Folha de S. Paulo


Respostas de Pedro Meira Monteiro

PEDRO MEIRA MONTEIRO
professor de literatura brasileira na Universidade de Princeton (EUA)

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É possível apontar tendências na produção literária contemporânea?
Gosto de pensar que, diante do predomínio por tantos anos de uma literatura mais dura e realista, há hoje certa tendência a buscar espaços íntimos, onde a delicadeza dá o tom. É o caso dos contos de João Anzanello Carrascoza, a ficção de Adriana Lisboa, ou os experimentos memorialísticos de José Luiz Passos. Mesmo num Ruffato, por exemplo, há momentos que são quase líricos, o que é surpreendente para quem se acostumou a pensar na literatura brasileira como uma espécie de testemunho da violência e do esgarçamento do tecido social.

Quais seriam suas principais qualidades e deficiências?
Eu não chamaria de deficiência, mas é claro que a questão das classes sociais pode ficar de fora dessa literatura (com exceção de Ruffato e Passos, nos exemplos acima). Já como qualidades, eu apontaria a atenção à delicadeza e a busca dos espaços íntimos como salvaguarda do sujeito.

A Feira de Frankfurt e os programas da política do livro mantidos pelo governo (bolsas de tradução, bolsas de criação, criação de festivais) trouxeram resultados significativos para a produção artística?
Creio que sim. Frankfurt (nunca fui) é um pouco pirotécnica, é claro, mas acho que tem crescido o volume de obras de literatura contemporânea brasileira traduzidas a línguas estrangeiras. Como professor nos Estados Unidos, tenho sentido e aproveitado isso. Aos poucos, vai se fortalecendo o campo da tradução, o que é muito bom.

A perspectiva de aceitação no mercado exterior norteia de alguma forma o tipo de literatura que se está produzindo? O jovem autor escreve pensando no exterior?
Não creio. E nem acho que o "jovem autor" deveria se preocupar com isso. Mas é claro que o mercado rege as relações entre leitor e autor. Ainda assim, não creio que se escreva "pensando no exterior". Espero que não.

Existe uma "globalização" dos temas?
Existe a tendência de recusar a paisagem ou os temas locais como fonte de identidade. Os experimentos formais são cada vez mais fortes. Em suma, acho que não se trata propriamente de encontrar temas "globais", mas sim de explorar formas e experimentos que acabam sendo mais facilmente traduzíveis.

A literatura contemporânea inova em algum sentido? Ela renova formas, gêneros? Como?
Se ele quer ser realmente contemporânea, é claro que inova. Mas é uma inovação que é também, como você sugere na sua pergunta, uma renovação. Atendo-me apenas aos exemplos citados, o regionalismo se encontra ressignificado em José Luiz Passos, os laços de família se encontram retrabalhados em Carrascoza. E Adriana Lisboa cada vez mais fala da condição estrangeira de todos nós.

Existe ainda no Brasil literatura "regional"? A origem geográfica é determinante na literatura que se produz?
Acho que a resposta está aí acima. Passos vem trabalhando com um veio que talvez possa ser identificado como oriundo do regionalismo, mas totalmente ressignificado, ao ganhar tons oníricos, cortes narrativos que explicitam o delírio da própria arte de contar. Gosto de imaginar "O Sonâmbulo Amador", por exemplo, ao lado de "Leite Derramado", do Chico Buarque. E me pergunto se o último romance do Daniel Galera ("Barba Ensopada de Sangue") também não faz esse mesmo movimento de retirar o sujeito de um espaço geográfico que, ao mesmo tempo, está lá, todo diante dos nossos olhos.

A literatura produzida atualmente no país é política?
Não creio que seja possível fazer literatura sem política. Quer dizer, acho impossível que uma boa literatura não seja política. Não "política" no sentido de "engajada" ou "ideológica", é claro. O experimento formal é sempre uma opção política. Penso no caso do último romance de Ricardo Lísias, "Divórcio", que gerou alguma polêmica por colocar em evidência a verdade da ficção. Ao sugerir que contar uma história é fazer ficção, destrói-se a possibilidade de que alguém apareça como aquele que vai falar a verdade. Falar já é contar histórias. Este é o lado político de qualquer boa literatura, que reinventa o mundo sempre que o conta, e sabe que está fazendo isso.

A chamada autoficção, voltada para o próprio eu, para a própria experiência, parece ser um dos mais fortes motes da produção literária dos últimos anos. Alguns estudos apontam uma exacerbação da subjetividade, que seria vista como um valor de autenticidade. Como avalia essa questão? Quais implicações disso na literatura brasileira?
Acho meio complicada a categoria da "autoficção". Mas, sem entrar em detalhes teóricos que não importariam aqui, acho que essa tendência subjetivista não deve ser confundida com uma opção solipsista (desculpe o palavrório, mas é necessário). O caráter "autobiográfico" de qualquer escrito é algo que já vem sendo explorado há muitas décadas, desde pelo menos o modernismo literário, que a esta altura já é velho. No caso brasileiro, é interessante que num contexto de abertura política e de abertura para o mercado esse foco que recai sobre o "eu" pode ser confundido com narcisismo, mas não é assim. As perguntas de um Michel Lahub em "A Queda", por exemplo, são perguntas impossíveis sem a referência pessoal, sem a história de uma decepção com o pai e consigo mesmo. Isso é narcisismo? Não creio.

A literatura, se voltada para o eu, para a própria experiência, pode ser política?
É claro. Vide respostas acima.

Como as formas de interação via redes sociais se manifestam na literatura que se produz hoje?
Desconfio que ainda não tenha surgido uma literatura da era digital. Talvez caiba às novas gerações inventar uma forma literária que seja econômica ao extremo, que seja entrecortada sem ser gaga, e que faça jus à rapidez sem se perder na superfície que inevitavelmente aflora nas redes sociais.

Descobrir a profundidade no Facebook ou no twitter é um desafio que está muito além do que muitos de nós podemos fazer. É uma tarefa geracional que mal começou. Mas não sou conservador, e não vejo com desprezo o que possa acontecer com uma geração que lê aos pedaços. Montaigne também lia aos pedaços e inventou o ensaio. O que eles vão inventar? Não sei. Problema deles.

Existe uma desagregação do romance como forma convencional –pela fragmentação, pela intervenção gráfica?
Isso é tão velho quanto o sol. Ou pelo menos tão velho quanto a imprensa. O livro é uma intervenção gráfica. A letra na página é um desenho mecanicamente reproduzido.

Antologias, coletâneas temáticas, seletas de escritores e outras iniciativas que partem do mercado editorial são frutíferas? Beneficiam a produção?
Claro. Desde que sirvam de convite para descobrir novos autores. Eu recentemente descobri e me encantei com Santiago Nazarian por causa de um continho precioso incluído numa coletânea. A coletânea em si é só um convite.

As oficinas de criação literária, que abundam nos últimos anos, "moldam" a literatura que se produz hoje?
Talvez. Não sei dizer. Sempre fico meio desconfiado das oficinas que "ensinam" a escrever, mas estive recentemente no Rio Grande do Sul e fiquei impressionado com o que a oficina de Luiz A. Assis Brasil tem produzido por lá, ou a partir de lá. É impressionante.

Que espaço tem a poesia hoje, na produção e no mercado? Pode ganhar mais espaço após o sucesso surpreendente da edição da poesia completa de Leminski no ano passado?
Eu não me surpreendi com o sucesso do Leminski. Me parece apenas óbvio: um grande, rápido poeta, encontrou o seu público. Tenho mais dificuldade de falar da poesia porque não a acompanho para valer, mas gostei muito das coisas que li da Angélica Freitas. Acho que há algo novo ali.


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