Folha de S. Paulo


O ás do xadrez vai à Festa da Uva

RESUMO Campeão mundial de xadrez, Magnus Carlsen, 23, esteve no final de semana passado em Caxias do Sul (RS), onde disputou 60 partidas (e perdeu apenas uma). Numa era em que a tecnologia empobreceu o estilo dos jogadores, o intuitivo norueguês, chamado de o "Brad Pitt do xadrez", deu novo alento ao esporte.

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É a festa da uva, e Cristiano Ronaldo está perfilado à espera de seus adversários, cuja qualidade futebolística varia de perna de pau a artilheiro do Campeonato Brasileiro. Cada um pagou a quantia de R$ 150 para ter a chance de enfrentar o melhor jogador do mundo.

Não é isso, mas quase. No lugar do craque português que levou a Bola de Ouro em janeiro, o enxadrista norueguês Magnus Carlsen, 23, campeão mundial do esporte desde novembro, era quem -pela primeira vez em seis anos- se sentava à frente de um tabuleiro em um torneio aberto a qualquer jogador, durante a celebração da colheita da uva de Caxias do Sul.

A presença do número um atraiu ao Rio Grande do Sul cerca de 380 competidores, número alto para uma disputa do esporte no Brasil. A maioria era de amadores que queriam vê-lo de perto -ou, com alguma sorte, jogar contra ele.

Maicon Damasceno/Folhapress
Magnus Carlsen, em Caxias do Sul
Magnus Carlsen, em Caxias do Sul

Muitos epítetos têm sido usados para definir Carlsen, loiro, atlético, de poucos sorrisos e personalidade retraída. É conhecido como "Mozart do xadrez" pela forma harmoniosa como conduz suas peças no tabuleiro. Foi eleito pela revista "Time" uma das cem pessoas mais influentes do mundo em 2013. Mas seu prestígio atinge ainda rankings mais mundanos -a revista feminina "Cosmopolitan" o colocou na sua lista de cem homens mais sexy. E fotógrafo da grife holandesa de roupas G-Star, para a qual ele faz as vezes de modelo, o chamou de "Brad Pitt do xadrez".

Tem uma legião de fãs, mas não é afeito a fotos e autógrafos. "Eu aprecio o fato de as pessoas admirarem o que faço. Acho legal dar autógrafos, mas na medida em que não haja muita gente", disse em um dos pavilhões da Festa da Uva, onde minutos antes havia ganhado invicto um torneio de que participaram também dois grandes mestres (a maior graduação do xadrez) brasileiros e um uruguaio.

Ele diz que o xadrez não é um dos seus tópicos de conversação favoritos. Tanto que, quando algum desconhecido pergunta sua profissão, costuma dizer que é desempregado. "Foi um jeito que achei de variar o assunto, porque jogo e vivo xadrez o tempo todo."

Não é tão fácil fugir do tema quando se passa metade do ano em viagens para campeonatos ou compromissos com patrocinadores -só com eles, Carlsen ganha mais de US$ 1 milhão (cerca de R$ 2,4 milhões) por ano. Sua rotina quando está em casa -mora sozinho em Oslo- também se centra no jogo. "Geralmente treino, vejo as partidas que estão sendo jogadas pelo mundo, busco novas ideias, faço alguma atividade física." Namorada ele não tem. "Viajo muito e prefiro ficar só."

RESERVADO

Em Caxias do Sul, Carlsen teve pouco contato com os jogadores. Chegava ao salão de jogos pouco antes de as partidas começarem e deixava o local após terminar seu jogo. Esperava o duelo seguinte em uma sala reservada.

Seu principal interlocutor era Peter Heine Nielsen, 96º colocado do ranking mundial. O dinamarquês é um dos "segundos" do campeão mundial, como são chamados os jogadores que o ajudam nos treinamentos. Com 40 anos e cerca de 1,90 de altura, também foi uma espécie de segurança do número um ao negar fotos e autógrafos entre uma partida e outra.

A distância entre Carlsen e os demais só diminuiu depois que o torneio terminou -como esperado, o norueguês foi o campeão com facilidade, ao vencer oito partidas e empatar uma, contra o ex-campeão brasileiro Gilberto Milos, 50. Após receber o troféu em forma de cacho de uva e um prêmio de R$ 6.000 pelo primeiro lugar, Carlsen se juntou a outros enxadristas para jogar uma partida de futebol.

Foi um dos destaques do duelo: ele adora futebol e joga como lateral em um time amador de Oslo. É torcedor do Real Madrid -foi ao Santiago Bernabéu assistir a um jogo em seu último aniversário- e, em Porto Alegre, visitou os estádios do Grêmio e do Internacional.

Seu gosto por esportes se estende ao tênis e ao basquete, que pratica. Pouco antes de vir ao Brasil, também esteve em Sochi, na Rússia, para assistir aos Jogos de Inverno -o esqui era seu esporte favorito antes de decidir se dedicar ao xadrez, aos oito anos.

O culto ao corpo o aproxima de outra lenda do xadrez, o americano Bobby Fischer (1943-2008), campeão mundial na década de 70, que acreditava que a boa forma física era fundamental para sua performance nos tabuleiros.

Foi há dez anos, ao empatar com outro fenômeno do esporte, que Carlsen ganhou fama. O russo Garry Kasparov era então o melhor jogador do mundo quando enfrentou o menino de 13 anos, em Reykjavík (capital da Islândia).

Aluno mediano, abandonou a escola dois anos antes de completar o equivalente norueguês do ensino médio e não quis fazer faculdade. "Não tenho queixas, sou feliz assim. Meus resultados mostram que foi uma boa decisão."

Aos 19, tornou-se o mais jovem número um do ranking da Federação Internacional do Xadrez. Em novembro, aos 22 anos, conquistou o título de campeão mundial ao vencer o indiano Viswanathan Anand, 44, no duelo de xadrez de maior repercussão desde a disputa entre Kasparov e o computador Deep Blue, em 1997. Além do título, ostenta hoje a maior pontuação da
história do ranking do esporte.

NOVO RUMO

A conquista do título mundial por Carlsen também significa um novo rumo para o xadrez. Nas duas últimas décadas, o desenvolvimento da tecnologia teve efeito ambíguo sobre o jogo.

Se, por um lado, os computadores deram maior poder de análise e permitiram acesso a bases de dados com partidas dos melhores do mundo, por outro isso significou um empobrecimento de estilo. Desde Kasparov, nos anos 1980 e 1990, não havia aparecido um jogador hegemônico no xadrez.

A era Carlsen tem "reumanizado" o esporte. A principal qualidade do norueguês é exclusivamente humana: a intuição, ou saber "sentir" e avaliar corretamente qual é a melhor jogada. Ele descreve o processo como simples: diz que, ao olhar para uma posição de xadrez, percebe o movimento que deve fazer em alguns segundos. No resto do tempo, usa o cálculo para checar se a escolha está certa.

Ao considerar o xadrez um duelo psicológico e, portanto, humano, Carlsen rejeita disputar com máquinas. "Eu acho que computadores são ferramentas importantes para análise e treinos, mas não os vejo como meus adversários."

Hoje, com a evolução dos programas de computador específicos de xadrez, a vitória de uma máquina sobre qualquer jogador, inclusive o melhor do mundo, seria praticamente garantida.

Entre humanos, Carlsen reconhece sua supremacia. "Acho que alguns jogadores podem ganhar de mim em um dia específico, mas não creio que haja algum que possa fazer isso de maneira consistente."

Durante sua passagem pelo Brasil, o norueguês disputou 60 partidas em quatro dias, entre duas exibições e dois campeonatos. Mas apenas o paranaense Glaucio Dalla Cortt Cella, 25, estava no tal "dia específico". Ganhou do campeão mundial em uma exibição em que Carlsen jogou contra 37 adversários ao mesmo tempo em um shopping de Caxias do Sul.

Formado em direito, Cella largou um emprego em 2010 para estudar para concursos públicos. Desde então, se dedica menos ao xadrez. Mas viajou de carro por 12 horas, saindo de Francisco Beltrão, no interior do Paraná, para enfrentar o campeão. Estima ter gastado R$ 2.000 no fim de semana.

Contra Carlsen, venceu em 41 jogadas. "Claro que foi uma zebra. Eu estava iluminado, e ele tinha tido um dia corrido, estava cansado", afirmou o paranaense após o feito. Depois da vitória, tornou-se celebridade entre os enxadristas. A planilha em que anotou os lances do jogo virou suvenir.

CAROLINA ARAÚJO, 29, é jornalista da Folha.


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