Folha de S. Paulo


Damien Hirst escreve autobiografia sem lembrar 10 anos de sua vida

O artista, que está escrevendo suas memórias, não consegue recordar acontecimentos entre seus 20 e 30 anos. E daí? Inventar memórias é muito mais divertido.

Façamos uma pausa para observar um minuto de solidariedade com o editor de Damien Hirst: o ex-bad boy da "Brit art" anunciou sua intenção de escrever sua autobiografia. Quando os editores tiverem negociado qualquer soma arrasadora que seja necessária para adquiri-la, com certeza vão esperar histórias de hedonismo e vícios dos tempos emocionantes dos YBAs (young British artists, ou expoentes da Brit art). Infelizmente, uma exposição excessiva a excessos cobrou seu preço do protagonista, e Hirst foi obrigado a admitir que há um período de dez anos de sua vida do qual não se lembra. E isso tornará especialmente ingrata a tarefa de editar seu livro.

Para os cínicos da arte que estão aí fora, aqueles em que as obras de Damien Hirst suscitam raiva profunda, essa notícia talvez não constitua surpresa. Pode até ser uma confirmação dos motivos de seu ceticismo, especialmente porque a década perdida do artista aparentemente inclui seu "ano formador" na faculdade Goldsmiths, no final dos anos 1980. Se Hirst não se lembra desses tempos, até que ponto eles podem ter sido verdadeiramente formadores? É até possível que aqueles que zombam da habilidade técnica do artista, ridicularizam suas ideias e tacham seu trabalho de desalmado tenham encontrado o buraco negro de cuja existência sempre desconfiaram.

Contudo, sendo eu alguém que regularmente me esqueço do que fiz na semana passada, o que dirá algumas décadas atrás, sinto empatia peculiar com Hirst. Eu poderia citar centenas de momentos cruciais e definidores de minha vida dos quais me esqueci, só que não posso, porque não me lembro deles. Nem sequer tenho a desculpa de Hirst, de blecautes induzidos pelo álcool (mas estou convencida de que o problema está ligado ao meu sentido olfativo fraco. Proust provavelmente saberia). Alguém que se dizia dotado de conhecimento científico me explicou certa vez que ninguém tem memória "fraca", apenas dificuldade em acessar suas memórias. Se for assim, minha memória tem segurança melhor que a de uma joalheria de Bond Street.

Natalie Naccache - 6.out.2013/The New York Times
Damien Hirst diante de uma de suas pinturas em Al Riwaq, em Doha, Qatar, em outubro de 2013
Damien Hirst diante de uma de suas pinturas em Al Riwaq, em Doha, Qatar, em outubro de 2013

Graças a meu fracasso total em me recordar, já confundi aniversários e deletei anos inteiros do colégio. Perdi várias amizades que, sem dúvida, foram muito importantes em sua época. Se você quiser que eu me lembre de algo de meu passado, precisa estar disposto a me acompanhar mentalmente até lá e ali permanecer enquanto eu faço força para arrancar a informação de minhas sinapses relutantes. O esforço raramente se justifica. Todos aqueles fatos históricos que as pessoas usam como marcos comuns em suas vidas –o 11 de setembro, a vitória de Murray em Wimbledon– parecem escarnecer de mim. Você se lembra do funeral de Diana? Nem sei onde passei minhas férias naquele ano. Namorar alguém dotado de ótima memória pode ajudar, mas significa que vocês precisam fazer tudo juntos. E descubro que namorados não gostam muito quando você começa a tratá-los como discos rígidos externos.

Por isso, sinto por Damo. Posso imaginar as horas em que ele fica sentado sem nada dizer enquanto Sarah Lucas e Gary Hume tomam uma vodca tônica, repassando reminiscências sobre a noite em que conceberam seu primeiro manifesto artístico, e Hirst é obrigado a concordar hesitantemente, enquanto seu cérebro vasculha a conversa numa busca desesperada por pistas que revelem onde eles estavam ou o que fizeram nessa noite. Os dias em que Tracey Emin fica cansada e emotiva e se recorda, chorosa, de algum momento belo de amizade, e Hirst tem medo que ela lhe peça para repassar a cena. Se ele é como eu, nem que seja um pouco, já deve ser mestre na emissão de "ahãs" e "ohs" que pouco revelam, assinalando um afeto profundo por um acontecimento que se nega resolutamente a voltar à sua memória.

E sinto um pouco de inveja dele. Hirst chamou um co-autor, James Fox, para ajudá-lo a juntar as partes avulsas de sua autobiografia. O temível Fox já ajudou ninguém menos que o viajante espacial Keith Richards a redigir sua autobiografia, algo que deve ter sido um pouco como peneirar areia para separar o pó. Fox vai descobrir exatamente o que Hirst fez durante seus anos perdidos, e quando o fizer, Hirst terá a alegria de viver tudo outra vez, à distância. E, presumo, sem sofrer em primeira mão os sentimentos de culpa, vergonha ou náusea ligados às memórias.

Natalie Naccache - 6.out.2013/The New York Times
Damien Hirst imita sua obra no Museu de Arte Islâmica em Doha, Qatar, em outubro de 2013.
Damien Hirst imita sua obra no Museu de Arte Islâmica em Doha, Qatar, em outubro de 2013.

Se alguns dos detalhes continuarem confusos, mesmo assim, bem, Hirst não terá sido nem o primeiro autor nem o último a inventar trechos de suas memórias. Na realidade, é bastante injusto querer que qualquer pessoa se recorde com muita precisão de sua vida, a não ser que ande por aí rabiscando sobre seu próprio corpo, como Guy Pearce em "Amnésia". Cientistas já demonstraram que nosso cérebro é capaz de reescrever memórias à medida que as repassamos em nossa cabeça, e autores de memórias já nos deram as provas disso. Como prova, ainda temos o pobre Piers Morgan, que conseguiu não apenas errar a sequência de fatos conhecidos de sua própria autobiografia, como convencer-se de que tinha realmente feito relatos deles na época em que aconteceram.

A história é escrita pelos vencedores, mas as memórias são escritas pelos fantasistas. Se os políticos agissem com tanta justiça e racionalidade quanto se lembram de ter agido, quando redigem suas memórias, os corredores de Westminster seriam tão "interessantes" quanto os do shopping center de Luton. Sendo alguém que já leu muitas biografias desinteressantes e honestas de atletas desinteressantes e honestos, escritas por "ghost writers", ficarei mais que feliz se Hirst quiser enfeitar um ou outro incidente esquecido e jogar um pouco de purpurina em cima, como faz com seus crânios. O narrador pouco confiável é uma tradição literária excelente. Talvez Hirst possa fazer como "Tristram Shandy" e preencher aquelas lacunas com um pouco de papel bonitinho. Com pontinhos em cima.

Tradução de Clara Allain.


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