Folha de S. Paulo


Respostas de Luiz Bras

LUIZ BRAS
crítico literário e escritor, autor do romance "Sozinho no Deserto Extremo" (Prumo)

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É possível apontar algumas tendências na produção literária contemporânea?
Certamente. Mas antes preciso dizer que minha opinião foi influenciada em parte pela leitura de "Contingência, Ironia e Solidariedade", de Richard Rorty, quando este fala de hermetismo e engajamento. Partindo da premissa de que existem dois tipos de linguagem literária (linguagem transparente e linguagem complexa) e dois tipos de conteúdo literário (conteúdo subjetivo e conteúdo político), a simples combinação dessas possibilidades opostas oferece quatro tipos de obra literária: livros de linguagem transparente e conteúdo subjetivo, livros de linguagem transparente e conteúdo político, livros de linguagem complexa e conteúdo subjetivo e livros de linguagem complexa e conteúdo político. É claro que o número de combinações é infinito, mas por ora vamos considerar apenas quatro.

Também é evidente que essa classificação não implica qualquer diferença de valor. Explicitando: livros de conteúdo subjetivo são os que mergulham fundo na mente do sujeito, enquanto livros de conteúdo político são os que tratam das questões sociais. Respondendo a pergunta: hoje na literatura a tendência mais forte, quase dominante, é a dos livros (em prosa ou verso) de linguagem transparente e conteúdo subjetivo. Logo atrás vêm os livros (em prosa ou verso) de linguagem transparente e conteúdo político. A lista de vencedores dos principais prêmios literários dos últimos cinco anos é um retrato dessa tendência.

Quais seriam suas principais qualidades e deficiências?
Principal vantagem: fortalecimento e ampliação do público leitor. Principal desvantagem: não há, se você considerar que se trata de uma tendência que vai passar, igual a todas as outras. Hoje a realidade subjetiva, reconstruída com linguagem denotativa, é a matéria-prima predileta dos escritores. A realidade social também interessa, é claro - em menor grau, mas interessa. Então, o gênero literário do momento é a crônica (afinal, sua matéria-prima sempre foi a experiência cotidiana do autor), que pode se desdobrar em conto-crônica, em poema-crônica e até em romance-crônica. Há também os contos e romances autoficcionais, centrados na verdade biográfica do ficcionista. Esse apreço às vezes ingênuo pela "realidade" e pela "verdade" está salvando da falência a literatura brasileira.

É ingênua a velha ilusão de que qualquer mensagem feita de períodos e parágrafos possa oferecer ao leitor uma representação verdadeira da realidade. A única realidade verdadeira que um poema, um conto ou um romance podem oferecer é a sua própria, literária. Esgotada a hegemonia modernista, nossa produção literária, tão povoada de Joyces e Maiakovskis, corria o risco de também definhar. Mas foi salva pela literatura de linguagem transparente e conteúdo subjetivo de qualidade, que, sem seu predador natural (o modernismo hermético), está proliferando bem. Na ficção, os jogos metalinguísticos, anti-ilusionistas, recuaram em favor da representação realista, ilusionista. E, na poesia, o estruturalismo antipático da poesia concreta perdeu todo o prestígio para a irreverência simpática da poesia marginal. Implícitas nos dois gêneros eu noto hoje as regras da crônica literária.

A Feira do Livro de Frankfurt e os programas da política do livro mantidos pelo governo (bolsas de tradução, bolsas de criação, organização de festivais) trouxeram resultados significativos para a produção artística?
O Brasil não se tornou da noite para o dia um grande exportador de bons livros, filmes, peças etc. Não conseguiu espantar os velhos clichês (favela, futebol, carnaval, sertão, cultura indígena). Mas não resta dúvida de que, graças à participação da Feira do Livro de Frankfurt e dos novos programas do governo, o cenário hoje está um pouco melhor do que estava dois anos atrás.

A perspectiva de aceitação no mercado exterior norteia de alguma forma o tipo de literatura que se está produzindo? O jovem autor escreve pensando no exterior?
Difícil dizer no que o jovem autor está pensando. Eu acredito que, novato ou veterano, todo escritor ambiciona alcançar um vasto público, principalmente quando seu autor predileto é uma celebridade, no mínimo, ocidental. Um José Saramago, talvez. Uma Alice Munro ou uma Wislawa Szymborska. É verdade que editores e agentes literários, de olho no mercado internacional, estão pedindo ao autor brasileiro livros menos herméticos, menos transgressores. Na briga por novos mercados, essa é uma estratégia comercial válida. José Paulo Paes brincava que no Brasil todo escritor quer ser James Joyce ou Stéphane Mallarmé, ninguém se contenta em ser Alexandre Dumas ou Pablo Neruda. Parece que a posição da gangorra finalmente está mudando, ao menos na ficção. Joyce e Proust estão descendo, Dickens e Hemingway estão subindo.

Existe uma "globalização" dos temas?
Certos temas são universais e podem ser indicados com um único substantivo: guerra, morte, amor, redenção, pobreza, vingança etc. Formam um núcleo duro no qual o autor vai colando adjetivos: um idioma, uma nacionalidade, uma época, uma biografia. Mesmo particularizado o tema, seu núcleo universal continua lá. Essa é a única globalização legítima da literatura. Mas se os escritores brasileiros estão fazendo uso de uma estratégica "cartilha globalizada", para finalmente entrar no mercado internacional, tudo bem. Não vejo nisso qualquer impedimento moral.

A literatura contemporânea inova em algum sentido? Ela renova formas, gêneros? Como?
O fim das vanguardas artísticas foi o fim das utopias políticas, e vice-versa. Hoje não dá mais para inovar em nada. Os grandes monumentos construídos pelas gerações passadas esgotaram as possibilidades. Tudo o que fazemos é restaurar uma coluna ou um afresco danificados pelo tempo. Mas é bom lembrar que o restaurador também é um profissional importante. Muitas vezes é graças à restauração que tomamos consciência de um belo detalhe que já estava desaparecendo.

Existe ainda no Brasil literatura "regional"? A origem geográfica é determinante na literatura que se produz?
O que vou dizer não tem nada a ver com a "literatura regionalista", o romance de 30, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz. Tem a ver com o "regional", apenas. Na hora da escritura, a origem ou a posição geográfica não são determinantes. São uma escolha afetiva. Posso morar numa cidadezinha do Ceará e escrever muitos romances ambientados em Marte. Mas há autores de província que gostam de escrever sobre a província, e isso é maravilhoso. Isso enriquece o cardápio.

O momento, porém, é mesmo da literatura urbana e cosmopolita. O detalhe irônico é que num país tão vasto, feito o Brasil, toda metrópole é um pouco "regional". Mas somente na escritura, não nas etapas seguintes da cadeia produtiva do livro. A origem ou a posição geográfica não são determinantes na hora da escritura, mas são determinantes na produção, divulgação e circulação de literatura. Se você, escritor, estiver muito distante de um grande centro de cultura literária, a probabilidade de publicar por uma grande editora será muito pequena. Consequentemente, a possibilidade de ser lido e resenhado também será muito pequena.

A literatura produzida atualmente no país é política?
Luigi Pareyson, em "Os Problemas da Estética", avisa que a expressão "literatura política" pode apresentar mais de um significado. Mas ela em geral designa a literatura explicitamente engajada contra ou a favor de um governo, de uma classe social, enfim, de uma doutrina política específica: a Ditadura Militar, o governo Lula-Dilma etc. Logo, apenas uma pequena parte da ficção e da poesia produzidas hoje no país é de conteúdo político. A tendência mais forte, quase dominante, é mesmo a dos livros de conteúdo subjetivo.

São obras em prosa ou verso preocupadas mais com as revoluções no microcosmo psíquico do que com as reviravoltas no macrocosmo social. Mas existe também a "literatura política" engajada contra ou a favor de uma ideia geral: a opressão humana e o desejo de liberdade, as distopias e utopias de modo mais amplo e atemporal. Este tipo de literatura de conteúdo político é o meu predileto, mas também anda em falta.

A chamada autoficção, voltada para o próprio eu, para a própria experiência, parece ser um dos mais fortes motes da produção literária dos últimos anos. Alguns estudos apontam uma exacerbação da subjetividade, que seria vista como um valor de autenticidade. Como avalia essa questão? Quais implicações disso na literatura brasileira?
Brito Broca, escrevendo sobre a vida literária no Brasil no início do século 20, observa que, para boa parte dos leitores da época, a vida dos autores era muito mais interessante do que as obras. Os leitores não queriam mais saber de folhetins. Queriam agora entrevistas com os autores e reportagens sobre eles. Um século depois, a cultura da celebridade dominou cada interstício da vida literária. As bienais, festas e feiras foram criadas para acarear escritores e público.

Então, se os leitores estão mais interessados na vida dos autores do que nas obras, nada mais natural que a vida dos autores participe das obras. Jamais escrevi uma única linha autobiográfica. A autoficção não é a minha praia e nunca será. Mas gosto dessa mistura de invenção e história pessoal. É o escritor ludibriando seu leitor ávido por fofoca.

A literatura, se voltada para o eu, para a própria experiência, pode ser política?
Apenas se você partir da premissa da Escola de Frankfurt, bastante radical, mas fascinante, de que "o ser humano é um animal político e tudo o que ele faz é de natureza política". Nesse caso, até mesmo um romance hiperintrospectivo (penso nos livros de linguagem complexa e conteúdo subjetivo), que explore os abismos da mente, será um ato político contra, digamos, a banalidade da cultura do entretenimento. Essa ideia, quando levada para o campo da crítica literária, fica mais fascinante ainda.

Tempos atrás eu a defendi no artigo "Crítica é Cara ou Coroa": "Livros são propostas de civilização. Cada livro publicado é, antes de tudo, uma atitude política. Por isso boa parte da crítica literária parece tão desnorteada, tão inconsistente. Estou falando da crítica que acredita que um livro possa ser intrinsecamente bom ou ruim. Essa visão restritiva não condiz com os fatos." ("Muitas Peles", Terracota Editora, 2011)

Como as formas de interação via redes sociais se manifestam na literatura que se produz hoje?
As redes sociais são ótimas ferramentas de divulgação de livros e ideias. Também servem para aproximar o escritor e o leitor. Mas ainda não invadiram as páginas dos principais gêneros da criação literária. No plano da criação, a presença das redes sociais continua muito tímida, restrita à crônica. A ciência e a tecnologia contemporâneas ainda não invadiram a ficção e a poesia produzidas hoje. Itens usados cotidianamente pelos escritores (celular, tablet, web, videogame, cartão eletrônico, câmera etc.) às vezes aparecem em crônicas, mas não em contos, romances e poemas.

Existe uma desagregação do romance como forma convencional - pela fragmentação, pela intervenção gráfica?
Não. A linguagem transparente é muito mais exercitada hoje do que a linguagem complexa. Os procedimentos modernistas mais radicais (fluxo de consciência, criação de palavras-montagens, uso de diferentes tipologias, inserção de desenhos e recortes de jornal) praticamente desapareceram do romance contemporâneo. Os procedimentos menos radicais (discurso indireto-livre, repetição minimalista, mistura de gêneros literários, fragmentação discursiva), esses procedimento ainda são usados, mas de maneira mais branda. São coadjuvantes, não protagonistas.

É perceptível hoje, entre os romancistas mais bem-sucedidos, a quase unânime preferência pela trama linear e pelo narrador onisciente (em terceira pessoa) ou confiável (em primeira pessoal), expedientes fundamentais num romance realista clássico. Mas isso não é necessariamente mau. A passagem do século 19 para o século 20 assistiu ao que, na termodinâmica, os físicos chamam de transição de fase. Romantismo, naturalismo, simbolismo e parnasianismo foram deixados para trás. Talvez estejamos assistindo agora à outra transição de fase, em que o modernismo será deixado para trás, substituído por sabe-se lá o quê.

Antologias, coletâneas temáticas, seletas de escritores e outras iniciativas que partem do mercado editorial são frutíferas? Beneficiam a produção?
São bastante frutíferas. Aliás, quanto mais, melhor. Não vejo qualquer problema nas iniciativas às vezes oportunistas do mercado editorial. O grande adversário da boa literatura não é o mercado editorial, é a televisão, a música pop, o cinema, a web. O tempo que eu destinava à leitura está cada vez mais curto. É que as séries britânicas e norte-americanas, os animês japoneses e os massive multiplayer games proporcionam atualmente experiências tão inquietantes quanto um bom livro.

As oficinas de criação literária, que se multiplicaram nos últimos anos, "moldam" a literatura que se produz hoje?
As oficinas de criação literária não têm tanto poder assim, de moldar a literatura que se produz hoje. Elas são uma espécie de confraria, onde a ficção e a poesia são apreciadas e celebradas. Engana-se quem acredita que uma oficina de criação literária tem a obrigação de treinar e lançar os novos gênios da ficção e da poesia. Talento não se ensina. Não é possível ensinar alguém a escrever bem. Em minha opinião o talento é inato. Ou o diletante já nasce com ele ou jamais conseguirá ultrapassar a condição de aprendiz. Mas é possível ensinar alguém a não escrever mal. Por meio de toques, apontamentos, discussões. Por meio da troca de impressões e das mais variadas dicas literárias, musicais, teatrais, cinematográficas.

As oficinas de criação literária são antes de tudo uma escola de leitura. Sua obrigação é formar leitores melhores. Quem não quiser escrever mal, quem quiser ajudar outros escritores a não escrever mal, deve primeiro evitar a leitura descompromissada. Deve obrigar a intuição a casar com a razão. Deve saber ler e se expressar com critério: como crítico, não como parente, namorado ou amigo de infância. Deve escrever apaixonadamente, ler apaixonadamente, discutir apaixonadamente. Mas sempre de maneira compromissada. Ao ler o trabalho dos colegas, deve apontar os vícios, os exageros, os lugares comuns. Deve tentar espantar o mau gosto, o kitsch. Deve sugerir alternativas, indicar caminhos, recomendar leituras.

Que espaço tem a poesia hoje, na produção e no mercado? Pode ganhar mais espaço após o sucesso surpreendente da edição da poesia completa de Leminski no ano passado?
A poesia é a menos vendável das artes e, talvez por isso mesmo, a que desfruta de maior prestigio. É mais fácil vender três mil exemplares de um romance ou de uma coletânea de crônicas ou contos do que de uma coletânea de poemas. Essa é a razão de nossa grande felicidade, sempre que um livro de poemas aparece nas listas de mais vendidos. Mas o sucesso da edição da poesia completa de Leminski é o típico ponto fora da curva, raríssimo. Os bons poetas que além disso vendem bem serão sempre exceção, jamais regra.


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