Folha de S. Paulo


Respostas de Luciana Hidalgo

LUCIANA HIDALGO
pesquisadora de literatura, autora do romance "O Passeador" (ed. Rocco)

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É possível apontar tendências na produção literária contemporânea?
A multiplicidade de narrativas é o que mais me chama atenção na literatura brasileira contemporânea. Não vejo uma unidade. Estamos longe dos movimentos, das escolas que marcaram o século XIX até o início do século XX. Talvez porque atualmente o eu esteja tão presente e hegemônico (em sua heterogeneidade). Noto até uma recusa de certos autores a classificações, a serem encaixados em tendências. Ainda assim, é possível notar, digamos, coincidências. E a autoficção é um desses acasos (falarei disso mais adiante).

Quais seriam suas principais qualidades e deficiências?
A qualidade está justamente nessa multiplicidade. O mercado editorial está mais amplo e democrático, há uma renovação permanente, com novos autores surgindo e publicando. Há apostas em jovens que um dia podem se tornar grandes nomes. Há autores que se autopublicam. Só que tanto o leitor quanto o crítico, ao lerem um livro, o avaliam, cada qual do seu ponto de vista, sem levar em conta o escritor em formação. E algumas vezes o resultado (o livro em si) é ainda imaturo, in progress, fica na promessa. Esse é o paradoxo do mercado mais aberto e múltiplo, com grande quantidade de publicações. Particularmente gosto disso, dessa democratização, porque dá espaço a vozes díspares. Mas é claro que, como tudo, tem seus aspectos positivos e negativos. O tempo será, como sempre foi, o grande filtro.

A Feira de Frankfurt e os programas da política do livro mantidos pelo governo (bolsas de tradução, bolsas de criação, criação de festivais) trouxeram resultados significativos para a produção artística?
Acho que é cedo para avaliar os resultados da Feira de Frankfurt e dos programas da política do livro mantidos pelo governo. São todos muito positivos, mas é preciso dar um tempo para que se desenvolvam e, de preferência, tenham continuidade. Essa continuidade na literatura é importantíssima. O tempo na literatura é lento, totalmente em desacordo com a aceleração do mundo de hoje. As bolsas de tradução da Biblioteca Nacional são fundamentais, bem como as bolsas de criação e as feiras literárias. Não há dúvida.

A ideia é excelente: ajudar o escritor a encontrar o tal do tempo para escrever (bolsas de criação), divulgá-lo em feiras e festivais (Feira de Frankfurt, por exemplo), e em seguida tentar exportá-lo para outros países (bolsas de tradução). É uma cadeia que, uma vez bem alimentada durante anos, décadas, vai contribuir para consolidar a literatura brasileira contemporânea no Brasil e depois no exterior. Mas tudo isso leva tempo, muito tempo - além de vontade política, disciplina e perseverança.

A perspectiva de aceitação no mercado exterior norteia de alguma forma o tipo de literatura que se está produzindo? O jovem autor escreve pensando no exterior?
Um autor que escreve pensando no exterior está perdido. Primeiro porque o motor da literatura não deveria ser pautado pelo que está fora, então já há aí um risco. Mas, principalmente, porque é muito difícil saber o que editoras estrangeiras querem - embora os exotismos da cultura brasileira ainda exerçam alguma atração. Não basta escrever um livro sobre praia ou favela para ser publicado, não é simples assim. Pior: talvez o grande risco da globalização seja justamente a falsa globalização.

Quero dizer com isso que a princípio parece fácil hoje em dia viajar, importar-exportar, passar de uma cultura a outra, mas o que países estrangeiros buscam é justamente a especificidade de cada cultura - e isso compreende um olhar ainda cheio de ideias feitas, clichês, sobre o que é cada cultura (sobretudo quando se trata de um país periférico como o Brasil).

Na França, por exemplo, onde morei recentemente devido a um pós-doutorado, ainda se percebe um olhar voltado para uma imagem paradisíaco-tropical do nosso país, agora agregado à violência urbana e à desigualdade social que aqui imperam. Mas ainda há uma imagem romântica da favela, por exemplo, como aquela do filme de Marcel Camus, Orfeu negro, como se a barbárie não fosse possível numa cidade tão bonita. O francês tem uma atração significativa pelo que é diferente, por vezes mesmo exótico, e isso pauta filmes e livros estrangeiros que surgem por lá. Mas não basta. Autores brasileiros contemporâneos, mesmo traduzidos no mercado francês, têm pouca repercussão. Um exemplo: em 2011-2012 eu assistia semanalmente ao programa de literatura mais importante da TV aberta francesa, La grande librairie. O apresentador convidava quatro a cinco autores por semana para ótimos debates sobre literatura. Nunca vi um escritor brasileiro ser sequer citado nesse programa e apenas uma vez vi o nome de Moacyr Scliar ser indicado, timidamente, por um livreiro da Provence. Enfim, volto à questão do tempo na literatura e da necessidade de continuidade das políticas do livro para além dos governos que entram e saem, para além da polarização esquerda-direita, PT-PSDB.

Existe uma "globalização" dos temas?
Existe uma globalização do eu? Então sim... Todo eu fala a partir de si mesmo, mas ele é também fruto de uma cultura, de um país, ou de uma diáspora. Tudo está interligado. O cidadão é antes de tudo humano em qualquer parte do mundo, e no seu microuniverso as histórias se repetem: as neuroses, as obsessões, os amores, os medos. Num mundo aparentemente globalizado, mas no fundo ainda tão fragmentado por nacionalidades, línguas, religiões, fronteiras geográficas cada vez mais fechadas, creio num tipo de globalização mais sutil, a que aproxima subjetividades e trata, em última análise, do humano.

A autoficção, por acaso, é isso, tanto que os personagens dos romances autoficcionais são em sua maioria os pais, companheiros ou filhos dos autores-protagonistas. O que está em pauta é o microuniverso, que acabará embutindo (e contribuindo para) o macrouniverso (a História).

A literatura contemporânea inova em algum sentido? Ela renova formas, gêneros? Como?
Quando o livro é realmente bom, é porque inovou em algum sentido. Não sei se há necessidade de uma inovação estilística radical, de uma experimentação extrema. Vejo por vezes certa exigência em relação a autores contemporâneos brasileiros, como se todo escritor fosse obrigado a romper com absolutamente tudo o que já se fez antes. Quantas rupturas existiram realmente em toda a história da literatura? Quantos "Ulisses" (de James Joyce)? Poucos.

No entanto, outros escritores, que inovaram, mas não necessariamente romperam radicalmente com modelos anteriores, são igualmente importantes. Percebo às vezes certa insistência na valorização de uma vanguarda, mas basta olhar para trás, tanto na literatura quanto nas artes visuais, e se percebe que esses momentos de ruptura radical foram raros. E o pior: num grande esforço, às vezes fake de querer ser vanguarda, repete-se o que vanguardas genuínas, anteriores, já fizeram. E aí pode ficar uma literatura fake. Creio na literatura que traz uma verdade do escritor, embora nem sempre essa verdade renove formas e gêneros; ainda assim pode ser excelente literatura. O que não pode é soar artificial.

Existe ainda no Brasil literatura "regional"? A origem geográfica é determinante na literatura que se produz? 
Não vejo um regionalismo na literatura brasileira atual. E não acho que a origem geográfica seja determinante. O autor trará sempre algo de sua cultura, sem necessariamente centrar a sua história em sua cidade ou região. Num momento recente houve autores nascidos em comunidades, como Paulo Lins (Cidade de Deus) e Ferrez (Capão Pecado), que escreveram romances diretamente ligados às suas experiências com a violência urbana, fazendo dessas comunidades suas personagens. No entanto, não vejo como uma tendência.

A literatura produzida atualmente no país é política? Ser política é uma característica relevante?
Não acho a literatura atual politicamente engajada, embora questões político-sociais surjam sutilmente aqui e ali. As redes sociais têm cumprido esse papel de forma mais direta.

A chamada autoficção, voltada para o próprio eu, para a própria experiência, parece ser um dos mais fortes motes da produção literária dos últimos anos. Alguns estudos apontam uma exacerbação da subjetividade, que seria vista como um valor de autenticidade. Como avalia essa questão? Quais implicações disso na literatura brasileira?
Autoficção é um neologismo criado pelo escritor Serge Doubrovsky em 1977, num esforço de classificar seu próprio romance Fils, em que ele, o autor, era ao mesmo tempo personagem e narrador da história. O termo caiu na moda e é usado-abusado das mais variadas formas. Acho que há realmente uma tendência à exacerbação da subjetividade na literatura contemporânea, mas não saberia dizer se isso implica necessariamente uma autenticidade. Narrativas não-autoficcionais podem ser tão ou mais autênticas, a depender do talento do autor. O que interessa na autoficção é esse eu que foi muito reprimido na história da literatura, um tabu, e que enfim pode se revelar e se assumir, sem repressão. Não por acaso a palavra autoficção surgiu no final dos anos 1970, pós-1968, pós-Freud, num momento importante da psicanálise.

Há um caráter libertário num autor que assume a sua história pessoal num romance e deixa seu próprio nome no personagem principal (nesse caso, trata-se do homonimato entre narrador-autor-personagem exigido por Doubrovsky para que a autoficção seja legítima). A crítica sempre foi contra essa, digamos, mistura de vida e arte (uso aqui termos empregados por alguns críticos no início do século XX para reduzir a importância dos romances autobiográficos de Lima Barreto, por exemplo). Hoje o eu se libera e se assume. Isso não necessariamente significa qualidade, mas acho que há ótimas narrativas autoficcionais totalmente centradas nas vivências íntimas de seus autores.

A literatura, se voltada para o eu, para a própria experiência, pode ser política?
Acho que até a ficção mais íntima pode ser política. É o que chamo de narcisismo útil. Um exemplo: quando Lima Barreto escreveu o romance Recordações do escrivão Isaías Caminha no início do século XX, optou por lançar um roman à clef (precursor da autoficção?). Nesse livro Lima devassa os bastidores de um jornal e faz duras críticas aos seus jornalistas. Na época não foi difícil reconhecer nos personagens fictícios algumas figuras do jornal mais importante do Rio de Janeiro da época, o "Correio da Manhã", o que levou a crítica, a partir desse primeiro romance, a entrever em Lima Barreto uma trôpega associação entre vida e arte (olha os termos aí de novo).

Semelhanças biográficas entre o autor e seu personagem Isaías Caminha irritaram os críticos. Mas Lima seguiu fazendo esse tipo de romance, partindo de sua experiência, escrevendo do ponto de vista de um homem nascido numa família humilde, mulato, tentando se estabelecer num meio social-intelectual branco e aburguesado. E assim, ao falar do eu, denunciava questões sociais, raciais e políticas coletivas. Essa literatura às vezes parecia partir de um narcisismo, mas tinha como objetivo o coletivo, isto é, a denúncia como ferramenta de transformação social e política do país. Esse é o narcisismo útil de que falo. Eis o paradoxo: hoje é justamente a partir desses romances a princípio autocentrados de Lima Barreto que mais conhecemos as profundezas do Brasil da época.

Quando Fernando Gabeira lançou "O que é isso, companheiro?" em 1979, três meses depois da lei da anistia no Brasil, poderia ter escolhido um outro gênero e não o "romance-depoimento" (como o livro é apresentado no site da Companhia das Letras). Ele parte de sua própria história para contar toda uma situação política muito mais ampla e ainda num período muito frágil de transição da ditadura para a democracia (que ainda levaria anos). Poderia ter escrito um livro jornalístico simplesmente ou um testemunho puro e simples (como o recém-lançado "Gracias a la vida", de Cid Benjamin), mas escreveu um romance-depoimento, uma narrativa autoficcional de alto teor político...

Quando Cristóvão Tezza escreve sobre o filho com síndrome de Down em "O filho eterno" é de si mesmo que ele fala, seus fracassos, as questões de toda a sua geração, mas, sobretudo, enfoca a questão macro, coletiva, que é: a grande dificuldade de ser pai de um filho eterno. Acho isso um ato político, a coragem de expor a deficiência num mundo onde se evita ao máximo falar do que não está na "normalidade" (talvez, para responder essas perguntas, fosse interessante definir o que cada um chama de "política").

Em "Todos os cachorros são azuis", Rodrigo de Souza Leão narra com muito humor o dia a dia de um personagem (chamado Rodrigo) numa clínica psiquiátrica. Ele parte de sua própria experiência como esquizofrênico e, ao tecer essa bela ficção, deixa entrever todas as questões mais delicadas do que significa conviver com os próprios delírios e não ter o menor controle sobre isso (talvez apenas pela própria ficção). É, na minha opinião, um ato político essa exposição de si mesmo, fora da chamada "normalidade".

Então não vejo de forma negativa a tendência autoficcional contemporânea, pois acho que o "eu" não é uma entidade mítica/mística isolada, distanciada do mundo e invariavelmente afundada num narcisismo, num egocentrismo. O "eu" é sempre fruto de uma cultura, de um país, ou de uma diáspora, como eu já disse, e, ao se expressar, inúmeras vezes levanta questões político-sociais relevantes. Um autor não tem necessariamente de levantar uma "bandeira" para se posicionar politicamente. É mais sutil do que isso (que bom!). Nem precisa mais escrever em terceira pessoa e fingir que aquilo não se passou com ele...

A "autoficção" veio "autorizar" escritores. Não é mais um tabu na literatura. O que mudou, a meu ver, foi essa liberação da subjetividade (com auxílio, na literatura, do neologismo de Doubrovsky). Não à toa, segundo o teórico Philippe Gasparini, a autoficção surgiu num contexto pós-1968, pós-freudiano, de liberação da palavra e do comportamento. A psicanálise também ajudou a libertar o "eu" dos excessos do catolicismo, por exemplo, que sempre reprimiu a subjetividade em favor da coletividade...

Como as formas de interação via redes sociais se manifestam na literatura que se produz hoje?
As redes sociais são ótimos meios de difusão de ideias rápidas e de notícias gerais, inclusive sobre literatura. Mas acho que a literatura em si é outra coisa; é feita no silêncio, na retidão, na lentidão, na reflexão. Não percebo ainda uma interação importante, embora eu mesma já tenha lido livros originados em blogs. Isso faz parte da tal multiplicidade democrática de que falei no início, mas não sei dizer se isso é literatura.

Numa perspectiva otimista, diria que a literatura não será conspurcada pelo que se escreve nas redes sociais, pois são universos paralelos. Numa perspectiva pessimista, pode-se pensar que a aceleração e a superficialidade das redes sociais acabarão por substituir a literatura tradicional, já que está se formando todo um público nessas bases. O tempo, mais uma vez, será o grande filtro.

Existe uma desagregação do romance como forma convencional –pela fragmentação, pela intervenção gráfica?
Em busca de uma ruptura radical, há autores que às vezes se aventuram a mexer na forma do romance tradicional: há narrativas mais fragmentadas, pontuações incomuns, excessos de coloquialismo etc. Às vezes dá certo (e aplaudo), às vezes não dá (soa artificial). Particularmente não gosto da ideia da ruptura pela ruptura (lembra-me o infeliz slogan arte pela arte dos parnasianos).

Antologias, coletâneas temáticas, seletas de escritores e outras iniciativas que partem do mercado editorial são frutíferas? Beneficiam a produção? 
Acho saudáveis essas iniciativas, embora nem todas funcionem. Mas acho sempre bem-vindas num país onde muito se escreve e pouco se lê. Considero importantíssima qualquer iniciativa que ajude a formar um público leitor, a fisgá-lo, derrubá-lo, jogá-lo numa cadeira com um livro na mão, ainda que à base de alguma trapaça.

Ler um livro hoje, em tempos de internet, televisão, cinema, nesse mundo veloz, capitalista e estressante, já é por si só um ato político, um ato de resistência à velocidade, ao tempo, à mediocridade. É quase um ato terrorista (para usar uma palavra perigosa que anda rondando a mídia).

As oficinas de criação literária, que abundam nos últimos anos, "moldam" a literatura que se produz hoje?
Não acredito muito nisso. Autores jovens buscam nas oficinas um contato com escritores experientes, troca de informações, meios de serem lidos por autores veteranos e, quem sabe, editados. Querem ouvir o que os mais experientes têm a dizer a partir de suas próprias experiências (como começaram, como conseguiram editora etc.). Mas não acredito que esses cursos tenham qualquer capacidade de moldar a literatura contemporânea. Justamente devido à multiplicidade atual, percebe-se que não há mais moldes.

Que espaço tem a poesia hoje, na produção e no mercado? Pode ganhar mais espaço após o sucesso surpreendente da edição da poesia completa de Leminski no ano passado?
A poesia é uma preciosidade que atrai, em geral, iniciados. Demanda concentração, olhar apurado, tempo para ser degustada. Esse sucesso da edição do Leminski só não me surpreende porque vejo constantemente no Facebook versos de poetas célebres circulando, em geral para servir a alguma ideia de quem o posta. Infelizmente algumas das frases que circulam por lá nem são de autoria dos poetas citados.

No caso do Leminski, ajuda muito o fato de que há ótimos versos em seus poemas que, retirados de seus contextos, têm mil e uma utilidades - às vezes de forma distorcida. Além disso, dois projetos exemplares, no Rio e em São Paulo (respectivamente), dão indícios de que a poesia vem saindo do gueto para a massa: o CEP 20000 de Chacal e os saraus de poesia de Sérgio Vaz na Cooperifa. No ano passado, participei da Flupp Pensa (projeto de formação de novos escritores nas periferias do Rio de Janeiro, parte integrante da Festa Literária das Periferias) e fiquei impressionada com a força do pessoal da poesia. Havia ótimos poemas e excelentes performances. Afinal, essa é uma característica importante da poesia hoje, o lado performático dos poetas que ajuda muito na popularização do verso. Tudo isso e outros saraus poéticos que tenho visto no Rio, atraindo cada vez mais jovens, me enchem de otimismo.


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