Folha de S. Paulo


Caetano Veloso se prepara para atravessar uma rua do Leblon

SOBRE O TEXTO O conto aqui publicado integrará a segunda coletânea de Rafael Sperling, "Um Homem Burro Morreu", a ser lançada no próximo mês, pela Oito e Meio.

*

I cross the streets without fear
("London, London", Caetano Veloso)

Caetano Veloso se prepara para atravessar uma rua do Leblon. Ele está na beira da rua, concentrado, olhando os carros. A rua possui muitos carros, todos passando em alta velocidade, que podem atropelá-lo e destruí-lo. Mas Caetano Veloso é prudente e se prepara com muito cuidado. A travessia deve ser rápida e segura, dentro do possível. Caetano Veloso toma a decisão e começa a travessia. Ele chega ao outro lado da rua em segurança. Ele comemora a travessia segura.

- Como você se sente após ter atravessado a rua, Caetano Veloso?

- Eu estou muito feliz.

Caetano Veloso está com fome após atravessar a rua. Ele precisa encontrar um restaurante que sacie a sua fome.

- Você está com fome, Caetano Veloso?

- Sim.

- Quanta fome?

- Muita.

Caetano Veloso, usando sua memória, pensa em todos os lugares em que já esteve no Leblon. Após meditar, ele toma a decisão: vai a um restaurante próximo à rua em que ele está.

- Por que você vai a esse restaurante, Caetano Veloso?

- Porque ele é muito bom.

Caetano Veloso adentra o restaurante. Ele olha o cardápio e escolhe a comida. Caetano Veloso faz o pedido.

- Você gosta dessa comida que você pediu, Caetano Veloso?

- Gosto muito.

Caetano Veloso come a comida. Ele come com gosto e degusta seu sabor agradável.

- Está gostando da comida, Caetano Veloso?

- Sim.

Caetano Veloso chama o garçom e pede a conta. Quando o garçom chega, Caetano Veloso sente vontade de ir ao banheiro.

- O que você vai fazer no banheiro, Caetano Veloso?

- Vou fazer cocô.

Caetano Veloso adentra o banheiro. O banheiro é limpo e cheiroso.

- Você gostou do banheiro, Caetano Veloso?

- Sim.

Caetano Veloso estuda o banheiro por alguns instantes. Em sua mente, tenta decidir qual cabine irá utilizar. Ele toma uma decisão: a cabine do meio. Caetano Veloso arria as calças e senta na privada. Ele acha a privada confortável para sua bunda.

- Você está confortável, Caetano Veloso?

- Muito.

Caetano Veloso pensa em coisas boas enquanto defeca. Após defecar, limpa a sua bunda. Ele olha para as suas fezes.

- Como estão as suas fezes, Caetano Veloso?

- Estão ótimas.

Caetano Veloso dá descarga e sai do banheiro. Ele paga a conta e sai do restaurante. Caetano Veloso decide pegar o seu carro.

- Por que você quer pegar o seu carro, Caetano Veloso?

- Porque quero voltar para casa.

Caetano Veloso precisa atravessar a rua novamente para pegar seu carro. Ele se prepara para, novamente, atravessar uma rua do Leblon. Caetano Veloso pensa na última vez em que atravessou uma rua no Leblon: a preparação, a concentração, a travessia, a chegada, o sucesso. Após alguns segundos de preparação, ele inicia a travessia de volta. Caetano Veloso chega ao outro lado com sucesso.

- Como você se sente após ter atravessado novamente a rua, Caetano Veloso?

- Eu estou novamente muito feliz.

Caetano Veloso caminha alguns metros e adentra o estacionamento em que deixou seu carro. Após entrar, fala com um atendente e pede seu carro.

- Você quer realmente pegar o seu carro, Caetano Veloso?

- Sim.

O atendente trata Caetano Veloso com muita polidez e educação. Caetano Veloso pensa que o funcionário é muito bem preparado para atendê-lo.

- Você está feliz com o atendimento, Caetano Veloso?

- Muito.

Após ser deixado sozinho pelo atendente, Caetano Veloso decide sentar-se e esperar. Ele olha para o banco de espera e avista três lugares vazios. Após meditar por alguns instantes, toma uma decisão: irá sentar-se no do meio. Caetano Veloso caminha dois passos e senta-se. Ele acha o banco muito confortável.

- Como está se sentindo, Caetano Veloso?

- Ótimo.

Enquanto está sentado, Caetano Veloso pensa nas coisas que fez ao longo do dia: a travessia da rua, a refeição no restaurante, a evacuação no banheiro do restaurante, a travessia de volta ao outro lado da rua, a espera pelo carro.

- Como está se sentindo, Caetano Veloso?

- Ótimo.

Jan Limpens

Um funcionário aparece e diz que o carro de Caetano Veloso está pronto. Caetano Veloso levanta-se e segue o funcionário. O funcionário leva Caetano Veloso até seu carro e entrega-lhe as chaves. Caetano Veloso sorri e agradece.

- Como está se sentindo, Caetano Veloso?

- Ótimo.

Caetano Veloso liga seu carro e sai do estacionamento. Ele gosta de dirigir seu carro pelas ruas do Leblon. Logo após deixar a garagem, Caetano Veloso passa exatamente pelo lugar em que atravessou a rua. Caetano Veloso pensa que, se ele não estivesse no carro, mas estivesse atravessando a rua nesse instante em que passa pelo mesmo ponto em que, alguns minutos atrás, atravessou a rua, ele estaria sendo atropelado por seu próprio carro, que estaria sendo dirigido por ele mesmo, Caetano Veloso. Ele medita por alguns instantes e sorri: Caetano Veloso está feliz por estar dentro de seu carro, e não atravessando a rua, pois ele estaria sendo esmagado e, provavelmente, morto por seu próprio carro.

- Como está se sentindo, Caetano Veloso?

- Ótimo.

Caetano Veloso pensa em uma bela melodia, que veio até sua mente enquanto sentia-se bem por não estar sendo atropelado e morto por seu próprio carro. Ele dirige e canta. Caetano Veloso para no sinal vermelho e continua cantando com alegria e descontração, que são inerentes a Caetano Veloso.

- Como está se sentindo, Caetano Veloso?

- Ótimo.

Caetano Veloso, além de cantar, começa a movimentar os braços, como costuma fazer quando dança, de uma maneira bem característica de Caetano Veloso. Enquanto dança com os braços, Caetano Veloso olha para o carro ao lado, que também está parado no sinal vermelho. Caetano Veloso vê uma criancinha. A criancinha sorri para Caetano Veloso, que também sorri para a criancinha. A criancinha começa a imitar a dança com os braços que Caetano Veloso está ainda fazendo enquanto olha e sorri para a criancinha, que está no outro carro, parado no mesmo sinal vermelho que Caetano Veloso.

- Como está se sentindo, Caetano Veloso?

- Ótimo.

Caetano Veloso continua olhando para a criancinha e movendo seus braços. Ele nota que o carro da criancinha está se movendo e, utilizando os pés, acelera o seu carro. Caetano Veloso não precisa das mãos para acelerar o seu carro, pois o câmbio é automático, e, portanto, ele pode continuar a olhar a criança, que está parada no mesmo sinal vermelho que ele, e a mover os seus braços enquanto vê a criancinha se movendo para frente no outro carro, enquanto acelera o seu carro sem olhar para frente.

- Como está se sentindo, Caetano Veloso?

- Ótimo.

Caetano Veloso acelera o seu carro sem notar que, na verdade, o carro da criancinha avançou muito pouco, pois o pai dela queria avançar o sinal, mas desistiu quando notou que havia muitos carros passando em alta velocidade, e que poderiam abalroá-los e destruí-los. O carro de Caetano Veloso avança e, num determinado momento, fica bem no meio de um cruzamento. Neste momento, Caetano Veloso está sorrindo, movendo os braços, e tentando olhar para a criancinha, que já está a escapar do seu campo de visão, mas Caetano Veloso estica seu pescoço e, fazendo um grande esforço, ainda consegue ver um pouco da criancinha, que também sorri e continua a mover os braços como Caetano Veloso.

- Como está se sentindo, Caetano Veloso?

- Ótimo.

Nesse momento, em que Caetano Veloso encontra-se bem no meio de um cruzamento de uma rua no Leblon, um carro, em alta velocidade, choca-se violentamente contra o carro de Caetano Veloso. O choque é tão violento que o carro que estava em alta velocidade, ao contrário do carro de Caetano Veloso, que estava se movendo de forma vagarosa, na rua movimentada do Leblon, estraçalha a porta do carona do carro de Caetano Veloso e invade o interior de seu carro. No momento em que seu carro está sendo invadido pelo outro carro, o que estava em alta velocidade, Caetano Veloso ouve um som muito alto. Nesse momento, Caetano Veloso para de movimentar os braços e de olhar para a criancinha. A criancinha, que ainda estava movendo os braços, assim como Caetano Veloso, percebe que há algo de errado com Caetano Veloso.

- Como está se sentindo, Caetano Veloso?

- (...)

O carro de Caetano Veloso está rolando, em alta velocidade, pelas ruas do Leblon. Como Caetano Veloso está usando o cinto de segurança, nos momentos em que seu carro está de cabeça para baixo, ele permanece com sua bunda encostada no assento de seu carro.

- Como está se sentindo, Caetano Veloso?

- (...)

Por um pequeno instante, Caetano Veloso pensa que, se ele não estivesse ali, de cabeça para baixo, usando o cinto de segurança, em seu carro que rodopia no ar em alta velocidade pelas ruas do Leblon, mas sim estivesse atravessando a rua, ele estaria sendo atropelado por seu próprio carro, que estaria sendo dirigido por ele mesmo, Caetano Veloso. Ele medita por alguns instantes muito breves e sorri: Caetano Veloso está feliz por estar dentro de seu carro, que está rodopiando em alta velocidade pelas ruas do Leblon, e não atravessando a rua, pois ele estaria sendo esmagado e, provavelmente, morto por seu próprio carro.

- Como está se sentindo, Caetano Veloso?

- De certa forma, ótimo.

O carro de Caetano Veloso, após rodopiar por alguns instantes em alta velocidade, troca de pista e é acertado por um segundo carro que também está em alta velocidade, embora não estivesse rodopiando como o carro de Caetano Veloso, e sim andando da maneira normal, com as quatro rodas tocando o chão do Leblon. O choque interrompe o trajeto do carro de Caetano Veloso. Um terceiro carro, que não consegue frear a tempo, pois também está em alta velocidade pelas ruas do Leblon, choca-se contra a massa disforme que se tornou o carro de Caetano Veloso, que não está mais rodopiando, pois juntou-se ao segundo carro, que também estava em alta velocidade, embora não estivesse rodopiando como o de Caetano Veloso. O terceiro carro também tornou-se uma massa disforme e não é mais possível distinguir o carro de Caetano Veloso do outro carro que o havia acertado anteriormente. Logo, o último carro que acertou o de Caetano Veloso também se junta à massa disforme formada pelo carro de Caetano Veloso e pelos carros que o haviam acertado anteriormente.

- Como está se sentindo, Caetano Veloso?

- (...)

Nesse momento, Caetano Veloso está sendo esmagado pelas ferragens de seu carro, que está sendo pressionado pelas ferragens dos outros dois carros que o acertaram. Caetano Veloso, apesar de estar com seu corpo parcialmente dilacerado pelas ferragens do seu e dos outros carros, que nesse momento invadem cada vez mais o espaço interno de seu carro, estica o braço com dificuldade, esse mesmo braço que instantes atrás era observado e imitado pela criancinha feliz, mas que agora nem é mais um braço, e sim alguns pedaços de carne e sangue. Caetano Veloso estica o braço e alcança seu violão, que estava no banco traseiro, mas que, por causa do acolchoamento dos bancos, não foi destruído totalmente, e sorri exibindo os poucos dentes que ainda restam em sua boca, que na verdade nem é mais uma boca exatamente, pois para quem olha de fora é apenas um buraco ensanguentado. Caetano Veloso pensa que os estofados que ele mandou colocar em seu carro são muito bons, pois impediram que seu violão favorito fosse destruído.

- Como está se sentindo, Caetano Veloso?

- De certa forma, ótimo.

Quando consegue trazer o violão para perto de seu corpo, Caetano Veloso arrisca alguns acordes e pensa na melodia que estava compondo há alguns momentos, antes que seu carro fosse atingido diversas vezes, virando uma massa disforme e dilacerando seu corpo. Caetano Veloso arrisca alguns acordes e tenta cantar a melodia, mas falha, pois suas cordas vocais foram destruídas. No lugar de suas cordas vocais está um pedaço de aço de um dos carros que o acertaram. Mas Caetano Veloso não se importa e continua a mover o que sobrou de sua boca, enquanto pensa que canta a melodia que imagina em sua cabeça, pensando em qual letra ficaria boa nessa melodia, e que essa melodia poderia vir a se transformar em uma música de seu novo projeto, do seu disco que está planejado para o ano que vem e no qual ele vem trabalhando nos últimos meses. Caetano Veloso pensa que essa poderia ser a música de trabalho. Quem sabe.

RAFAEL SPERLING, 28, compositor e produtor musical, é autor do livro de contos "Festa na Usina Nuclear" (Oito e meio).

JAN LIMPENS, 44, é ilustrador e quadrinista.


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