Folha de S. Paulo


Nacionalista irrequieto

As desigualdades e perspectivas do país nas páginas de Monteiro Lobato

RESUMO Obras que reúnem e debatem os contos de Monteiro Lobato revelam literatura de ficção para adultos com forte teor de crítica social. Pesquisadores rejeitam a acusação de racismo que foi imputada ao criador do Sítio do Pica-pau Amarelo e relativizam o papel do escritor do interior paulista na idealização da Petrobras.

*

Negrinha era órfã. Nascida na senzala, vivia levando sovas da patroa gorda, rica e enturmada com os padres. Tinha o corpo tatuado de cicatrizes e vergões. Era torturada com um ovo pelando de quente enfiado na boca.
Não sabia o que era brincar. Passava o tempo todo quieta, sentadinha num canto, sendo chamada de "pestinha", "diabo", "mosca-morta". Até que descobre o que é uma boneca. Brinca e se percebe não mais como uma coisa, mas como uma pessoa.

Timóteo era jardineiro. Negociado por um importador de escravos de Angola, havia 40 anos cuidava dos canteiros ao redor do casarão da fazenda. Tinha ficado por lá mesmo depois da Lei Áurea. Com sua tesoura, produzia a "crônica vegetal" do lugar.

Plantava árvores e flores em homenagem aos sinhozinhos, às festas e às tristezas do lugar. Resedás, jasmins-do-cabo, bocas-de-leão: tudo ali tinha uma história. Seu desespero ocorre quando recebe a ordem de destruir tudo para fazer um jardim inglês com as últimas criações da floricultura alemã.

Joaquina era avó. Aos 70 anos, vivia com a família da filha num sítio. Serelepe, gostava de costurar. Sua obra era uma colcha de retalhos, feita com as roupas de sua neta. Cada quadradinho de chita era registro de um pedaço da história da pequena.

Mas a terra ficou seca, a geada queimou o café e a família empobreceu. Formigas roeram o pomar, e ervas daninhas tomaram conta do terreno. A filha morreu da doença que lhe dava fortes dores da
cacunda. A neta fugiu e nunca ganhou a colcha cerzida por 16 anos -um acalentado presente de casamento.

Negrinha, Timóteo e Joaquina são personagens de Monteiro Lobato. Suas angústias, descobertas e amarguras são destaque de seus escritos para o público adulto reunidos em "Contos Completos" [Biblioteca Azul, R$ 64,90, 660 págs.]. O volume lançado agora contém textos de quatro livros: "Urupês" (1918), "Cidades Mortas" (1919), "Negrinha" (1920) e "O Macaco que se Fez Homem" (1923).

Lobato (1882-1948) escreve na República Velha, em que viceja a oligarquia que assalta o Estado e esmaga a imensa população rural. Ainda distante da industrialização, o país vivia em torno dos cafezais voltados ao exterior. A escravidão acabara havia pouco. Os empregos eram precários, dependentes de favores e comandados por uma elite decadente e saudosa dos poderes da casa-grande.

Ares de mudança vinham de revoltas sociais, do movimento tenentista, das artes em ebulição. É o tempo de ascensão dos modernistas. Oswald de Andrade, Portinari, Di Cavalcanti e Tarsila mergulham na cultura nacional para conceber suas obras e se desvencilhar dos gostos vindos de fora.

Nacionalista ferrenho, Lobato navega em várias áreas. Faz literatura infantil e adulta, escreve em jornais, edita livros, pesquisa novidades tecnológicas, deslancha a campanha pela exploração do petróleo, enfrenta o imperialismo.

De família de produtores de café de Taubaté (SP), é inconformado com as carências do Brasil. Defende a necessidade urgente de saneamento básico, ensino, investimentos. Principalmente, as desigualdades o inquietam.

Por isso, escreve sobre os pobres. Seus contos tratam da labuta, da injustiça, da falta de perspectiva do cidadão sem voz e sem dinheiro naquele início de século.

Sua estética naturalista e nacionalista está focada no que "falta ao país e a seus habitantes, e não com as ilusões da modernidade, com suas baratinhas, melindrosas e almofadinhas, viagens a Paris e outros luxos partilhados por poucos", escreve Beatriz Resende, professora de poética da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na apresentação do livro.

Lobato constrói suas narrativas de ficção inspirado nas histórias que ouve, às vezes mesclando fábulas e mitos com a dura realidade da pobreza. Nesse sentido, pode ser comparado a Euclydes da Cunha e Lima Barreto, que revelaram as mazelas do sertão e dos subúrbios do Rio, avalia Resende. "Muito tempo depois, é também sabendo ouvir de maneira toda especial a gente do interior e seus 'causos', incorporando e recriando sua linguagem, que Guimarães Rosa criará sua obra em contos."

RACISMO

Ela lembra um trecho do texto "Negrinha" para entrar na discussão sobre racismo que envolveu a produção de Lobato recentemente. "O momento do conto em que, diante de uma boneca, a menina sem nome se descobre criança como as outras é o libelo mais contundente que poderia ser escrito naquele momento contra as desigualdades raciais."

E dispara: "Basta a leitura de 'Negrinha' para compreender toda a tolice que envolve as críticas feitas a momentos de sua literatura em que reproduz o linguajar racista de seus contemporâneos. As falas evidentemente irônicas da boneca Emília, por exemplo, são o eco da sociedade racista, classicista, escravocrata que atravessa o século 20 e chega até hoje convencida de espaços como as universidades não se devem abrir aos pobres, aos diferentes e vêm na ainda tímida política de cotas uma heresia e nas condenações penais por racismo um excesso".

Na mesma linha escreve Milena Ribeiro Martins, professora da Universidade Federal do Paraná, que rechaça a interpretação de racismo no conto de Lobato.

Para ela, "Negrinha" é chocante, "porque chocante é a problemática da qual ele trata, arraigada a práticas sociais ainda hoje encontradas no Brasil". Na visão de Martins, o texto "escancara a casa-grande, denuncia a hipocrisia de uma elite protegida pela igreja, atribui voz, pensamentos e emoções a uma criatura cujos gritos de dor não seriam ouvidos para além dos muros que a oprimem".

A análise da professora faz parte de "Monteiro Lobato, Livro a Livro, Obra Adulta" [Unesp, R$ 69, 544 págs.]. O volume é organizado por Marisa Lajolo, professora da Universidade Mackenzie, professora aposentada da Unicamp e autora de várias obras sobre Lobato. Reúne 28 autores que dissecam a produção lobatiana nos moldes do que, em 2008, foi feito em relação aos textos infantis.

Lajolo traça paralelos entre o Lobato para crianças, que criou o Sítio do Pica-pau Amarelo, e o para adultos, que inventou o Jeca Tatu. Constata que os textos para os dois públicos mostram "lances radicais de ironia inesperada, visão crítica e irreverência".

Divulgação
O escritor brasileiro José Bento Monteiro Lobato
O escritor brasileiro José Bento Monteiro Lobato

Na fornida coletânea, João Luís Ceccantini, da Universidade Estadual Paulista, trata de "Urupês", primeiro livro publicado por Lobato. Sucesso de vendas -30 mil exemplares em cinco anos-, a obra embasada em Jeca Tatu é peça-chave da gênese do mercado editorial brasileiro e "marco decisivo do próprio modernismo", escreve o professor.

Já Raquel Afonso da Silva, doutora pela Unicamp, anota mudanças na avaliação que Lobato faz da figura do caboclo ao logo do tempo. "Ele reconhece o trabalhador rural não como culpado por sua indolência e improdutividade, tal como apontou em seus artigos de 1914, mas como vítima das doenças e do abandono político."

Assim, o volume organizado por Lajolo vai percorrendo a trajetória pessoal e literária do escritor paulista. Passa pela ascensão e falência de sua editora, por seu entusiasmo pelas ideias de Henry Ford, pela campanha do petróleo.

Nomeado adido comercial do consulado brasileiro em Nova York, Lobato foi morar nos EUA em 1927. Ficou maravilhado com a expansão econômica de lá. Visitou Detroit e quis aprender sobre ferro e aço. Planejou investimentos. Na crise de 1929, perdeu dinheiro na quebra de Wall Street.

PETRÓLEO

Seguiu pesquisando e escreveu "Ferro" (1931), entrando no debate que acabou criando, na década seguinte, a siderurgia no Brasil. É o engenheiro metalurgista Fernando José Gomes Landgraf, da USP, quem relata esse episódio lobatiano, expondo pioneirismos, erros de avaliação e frustrações com os negócios. Mas foi na questão do petróleo que o escritor se notabilizou e entrou para a história como engajado defensor das riquezas nacionais, conectando-se com a criação da Petrobras.

Em 1936, ele lança "O Escândalo do Petróleo", uma miscelânea de artigos de especialistas. No livro, ele afirma que a inércia brasileira na exploração do óleo se deve a pressões de interesses de
megaempresas como a Standard Oil e a Shell.


Pesquisadora do tema, Katia Chiaradia acha equivocado dar a Lobato o título de "pai da Petrobras". Segundo ela, trata-se de "superinterpretação, uma vez que ser contrário à exploração do subsolo brasileiro pelos norte-americanos não implicava ser favorável à exploração de petróleo pela União". "Lobato defendia a iniciativa privada e estabelecia relações comerciais com a Alemanha."

Mas é no final de "Contos Completos" que surgem análises essenciais sobre a obra do intelectual, escritor e militante.

José Lins do Rego escreve que Lobato "imprimiu ao seu mundo de ficção a realidade de que fugíamos, com medo". "Ele viu o brasileiro nu, na sua miséria, no seu pungir, na vil desgraça. O homem de Monteiro Lobato é um ser vencido pelo desespero de estar só."

Atento à realidade social escancarada por Lobato, Lima Barreto sugere: "Precisamos combater o regime capitalista na agricultura e latifúndio, dividir a propriedade agrícola, dar a propriedade da terra ao que cava a terra e planta e não ao doutor que vive na 'Casa Grande' ou no Rio ou em São Paulo".

Abrangente, Caio Prado Júnior vai além dos méritos de Lobato como escritor. Fala de sua estatura como cidadão. Ataca os intelectuais que se encerram numa torre de marfim e são esterilizados "pela preocupação de resguardar pequeninos interesses e miúdas ambições". "Discutem educação aplicada aos aborígenes da Oceania e outros assuntos de igual importância para o bem-estar da humanidade. Em nome de não sei que 'pensamento puro', fogem do concreto. Na realidade, estão se escondendo da vida e do mundo, refugiando-se lá onde não correm ou pensam não correr o mínimo risco", afirma.

Lobato não era dessa turma. Correu riscos, não buscou zonas de conforto e fez história.

ELEONORA DE LUCENA, 56, é repórter especial da Folha.


Endereço da página: