Folha de S. Paulo


Respostas de Ana Cláudia Viegas

ANA CLÁUDIA VIEGAS
professora de literatura brasileira da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

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É possível apontar tendências na produção literária contemporânea?
Apesar da diversidade, é possível apontarmos algumas tendências na produção literária contemporânea. Por exemplo, um "novo realismo", que busca chamar a atenção para uma realidade brutal, mas sem o caráter apenas de "representação da realidade". Esses "novos realistas" não abrem mão também de um certo experimentalismo formal. Outra tendência é um uso bastante frequente da narração em 1ª pessoa, sendo que esse narrador, muitas vezes, se confunde com a figura do próprio autor. Daí um grande número de "personagens-escritores".
Um outro aspecto relevante da cena literária atual é o fato de muitos escritores terem uma atuação multimídia. Além de livros, escrevem roteiros, quadrinhos, alimentam blogs, Twitter, redes sociais. Mas é importante ressaltar que essas tendências não abarcam toda a produção contemporânea. São apenas algumas constantes que podem ser observadas.

Quais seriam suas principais qualidades e deficiências?
As principais qualidades são as de todas as épocas: os escritores que dominam a técnica de narrar, criam boas histórias, afetam o leitor, e também aqueles que conseguem fazer uso das novas tecnologias de modo proveitoso. Os defeitos talvez estejam ligados ao estado prematuro de certas obras. Como se publica muito hoje, jovens escritores se lançam no mercado, mesmo antes de amadurecerem suas narrativas.

A Feira de Frankfurt e os programas da política do livro mantidos pelo governo (bolsas de tradução, bolsas de criação, criação de festivais) trouxeram resultados significativos para a produção artística?
Destaco, entre essas iniciativas, as bolsas de tradução, por criarem condições de divulgação da produção literária brasileira no exterior. O conhecimento restrito da língua portuguesa no mundo dificulta o conhecimento das obras e o consequente reconhecimento de nossos grandes escritores no circuito internacional.

A perspectiva de aceitação no mercado exterior norteia de alguma forma o tipo de literatura que se está produzindo? O jovem autor escreve pensando no exterior?
Sempre existe o risco de o jovem escritor se pautar ou pelo mercado exterior, ou pela possibilidade de ser adaptado para o cinema, por exemplo. Mas isso não invalida as iniciativas de ampliação do mercado consumidor das obras.

Existe uma "globalização" dos temas?
Os mesmos "temas" podem adquirir um caráter local, dependendo da perspectiva a partir da qual são tratados. Como já disse Machado, no século retrasado, o que define a nacionalidade de uma literatura não são os temas, mas o olhar que se lança sobre esses temas.

A literatura contemporânea inova em algum sentido? Ela renova formas, gêneros? Como?
A inovação não é um traço tão marcante na produção contemporânea como foi na arte modernista. O "novo" hoje se cria a partir de novas roupagens ou misturas. A ideia de ruptura perde força e o que predomina é a reciclagem, a reelaboração, a ressignificação.

Existe ainda no Brasil literatura "regional"? A origem geográfica é determinante na literatura que se produz?
Durante muito tempo, o "regional" foi pensado e representado de forma isolada, o que gerou muitas vezes uma certa "folclorização". Ainda há espaço para o regional na produção contemporânea, mas esse regional aparece atravessado pelo nacional e o global. Como fora das obras, não há regiões isoladas, o que não significa que elas percam completamente suas peculiaridades. Vale aqui a mesma referência ao pensamento de Machado: o olhar, a perspectiva é sempre cultural, entendendo-se as culturas dentro da sua dinâmica de trocas e mudanças.

A literatura produzida atualmente no país é política? Ser política é uma característica relevante?
Não se pode afirmar isso em relação a toda a produção. Aliás, nenhuma característica pode ser atribuída ao conjunto diversificado do que se escreve e publica hoje. Mas, certamente, há uma dimensão política em boa parte dessa produção, no sentido de uma preocupação com certas mazelas e atrocidades da "realidade brasileira". Mais uma vez, muitos desses problemas, como a violência urbana, não são específicos da nossa sociedade, mas se configuram aqui de um certo modo, relacionado a história de nossa formação social.

A chamada autoficção, voltada para o próprio eu, para a própria experiência, parece ser um dos mais fortes motes da produção literária dos últimos anos. Alguns estudos apontam uma exacerbação da subjetividade, que seria vista como um valor de autenticidade. Como avalia essa questão? Quais implicações disso na literatura brasileira?
Sem dúvida, a autoficção é uma forte tendência da produção atual. Acho que ela se relaciona à exacerbação da subjetividade na cultura contemporânea - presente tanto na autoexposição quanto no interesse na privacidade alheia - e, ao mesmo tempo, a uma problematização dessa configuração do sujeito hoje. Não me parece que seja um "valor de autenticidade", visto que essa subjetividade se constrói a partir, por exemplo, de modelos externos reapropriados. Mas, sem dúvida, trata-se de uma reconfiguração dos espaços público e privado, no sentido que a sociedade burguesa deu a esses termos.

A literatura, se voltada para o eu, para a própria experiência, pode ser política?
Pode, na medida em que coloca em discussão a própria delimitação entre o político, entendido como voltado para as questões públicas, e o privado. Diversos movimentos políticos das últimas décadas - o movimento feminista, o movimento gay, o movimento negro - se constituíram a partir de questões identitárias, entendendo as identidades como políticas, já que construídas socialmente.

Como as formas de interação via redes sociais se manifestam na literatura que se produz hoje?
Eu destacaria a presença dessas interações na formação da figura do escritor. Através dessas redes, vão-se constituindo "escritores-personagens" e, muitas vezes, há uma interação entre esses "personagens" e o narrador em primeira pessoa de suas obras. É o caso das autoficções, cuja leitura pressupõe uma trama formada para além do livro.

Existe uma desagregação do romance como forma convencional –pela fragmentação, pela intervenção gráfica?
O romance sempre absorveu características de outros gêneros, literários ou não: o drama, a carta, a publicidade, o roteiro etc. etc. É um gênero híbrido e em permanente transformação. Isso não é uma novidade da produção atual.

Antologias, coletâneas temáticas, seletas de escritores e outras iniciativas que partem do mercado editorial são frutíferas? Beneficiam a produção?
Podem ser. Não vejo as produções "por encomenda" como necessariamente de menor qualidade. Isso é um preconceito relacionado a mitos românticos, como a "inspiração", a total separação entre a produção artística e uma remuneração por essa produção.

As oficinas de criação literária, que abundam nos últimos anos, "moldam" a literatura que se produz hoje?
Acho que pode haver uma certa "uniformização" pelos procedimentos aprendidos, mas sempre haverá quem se destaque e utilize o que aprendeu de um modo diferente.

Que espaço tem a poesia hoje, na produção e no mercado? Pode ganhar mais espaço após o sucesso surpreendente da edição da poesia completa de Leminski no ano passado?
A poesia continua tendo um espaço pequeno, e fenômenos como o sucesso da edição do Leminski servem para mostrar que esse pequeno espaço se deve a um preconceito de que "poesia não vende". A oferta também molda o gosto do público. É preciso, portanto, diversificar essa oferta.


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