Folha de S. Paulo


Filme "Particle Fever" traz à vida o bóson de Higgs

Documentário é relato fascinante e bem informado sobre a maior experiência científica do planeta, mas é também um drama real sobre a compreensão do universo

Um novo documentário, "Particle Fever", consegue o quase impossível: torna compreensível –e empolgante– o funcionamento do acelerador de partículas LHC (Large Hadron Collider), até mesmo para os espectadores com a maior rejeição à ciência. Mark Levinson, o diretor do filme, visitou o Cern, o centro de pesquisa na fronteira entre a França e a Suíça que abriga o LHC, pela primeira vez em 2007, e voltou diversas vezes até julho de 2012, quando a equipe de físicos de elite concluiu suas duas décadas de buscas para encontrar o bóson de Higgs.

"Particle Fever" acompanha meia dúzia de personagens –entre os mais de 10 mil cientistas, de mais de 100 países– que trabalham na maior e mais cara experiência científica do planeta. O filme os mostra teorizando, discutindo, jogando tênis de mesa. Levinson, 59, é editor de som desde 1980 –trabalhou em muitos dos filmes de Anthony Minghella ("O Paciente Inglês")–, mas antes disso conquistou um doutorado em física.

Observer - Você disse que não acha que "Particle Fever" seja um documentário científico. O que é o filme, então?
Mark Levinson - Creio que seja sobre a busca do homem pela compreensão. Eu queria fazer um filme atraente para pessoas que podem pensar que nem estão interessadas em ciência, mas que conseguem se envolver com essa busca humana absolutamente maravilhosa. Pode ser difícil justificar o LHC em termos de despesa –mas, ainda que ele talvez não seja necessário para nossa sobrevivência, é algo que nos torna humanos e importantes.

Quando você começou a filmar, imaginava que os cientistas do Cern encontrariam a partícula de Higgs?
Não. Eu definitivamente acreditava que a partícula de Higgs, ou algo parecido, existia. Mas que eles a encontrassem quando estávamos filmando? Nunca imaginei. Quase todos os físicos haviam dito que encontrar o bóson de Higgs seria tão difícil que provavelmente seria necessário recolher dados durante anos. Na verdade, todos achavam que, se encontrassem alguma coisa, provavelmente seria uma nova partícula, mas não a de Higgs.

Física parece envolver muito tempo de contemplação de números em uma tela de computador. Como tornar essa situação dramática?
Por sorte havia muito drama natural. Não tivemos de inventá-lo, só de reconhecê-lo e adaptá-lo ao acontecido. Trabalhei por muito tempo no mundo da ficção –escrevi roteiros, dirigi um longa–, mas se eu tivesse escrito o roteiro dessa história, não creio que tivesse sido capaz de fazer um trabalho melhor, no que tange a criar tensão.

Você está se referindo a 2008, quando o LHC foi fechado por mais de um ano devido a um problema com os ímãs?
O acidente aconteceu cerca de 10 dias depois que comecei a filmar. Minha reação imediata foi pensar que, meu Deus, aquilo seria o fim do meu filme. Mas percebi que era provável que o acelerador viesse a ser reativado, e que o acontecido servia como ótimo gancho dramático. Havia muita pressão por causa do acidente, e por isso a religação do LHC foi ainda mais tensa, bem como o resultado, que nos deixa em suspense sobre o que vai acontecer a seguir.

Qual foi a importância de sua formação como físico para fazer o filme?
Oh, creio que tenha sido essencial. Consegui entrar no assunto sem perder tempo, e não tive de fazer a pesquisa sobre física que alguém que estivesse começando precisaria realizar. Em certo sentido, a física não mudou muito desde a época que deixei o ramo, no final dos anos 80, porque o LHC ainda não existia. Por isso eu conhecia a situação, conhecia as pessoas e conhecia as vidas dessas pessoas, e sabia o que estava em jogo.

No cerne do filme está o estranho elo entre a física teórica e a física experimental. Você pode explicar?
O estereótipo é o do físico teórico solitário, trabalhando sozinho em uma sala, como Einstein, e ocasionalmente caminhando até o quadro negro. Eles são a elite, em certo sentido, muito matemáticos e abstratos. Mas precisam de pessoas que concebam experiências para eles e lhes forneçam dados que os apontem na direção correta. O conflito muitas vezes surge devido às escalas de tempo distintas entre os dois ramos. Um físico teórico pode acordar de manhã e de repente apagar uma equação, reescrevendo-a em seguida. Já o físico experimental, enquanto isso, passou 10 anos construindo uma máquina para provar aquela teoria.

Você registrou mais de 500 horas de imagens –como os cientistas se sentiam com você os seguindo o tempo todo?
Muitos deles eram fãs de cinema, e curtiram o fato de eu ter dirigido ficção. Achavam que era loucura filmar aquele material todo, mas também havia a excitação por, sei lá, eu talvez poder apresentá-los a Nicole Kidman, algo assim.

Como é o Cern?
A sensação é bem parecida com a de uma universidade. Existe provavelmente mais segurança do que em muitos campi, mas depois que você entra pode circular sossegado –ainda que não seja permitido ir a lugares como o túnel do subsolo. Mas a maioria dos edifícios abriga apenas escritórios de plano aberto, e há também um refeitório de primeira classe, com cozinheiros franceses. O refeitório serve como polo social, e muita gente se reúne lá para conversar sobre física enquanto come chucrute, filés ou peixe. Os doces franceses provavelmente são melhores que os de qualquer universidade que eu tenha visitado, e há todo uma cultura do café.

O seu documentário é incomum por não ter um narrador. Por quê?
Queríamos que a sensação fosse a de um drama, um filme cuja base fossem os personagens, e se você tiver um narrador onisciente é difícil escapar da sensação de documentário científico. Por isso a ideia era manter tudo mais orgânico e inserir a informação na história de forma a evitar a sensação de que alguém está lecionando para o espectador. Seria mais como uma aula particular.

Há alguns excelentes comunicadores em "Particle Fever", especialmente uma física chamada Monica Dunford. Você teve de entrevistar centenas de pessoas para encontrar aquelas que decidiu acompanhar?
Não entrevistei centenas de pessoas. Monica estava entre as primeiras dezenas de entrevistados, e tive sorte, porque ficou claro de imediato que ela tinha algo de especial. Não é algo que aconteça só na ciência, pensando bem: a maioria das pessoas não é necessariamente interessante, articulada e carismática. Não creio que os escolhidos fossem totalmente excepcionais, mas acho que temos alguns dos melhores.

As mulheres têm papel proeminente no filme. É essa sua experiência no Cern e na ciência em geral?
Não, e na verdade me preocupei por termos presença feminina forte demais, porque isso não é representativo. Mas optamos pelos melhores personagens e estou muito feliz que tenha sido assim, porque é muito claro que as mulheres estão sub-representadas. Você vê nas tomadas maiores nas salas de controle –há algumas mulheres, mas elas são talvez 30% do pessoal, o que é muito pouco. Seria satisfatório se o filme tivesse impacto sobre isso.

Vivemos um boom na ciência popular, você planeja continuar nessa área?
O meu tema neste filme me deixou um pouco mimado, mas catalisou meu interesse por observar a ciência de um ponto de vista narrativo. Há um livro que eu gostaria de adaptar em seguida –só posso dizer que tem a ver com biologia molecular e música. Com sorte, continuará a haver apetite por esses filmes.

Veja o trailer do filme:

Vídeo

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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