre e achei que fosse morrer (você é meu amigo, vou te poupar dos detalhes dessa história).

No sábado, recebi um e-mail da Flora, uma amiga que mora na Alemanha. Fazia um tempão que não falava com ela. Na mensagem, ela dizia que se mudou para uma reserva cercada de lagos, a uma hora de Berlim. Disse que em breve vai abrir vagas para artistas em crise, escritores com bloqueio etc. (a estadia incluirá alimentação orgânica, lareira e mímica).

Depois me contou que vai passar por uma cirurgia. Eu escrevi de volta, narrando episódios da minha vida recente e contando da vez que tive apendicite. Durante um tempo, nós fomos bastante próximos, a Flora namorava um amigão meu, o Arthur.

Então, enquanto escrevia, foi como retomar essa época, a gente num Réveillon na Cajaíba [em Paraty, no Rio de Janeiro], olhando os plânctons na praia à noite, algo análogo a estar diante das ruínas do templo ou do presídio da ilha Grande. Na hora foi meio nostálgico, mas não no sentido de que "antes era melhor", só uma consciência de que o tempo passa e as coisas vão ganhando níveis, complexidade, "layers".

Pensei numa história que li uma vez: em 1914, o Giacometti esculpiu seu primeiro busto de observação. Era o irmão dele que posava. Ele conta que, de início, teve a impressão de que a coisa viria facilmente, de que conseguiria fazer mais ou menos o que via. Cinquenta anos depois, ele está no ateliê, há uma semana, tentando fazer a cabeça daquela época, como em 1914, mais ou menos da mesma dimensão que a primeira. Enquanto em 1914 tinha a impressão de fazer o que queria, agora não consegue mais.

E conta que, pensando bem, nunca mais conseguiu fazer uma cabeça simplesmente como a vê, no sentido mais primário. Se vê uma cabeça de muito longe, tem a ideia de uma esfera. Se vê de perto, ela deixa de ser uma esfera para se tornar uma complicação extrema em profundidade. Se olha de frente, esquece o perfil. Se olha o perfil, esquece a face. Tudo se torna descontínuo, complexo, e ele não consegue mais apreender o conjunto. Estágios demais. Níveis demais. Acho que é isso.

Abraço e urge almoço da indolência,

Emilio

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Caro Emilio,

Nunca vi uma ruína. Quer dizer, estou aqui cavoucando as lembranças atrás de algo, algum passeio pelo interior do Rio Grande do Sul, sei lá. Não, acho que não. Mas o que você me falou me fez lembrar de "A Grande Beleza", filme do Paolo Sorrentino elogiadíssimo, a que assisti na semana passada.

Achei o filme lamentável, tive vontade de sair no meio de tão ruim que achei. Fazia tempo que não sentia isso quanto a um filme. É um sub-Fellini com estética de propaganda de perfume. Quer homenagear "A Doce Vida" e "Oito e Meio", mas não tem um quinto do apuro visual. E dá-lhe "travelling" no pôr do sol.

Mas o que mais me irritou no filme nem foi isso. Foi certa defesa da "antiga Roma", dos antigos valores. Das ruínas. O tempo todo o filme contrasta o novo decadente com o velho sagrado. De um lado, música pop de quinta categoria, padres aproveitadores e festas dignas de Berlusconi; de outro, a beleza do Coliseu, da Roma de arquitetura clássica, a presença fantasmagórica de Fanny Ardant.

Na sequência que considero a pior do filme, uma menina faz sua performance artística com um monte de balde de tintas e o protagonista faz um piadinha sobre como ela ganha milhões. Todo blasé, ele resolve então abandonar a performance e mostrar à sua companheira o que considera a parte mais bela de Roma, a parte "secreta", estátuas de séculos atrás, tudo embalado em música sacra.

Não me entenda mal, não estou criticando a tradição, muito menos a música -a trilha do filme é linda, tem até Arvo Pärt. Critico apenas a má vontade com o contemporâneo. A cada Bienal, a gente precisa aguentar aquela série de piadassobre alguém que confundiu um extintor de incêndio com uma obra, blá-blá-blá.

Considero muito mais digno o esforço de encontrar valor e produzir reflexão sobre o que está aí -porque tem muita coisa boa aí, seja na arte, seja na música pop. Dizer que vivemos numa grande decadência cultural e moral (que parece ser a mensagem do filme) é uma saída tão banal e preguiçosa...

Estou muito longe de ser um conhecedor da arte contemporânea, e admito com constrangimento que, de vez em quando, confundo Waltercio Caldas com Cildo Meireles, e que muitas vezes passo por uma exposição pensando que nada fez o menor sentido para mim. Mas vejo um valor inestimável em um projeto como o de Inhotim. Você já foi lá?

Rapaz, creio que Inhotim é o segredo mais bem guardado do Brasil. Quer dizer, o pessoal do nosso meio de trabalho vai dizer "dã, claro, Inhotim, isso não é segredo, todo mundo conhece", mas pergunte aos seus pais, primos, amigos de fora do meio literário/jornalístico/editorial. Eles não sabem o que é Inhotim. E é incrível que exista esse lugar ali em Minas Gerais.

Talvez a obra que eu mais lembre de Inhotim seja o Sonic Pavilion, do californiano Doug Aitken. É um pavilhão envidraçado com um buraco no meio. O buraco tem 200 m de profundidade; no fundo, Aitken colocou microfones para gravar o ruído que vem do fundo da Terra e o barulho fica reverberando pelo pavilhão. E qual é o som do fundo da Terra? É terrivelmente grave e estranho. Só sentando no chão do Sonic Pavilion para entender. E isso fica no Brasil. A seis horas de carro de São Paulo. Perdoe o deslumbramento, mas é incrível. Pena que os detratores do contemporâneo nunca chegarão nem perto do local.

Vamos marcar aquele almoço, peloamordedeus.

Saudações,

Nesky

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Nesky,

Você conhece a Lei Kenneth Tynan sobre o Cinema Responsável? Ela diz que todos os filmes que tentem diagnosticar a sério os problemas humanos contemporâneos são ruins. Só os filmes históricos, as comédias, as sátiras e os filmes de suspense prestam. Nota: para Tynan, "Cidadão Kane" é, em parte, histórico e, em parte, uma sátira. Ou seja, estou 800% contigo.

E, pensando depois, a sinopse de "A Grande Beleza" podia ser: "'A Grande Beleza' (Itália-França/2013, 142 min.) Ao fazer 65 anos, escritor 'bon-vivant' questiona rumos de sua vida e encontra o antídoto para a arte vazia e frívola de seu tempo numa revoada de flamingos feita no Windows 95". Ainda não me recuperei dessa cena dos flamingos, que coisa hedionda.

Sim, fui a Inhotim no ano passado. Gostei de tudo o que você falou. E tem o pavilhão da Lygia Pape. Rapaz. Eu queria escrever daquele jeito, tudo muito simples, elegante e geométrico.

Outra obra que me impactou foi a de uma espanhola, Cristina Iglesias. Não sei se você se lembra, fica no meio de uma clareira, num lugar de mata fechada. É uma escultura de aço, espelhada, um labirinto: por fora, as paredes refletem a vegetação ao redor; por dentro, texturas imitam raízes, folhas, troncos. O tempo todo ouve-se um barulho de água. E, bem no centro da coisa, depois de percorrer corredores, alguns sem saída, voltar, entrar de novo, chega-se a uma bomba d'água.

Antes, é preciso andar uns dez minutos numa trilha até alcançar a obra. Essa parte é bem legal também. Tem algo de surpresa, e é como se uma narrativa (a da trilha, no meio do mato) fosse interrompida e invadida por outra (a de uma grande escultura, um objeto estranho, um labirinto espelhado).

Tenho pensado em histórias assim, que de repente se transformam em outras. Acontece muito nos contos do [Juan Carlos] Onetti. Em "Los Ingrávidos", da Valeria Luiselli, tem algo assim também. Você leu? Tive a impressão que esse livro passou meio batido. A narradora, que tenta escrever um romance, fica obcecada pelo poeta mexicano Gilberto Owen, e a voz dele começa a tomar conta da trama e se mistura às lembranças dela. A justaposição das duas narrativas cria um efeito que achei excelência pura.

E, cara, essa semana foi tensa, um milhão de coisas pra resolver. Voltei de viagem e devo ter ido ao cartório pelo menos umas cinco vezes. E tem toda a morte que é responder e-mails. Você responde 5, 10, e eles se multiplicam em 15, 20. Revisei também a tradução de um conto meu que vai sair numa coletânea de autores brasileiros na Argentina. E estou tentando terminar meu livro.

Aliás, fiquei feliz com a notícia de que você está traduzindo o "Kassel no Invita a la Lógica", novo livro do [Enrique] Vila-Matas. É uma obra que tem a ver com essas questões da arte contemporânea. Está achando bom? Gosto da maneira como o Vila-Matas se aproxima do tema. O "História Abreviada da Literatura Portátil" é um baita livro. Aprecio o lema dos portáteis: escrita por diversão e o gosto por obras que possam facilmente caber numa maleta (embora, claro, escrever não seja exatamente divertido e há romances ótimos que, nossa, como pesam).

Vi que, numa entrevista recente sobre o "Kassel", o Vila-Matas cita um trecho de uma entrevista do Foster Wallace. Então vou transcrever aqui a título de "até mais, Nesky". É assim: "A ficção pode oferecer uma visão de mundo tão sombria quanto desejar, mas, para ser realmente boa, ela precisa encontrar uma maneira de, ao mesmo tempo, retratar o mundo e iluminar as possibilidades de permanecer vivo e humano dentro dele". É meio "literário" e semicafona, né. Mas, sei lá.

Acho que cheguei aqui, no fim, e estou quase absolvendo os flamingos, as propagandas de perfume e o Windows 95.

Abração, capricha.

Fraia

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Dearest Emilio,

Fico feliz de ver que concordamos no quesito cinematográfico, embora eu estivesse torcendo por alguma discordância selvagem, algo que tornasse essa resposta um espaço de disputa e briga.

Quanto à instalação de Cristina Iglesias, não me lembrava dela: tive que colocar no Google para confirmar que visitei essa obra em Inhotim. A verdade é que caminhei por esse labirinto sem entender absolutamente nada. Quando isso acontece, também prefiro nem olhar o release explicativo. Esses textos informativos que se propõem a explicar uma obra de arte com um monte de jargões acadêmicos sobre "relação entre o homem e o espaço" tendem a ser nauseabundos.

Estou me programando para ler Luiselli há bastante tempo. Não acho que ela passou batido por aqui, vários amigos comentaram sobre o livro -a verdade é que quase todo autor latino cujo nome não é Roberto Bolaño acaba sendo menos lido do que deveria no Brasil.

Tenho a impressão de que somos muito mais influenciados pelas tendências de mercado norte-americanas; até mesmo os sucessos europeus que emplacam no Brasil tiveram um selo de aprovação dos norte-americanos: Thomas Bernhard, W.G. Sebald... Teria Bolaño feito tanto sucesso no Brasil se não fosse o êxito tremendo nos Estados Unidos? Claro, talvez eu esteja sendo paranoico.

Não li ainda a Luiselli porque estou me esquecendo o que é ler um livro por prazer, um romance que escolhi ler por puro capricho. Você sabe como funciona: trabalho oito horas por dia, depois do expediente vou para casa, onde trabalho mais, em outra coisa, neste caso na tradução do Vila-Matas, e às vezes ainda tenho alguma resenha ou artigo para escrever, ou tenho de ler um livro para redigir as famosas "orelhas não assinadas".

Céus, e preciso arranjar espaço para ler algo de pesquisa para o meu futuro romance. E tempo para assistir a um filme ou série boba, jogar video game, existir, comer um hambúrguer, escovar os dentes.

Voltando ao Vila-Matas: não está nada fácil traduzir "Kassel". Não por alguma dificuldade intrínseca do livro (embora tenha muitas expressões barcelonenses que eu nunca tinha ouvido), mas porque Vila-Matas é um autor tão presente em minha vida que traduzi-lo é intimidante.

Isso não quer dizer que tenho uma idolatria cega por Vila-Matas; como todo autor que realmente admiro, tenho minhas crises de fé. Às vezes acho que tanta metaliteratura e autoficção acaba tirando muito da humanidade que há em um "storytelling" mais convencional. E admito que achei "Dublinesca" e "Ar de Dylan" livros de pouca vitalidade. Este novo que estou traduzindo, no entanto, é incrível. E, se eu acreditasse em sincronicidade, diria que é um recado do destino ter caído nas minhas mãos esse livro.

Vila-Matas está tratando de vários temas que vêm me obcecando: desde a defesa do contemporâneo até as caminhadas de Walser e a reclusão de Wittgenstein (o último livro que li 100% por prazer foi a inacreditável biografia de Wittgenstein escrita por Ray Monk). A sua lembrança do "História Abreviada" é certeira -Vila-Matas é ótimo ao lidar com arte contemporânea, especialmente com discípulos de Duchamp.

Não sei como é para você, mas, para mim, traduzir é um tanto como escrever ficção: durante todo o processo, acho que está ficando horrível e que sou uma farsa. Só depois, revisando com calma, consigo avaliar de forma mais realista o resultado. Enfim.

Queria encontrar uma frase (uma citação também seria válida), um tema, um recado, algo para fechar de um jeito redondinho essa mensagem. Nada me ocorre. Tenho andado ansioso, não reconheço mais a diferença entre dia de semana e fim de semana, tenho trabalhado demais e lido por prazer de menos.

Por favor, vamos marcar aquele almoço, um almoço terrivelmente longo e inútil, um almoço de três horas, com direito a café em um segundo local e um sorvete de pistache em um terceiro. Acho que estou precisando.

Foi um prazer,

Nesky

ANTÔNIO XERXENESKY, 29, escritor, é autor de "Areia nos Dentes" (Rocco). Sua correspondência com Emilio Fraia será publicada neste mês, em versão ampliada, na revista "Traviesa" (mastraviesa.com).

EMILIO FRAIA, 32, é escritor, autor da "graphic novel" "Campo em Branco" (Quadrinhos na Cia.) com DW Ribatski.

PAULO BRUSCKY, 65, é artista plástico e tem trabalhos em arte postal. Sua obra "Limpos e Desinfetados" está na mostra "Poder Provisório", no MAM-SP até 15/6.


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