Folha de S. Paulo


Respostas de Leila Lehnen

LEILA LEHNEN
professora de literatura brasileira e hispano-americana e de estudos latino-americanos na University of New Mexico (EUA)

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É possível apontar algumas tendências na produção literária contemporânea?

Acho que algumas tendências (além das indicadas "autoficção") são:

a) Literatura urbana (esta tem várias expressões)
b) Literatura periférica/marginal
c) Literatura de "viagem" (aqui entra a tematização da condição global, da globalização)

Há também um certo realismo que permeia várias destas correntes. Mas este realismo se manifesta de diferentes maneiras – não se pode reduzi-lo a termos como "brutalismo" etc. Outra faceta que me parece recorrente em algumas obras recentes é a melancolia. A causa da melancolia varia de escritor em escritor, mas acredito ver esta temática principalmente nos "novíssimos" (Laub, Bensimon, de Leones).

Quais seriam suas principais qualidades e deficiências?
Acho difícil falar de "qualidades" ou "deficiências" já que estas classificações implicam uma posição muito subjetiva, pessoal do leitor/a. Qualidades seriam, na minha opinião, uma certa autoconfiança que se pode entrever em vários escritores contemporâneos, incluindo os mais novos. Por este mesmo viés, no entanto, há também um certo narcisismo que se manifesta em uma prosa artificial. Para mim, isto é uma possível deficiência.

A Feira de Frankfurt e os programas da política do livro mantidos pelo governo (bolsas de tradução, bolsas de criação, criação de festivais) trouxeram resultados significativos para a produção artística?
Não aqui nos EUA. Acho que estas iniciativas ainda são muito poucas, e muito voltadas ao mercado nacional ou talvez europeu. O governo brasileiro podia investir mais em traduções de obras contemporâneas (não apenas de clássicos) ou de iniciativas culturais visadas a trazer escritores a campi universitários fora do Brasil. Penso também na criação de casas da cultura brasileira no exterior, um pouco ao estilo dos Institutos Cervantes/Camões/Goethe. Aqui também há uma comunidade de acadêmicos que mexe com literatura brasileira contemporânea. Seria interessante se o governo brasileiro apoiasse estes programas através de intercâmbios de professores (modelo Fullbright), estudantes (bolsas sanduíche), residências de escritores, congressos etc.

A perspectiva de aceitação no mercado exterior norteia de alguma forma o tipo de literatura que se está produzindo? O jovem autor escreve pensando no exterior?
Não sei. Acho que depende do escritor. Há alguns que parecem mais antenados a uma ideia de uma "literatura globalizada" (estou pensando aqui um pouco no fenômeno McOndo, de escritores latino-americanos como Alberto Fuguet, Rodrigo Fresán, Jaime Bayly como ponto de comparação). Mas me pergunto se em parte não são as editoras que estão mais conscientes desta faceta. Penso por exemplo na iniciativa da Companhia das Letras "Amores expressos" – que toma justamente o exterior como ponto de partida.

Existe uma "globalização" dos temas?
Acho que de certa forma sim. A globalização é abordada de forma direta/indireta/crítica/celebratória em vários romances recentes (Cuenca/Terron/Scott/Vidal). Geralmente não é uma abordagem pelo viés da cultura de massas (como na Geração McOndo) e sim pelo deslocamento físico e psicológico. Há, claro textos que falam da globalização como um fenômeno centrado na cultura de massas (Nazarian), mas me parece que hoje em dia a literatura brasileira lida com a globalização mais através da abordagem do estrangeiro.

Este estrangeiro pode, no entanto, estar dentro da própria sociedade brasileira, pode ser visto em contextos que transmitem a ideia de limites (ver o último romance da Carol Bensimon "Todos nós adorávamos caubóis" por exemplo). Finalmente há textos que lidam com o lado "escuro" da globalização, os efeitos de neoliberalismo por exemplo (Ana Paula Maia).

A literatura contemporânea inova em algum sentido? Ela renova formas, gêneros? Como?
De novo, depende. Acho que o grande inovador atualmente é o Luiz Ruffato com "Eles eram muitos cavalos" e "Inferno provisório". Não somente porque criou textos originais em termos de conteúdo e de forma/gênero, mas também porque esta inovação convence. Há textos que (tentam) inovar, mas que não têm êxito (em inglês se diz "fall flat"). No caso de Ruffato há uma organicidade entre conteúdo e forma inovadoras.

Existe ainda no Brasil literatura "regional"? A origem geográfica é determinante na literatura que se produz?
O "regionalismo" brasileiro hoje em dia é, em geral, completamente diferente daquele dos anos 30 (Rosa/Ramos/Queiroz por exemplo). Hoje o regionalismo pode ser encontrado de certa forma na literatura das periferias urbanas. Há também uma vertente um pouco mais "tradicional", que vem de lugares como a região Norte (Hatoum, Márcio Souza). Alguns textos que poderiam ser considerados regionalistas (Ronaldo Correia de Brito "Galiléia) interrogam a definição do regionalismo.

A literatura produzida atualmente no país é política?
Acho que alguns autores e/ou vertentes sim. Mencionei Ruffato acima. Mas há outros, como Ferréz, Sacolinha, Sérgio Vaz, Marcus Vinicius Faustini que fazem uma literatura abertamente política. Outros escritores abordam a "política" de forma mais indireta. Em alguns textos vemos uma abordagem política pelo viés de experiências pessoais (o pessoal vira político e vice-versa). Na minha opinião, a literatura sempre dialoga com o seu contexto e pelo tanto é necessariamente política. A própria postura "apolítica" de certos textos pode ser lida como um comentário político.

A chamada autoficção, voltada para o próprio eu, para a própria experiência, parece ser um dos mais fortes motes da produção literária dos últimos anos. Alguns estudos apontam uma exacerbação da subjetividade, que seria vista como um valor de autenticidade. Como avalia essa questão? Quais implicações disso na literatura brasileira?
Como indiquei acima, acho que esta volta ao "eu" manisfesta uma postura de desencanto que pode ser lida como um resultado de vários fenômenos sociais, políticos, econômicos. A exacerbação da subjetividade muitas vezes comenta sobre o individualismo, ou celebrando-o ou criticando-o. Não acho que a subjetividade/autorreferencialidade seja necessariamente um valor de autencidade. Muitas vezes pode ser o contrário, uma "postura" ("posturing").

Como as formas de interação via redes sociais se manifestam na literatura que se produz hoje?
Acho que principalmente no âmbito da difusão/propaganda. Não me parece que as redes sociais tenham um efeito muito grande sobre a temática (claro que aparecem em alguns textos, mas não são o tema central em geral) ou a forma dos textos literários contemporâneos. Houve algumas tentativas de incorporar as redes sociais no formato literário como através de folhetins eletrônicos (Ana Paula Maia, Ronaldo Bressane) ou do Twitter (Marcelino Freire), mas em última instância, a literatura continua a usar formas tradicionais (livros impressos ou em formato eletrônico).

Existe uma desagregação do romance como forma convencional –pela fragmentação, pela intervenção gráfica?
Talvez, mas não vejo isso como uma tendência dominante hoje em dia.

Antologias, coletâneas temáticas, seletas de escritores e outras iniciativas que partem do mercado editorial são frutíferas? Beneficiam a produção?
Depende de como são organizadas e difundidas. Muitas vezes este tipo de texto toma uma postura bastante tradicional que não acrescenta nada à oferta existente. Obras mais inovadoras – poucas na verdade – sim podem ter um impacto. Estou pensando nas duas antologias de Nelson de Oliveira ("Manuscritos de computador" e "Os transgressores") que introduziram vários nomes à leitores e que, de certa forma, consolidou a novos escritores

As oficinas de criação literária, que abundam nos últimos anos, "moldam" a literatura que se produz hoje?
Possivelmente, mas não sei suficiente sobre o tema.

Que espaço tem a poesia hoje, na produção e no mercado? Pode ganhar mais espaço após o sucesso surpreendente da edição da poesia completa de Leminski no ano passado?
Acho que há uma produção poética importante saindo das comunidades periféricas e vindo de escritores afro-brasileiros. Na minha opinião, esta produção é sumamente importante porque nos apresenta uma outra realidade/ponto de vista e nos oferece assim uma visão mais multifacetada da realidade brasileira atual (embora este tipo de produção também tome às vezes, uma visão diacrônica). Claro que sempre haverá lugar para poetas consagrados, como o Leminski. Mas na minha opinião esta outra produção poética é mais interessante. Acho que também tem um potencial crítico e social e que pode despertar o interesse pela poesia em novas gerações de leitores (de diferentes estratos sociais) por ser mais acessível a este público leitor.


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