Folha de S. Paulo


Respostas de Manuel da Costa Pinto

MANUEL DA COSTA PINTO
crítico literário e colunista da Folha

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É possível apontar algumas tendências na produção literária contemporânea?

Sim. Acho que existem algumas linhas gerais:

a) Recuperação, na forma e no conteúdo, do conto urbano dos anos 60/70 (Dalton Trevisan, Rubem Fonseca, João Antônio, Loyola, Sérgio Sant'Anna), já não mais com um sentido político, de exposição das cicatrizes urbanas, mas com elementos mais centrados nos desvios individuais (aqui, Dalton e Sérgio são dominantes), numa vivência enclausurada e obsessiva, muitas vezes violenta e bizarra (com referências no pop, na indústria cultural). São autores como Luiz Ruffato, Nelson de Oliveira, Joca Reiners Terron, Lourenço Mutarelli, Marçal Aquino, Marcelo Mirisola, Veronica Stigger, Ricardo Lísias, André Sant'Anna, Ana Paula Maia, Santiago Nazarian, Ronaldo Bressane - que fazem isso tanto no conto quanto no romance (para o qual levam a estrutura entrecortada, elíptica, da narrativa curta).

b) Como desdobramento do item anterior, em larga medida derivado do cancelamento de espaços sociais antes bem demarcados (centro-periferia-campo), surgiu uma literatura feita por escritores vindos de espaços antes ausentes. Os exemplos óbvios são Paulo Lins e Ferréz, mas seu marco natural, por assim dizer, foi "Subúrbio", de Fernando Bonassi - romance fundamental para entender o que veio depois. (Estranhamente -e digo isso entre parênteses- essa tendência que se anunciava forte não foi tão vigorosa quanto eu imaginava, não surgiram muitos outros autores.)

c) Uma prosa de teor mais individualizado, do sujeito às voltas com seus fantasmas e obsessões, com sua vida privada - que é também é um traço da literatura urbana, em que a perda dos laços ancestrais e dos projetos coletivos (o que não oblitera, obviamente, os efeitos da história) lança o sujeito num destino singular. Ex.: Cristovão Tezza, Teixeira Coelho, Milton Hatoum, Bernardo Carvalho, Bernardo Ajzenberg, Beatriz Bracher, Ivana Arruda Leite, Michel Laub, Cíntia Moscovich, João Gilberto Noll, Tatiana Salem Levy, Adriana Lisboa, Carola Saavedra.

Como você poder ver, vários termos que utilizo em 'a' se repetem em 'b', e muitos autores citados num conjunto cabem também no outro. Trata-se de uma questão de ênfase: no primeiro caso, maior preocupação com o espaço público; no segundo, com o privado.

Na poesia, seria mais difícil identificar linhas gerais. Passado o momento em que havia uma oposição clara (e ainda assim sujeita a questionamentos) entre uma tendência mais lírica e outra mais construtivista, acho que cada poeta se inscreve num campo de referências muito particular. Talvez a "tendência" seja o esvaziamento da dimensão radical ou transformadora, metalinguística ou metapoética, em proveito da elaboração de uma abordagem mais singular da matéria poética, com referências múltiplas. No Brasil, o grande elemento distintivo de prosa e poesia é o diálogo com a tradição, com o passado, tênue na primeira, central na segunda - talvez porque a "matéria-prima" da ficção seja uma realidade cada vez menos marcada por traços locais, enquanto a matéria primeira da poesia seja a língua, sempre muito enraizada.

Quais seriam suas principais qualidades e deficiências?
Essa é uma questão muito particular a cada livro e autor; não consigo identificar uma qualidade geral ou uma deficiência geral.

A Feira de Frankfurt e os programas da política do livro mantidos pelo governo (bolsas de tradução, bolsas de criação, criação de festivais) trouxeram resultados significativos para a produção artística?
No caso de Frankfurt, não me sinto à vontade para comentar o impacto de um evento do qual participei como curador - mas lembro que a Ilustrada, à época, deu uma capa falando dos contratos ali firmados entre editoras estrangeiras e autores brasileiros. Quanto a bolsas, acho que têm efeito: recebo regularmente livros escritos e publicados a partir de subvenções conseguidas com editais.

A perspectiva de aceitação no mercado exterior norteia de alguma forma o tipo de literatura que se está produzindo? O jovem autor escreve pensando no exterior?
Sei lá, não tenho acesso às recônditas fantasias de cada um. Talvez todo autora devaneie com um prêmio nacional, um a consagração internacional, o prêmio Camões ou até o Nobel - mas duvido que alguém, salvo os mitômanos, escreva tendo esse norte. Existe, entretanto, um fato objetivo: a velha expectativa pela "cor local", que os editores tinham em relação ao Brasil, progressivamente cedeu espaço para uma literatura mais "cosmopolita" (palavra horrenda) - vide as traduções de Bernardo Carvalho, Michel Laub ou Daniel Galera.

Mas sinceramente não creio que eles escrevam com o objetivo de atender a essa nova demanda - pelo contrário: foram seus livros que criaram essa recepção da literatura brasileira no exterior e, se persistem no caminho, é por um projeto literário pessoal.

Existe uma "globalização" dos temas?
Acho que isso está respondido no item "c" da pergunta 2.

A literatura contemporânea inova em algum sentido? Ela renova formas, gêneros? Como?
Sim, mas não mais com o impacto que tiveram, por exemplo, a prosa de Guimarães Rosa e Clarice Lispector ou a poesia dos concretos. Hoje, talvez, as inovações estejam mais para o aprofundamento de algumas formas e gêneros que não estavam de todo ausentes na literatura do passado - caso do mini ou micro-conto. Acho que a questão formal se deslocou do trabalho com a sintaxe, com a palavra, para a estrutura e para o viés do narrador (aqui estou falando sobretudo da prosa). Dois bons exemplos disso: Teixeira Coelho e Nuno Ramos, com seus livros de gêneros híbridos, no limite entre ficção e ensaio.

Há também o influxo da literatura anglo-saxã, presente no "realismo crítico" de Tezza (a expressão é dele mesmo), e que também encontramos em Bernardo Ajzenberg - mas aqui não há (nem me parece ser a intenção dos autores) propriamente inovação formal, mas o alinhamento da prosa brasileira a uma literatura que perdeu sua dimensão utópica (tanto em relação à velha questão da identidade nacional quanto em relação à ambição de renovar a literatura em si mesma), recuperando a capacidade, que o romance sempre, teve de refletir sobre a realidade.

Existe ainda no Brasil literatura "regional"? A origem geográfica é determinante na literatura que se produz?
Determinante é (basta pensar nos romances de feição memorialística de Milton Hatoum, na ladainha nordestina de Marcelino Freire, no cenário desolador dos contos de Antonio Carlos Viana), mas não se pode mais falar em regionalismo. Caso singular é o de Ronaldo Correia de Brito, que dialoga com o regionalismo em seus contos e num romance como "Galileia" - mas é um diálogo em litígio, que colhe os frutos podres do colapso do projeto regionalista de encontrar uma narrativa de fundo que explicasse as contradições (sociais e subjetivas) do Brasil; a obra de Ronaldo é, em parte, uma resposta ao regionalismo.

A literatura produzida atualmente no país é política?
É política no sentido de que a linguagem sempre está em estado de tensão com o real, com o representado, ou no sentido de que toda personagem está de alguma forma em estado de oposição ou de sujeição ao discurso do outro - mas certamente não no sentido de um projeto político, como havia no regionalismo. É claro que alguns autores (como Ruffato, Bonassi, Marçal Aquino, Menalton Braff, Bernardo Kucinski, Maria José Silveira) ou livros ("História Natural da Ditadura", de Teixeira Coelho; "Estive lá fora", de Ronaldo Correia de Brito) colocam a política em cena - mas isso não deve sombrear o agudo sentido político, por exemplo, dos livros de Milton Hatoum.

A chamada autoficção, voltada para o próprio eu, para a própria experiência, parece ser um dos mais fortes motes da produção literária dos últimos anos. Alguns estudos apontam uma exacerbação da subjetividade, que seria vista como um valor de autenticidade. Como avalia essa questão? Quais implicações disso na literatura brasileira?
Não creio que seja um mote forte. Acho que há um equívoco de teoria literária nessa ideia, hoje tão difundida. Os romances de Laub são normalmente incluídos nesse rol, o que é absurdo - não há nada, dentro do texto, que estabeleça esse pacto ficcional com o leitor; idem para "História Natural da Ditadura". Acho que o único caso pra valer é "Divórcio", do Lísias.

Como as formas de interação via redes sociais se manifestam na literatura que se produz hoje?
Até agora, de maneira nenhuma. Por enquanto, é só mais um meio de comunicação - que pode às vezes servir de tema, como ocorre em "Reprodução", de Bernardo Carvalho. Mas as redes ainda não conseguiram criar um ambiente entre o real e ficcional como ocorria, por exemplo, nas cartas, que geraram o gênero epistolar ("Relações Perigosas", "Werther").

Interessante essa questão: por mais que as pessoas escrevam nas redes, ou escrevam e-mails o dia todo, na prática as redes estão mais próximas do telefone, do celular e do próprio e-mail, mesmo contendo mensagens sem destinatário específico. Talvez seja cedo para falar. Potencialmente, gente vociferando nas redes e trocando a vida real por uma existência vicária daria boa matéria para a ficção (afinal, nossa fala sempre é um encobrimento e uma exageração, a criação de uma máscara - mas as redes levam isso ao paroxismo). O fato, porém, é que, exceção feita ao Bernardo, não conheço quem tenha explorado bem isso.

Existe uma desagregação do romance como forma convencional –pela fragmentação, pela intervenção gráfica?
Não, ao contrário, existe um retorno ao romance de feição realista (pelas razões expostas acima). Mesmo autores de minicontos, ao escreverem romances, adotam uma narrativa mais linear. E o caráter eventualmente fragmentário do romance foi e é mais uma variante possível desse gênero tão proteiforme.

Antologias, coletâneas temáticas, seletas de escritores e outras iniciativas que partem do mercado editorial são frutíferas? Beneficiam a produção?
Auxiliam na divulgação e servem de instantâneos da produção - que depois é contrastada com a recepção de longo prazo.

As oficinas de criação literária, que abundam nos últimos anos, "moldam" a literatura que se produz hoje?
Acho que no Brasil o fenômeno não colou, ou ainda não se fez sentir.

Que espaço tem a poesia hoje, na produção e no mercado? Pode ganhar mais espaço após o sucesso surpreendente da edição da poesia completa de Leminski no ano passado?
Acho que o caso Leminski é pontual. Ao menos no Brasil, a poesia, como dito acima, está sempre em corpo a corpo com a tradição poética, o que exige leitores obstinados, habituados com essa tradição - e isso não constitui um mercado comparável ao dos outros gêneros. A poesia, nesse sentido, ocupa lugar semelhante ao da música de invenção, da música erudita ou clássica (embora, no Brasil, o diálogo da poesia com a música penda mais para o popular; uma vez desvinculada da canção e de seus temas recorrentes, porém, resta a matéria pura da linguagem, tão inacessível ao leitor médio quanto a música absoluta).


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