Folha de S. Paulo


Respostas de Luis Augusto Fischer

LUIS AUGUSTO FISCHER
professor de literatura na UFRGS

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É possível apontar tendências da produção literária contemporânea?

Creio que sim. Tomando "contemporânea" como coisa dos quinze ou vinte últimos anos, há algumas famílias temáticas e formais. (Estou pensando na verdade em dias gerações cronológicas, uma a minha, dos nascidos entre 56 e 65, mais ou menos, e outra nascida dez e quinze anos depois. ou seja, uma que viveu a adolescência no final da ditadura, outra que viveu essa fase já com a internet disponível, digamos. As duas estão produzindo a pleno, agora, mas não podem ser confundidas, me parece. A primeira se representa por Luiz Rufato, Paulo Lins, Claudia Tajes, por exemplo; a segunda por Daniel Galera, Tatiana Levy, Antonio Prata, por ex.).

Temáticas: o mundo da periferia das grandes cidades, visto em perspectiva crítica realista, às vezes brutalista; a vida da mulher pós-feminista; a experiência de jovens brasileiros de classe média no exterior. Formais: o velho e bom romance de formação; a narrativa em primeira pessoa para confissão de experiências pessoais, muitas vezes na chamada autoficção; a narrativa que podemos chamar hollywoodiana, no sentido de contar tudo no presente, sem segundos planos. Uma marca que merece menção é tendência notável, se olharmos a coisa numa perspectiva que venha dos anos 1960 e 1970: o romance é a forma dominante da produção, a mais vistosa, a que concentra a maior parte dos talentos, e não o conto, como aconteceu na geração de Rubem Fonseca, Caio Fernando Abreu, Sérgio Santanna, etc., nem a poesia. Também merece nota a presença forte da escritores de ficção dedicados igualmente à crônica, em várias de suas modalidades.

Quais seriam suas principais qualidades e deficiências?

Algumas mencionei acima. Elas podem ocorrer separadas ou em conjunto, em graus variados de qualidade, por certo.

A Feira de Frankfurt e os programas da política do livro mantidos pelo governo (bolsas de tradução, bolsas de criação, criação de festivais) trouxeram resultados significativos para a produção artística?
Sim, por certo. As duas gerações se beneficiam desses programas, em variados graus. Em sentido amplo, esses programas estão ajudando a consolidar a profissionalização do mercado editorial em grau inédito no país.

A perspectiva de aceitação no mercado exterior norteia de alguma forma o tipo de literatura que se está produzindo? O jovem autor escreve pensando no exterior?
Talvez sim, ao menos potencialmente, uma vez que tem sido frequente o exemplo de compra de livros de autores brasileiros para edição fora daqui.

Existe uma "globalização" dos temas?
Certamente. A nova geração, numa ótima imagem síntese do Carlos André Moreira, bem pode ser chamada "a geração do intercâmbio": é absolutamente impressionante a quantidade de escritores atuais com vivência fora do Brasil, nos chamados intercâmbios estudantis ou em outras modalidades. Por aí se explica parte dessa globalização de temas, muitas vezes ligados diretamente à experiência jovem no exterior.

A literatura contemporânea inova em algum sentido? Ela renova formas, gêneros? Como?
Como sempre, há casos e casos. Há tendências compartilhadas, como as que mencionei acima, em sentido amplo renovadoras (assim como houve um romance realista de ânimo épico mos anos 30 a 50, agora há a autoficção acima citada), e há experimentos singulares de grande interesse e bom acerto, como o mosaico ao mesmo tempo realista e experimental do Ruffato, a dinâmica da frase ampla com ambição descritiva do Galera, o realismo minucioso e antiépico do Rubens Figueiredo, a força das personagens da Tatiana Levy, etc.

Existe ainda no Brasil literatura "regional"? A origem geográfica é determinante na literatura que se produz?
Questão que requer uma definição preliminar, não é? Entendendo a pergunta como relativa a origem geográfica fora do Rio e de São Paulo, sim, há importância, como se vê no Galera, no Ruffato, etc. Se o conceito for o de ambientes não urbanos e especificamente rurais, e de fora das províncias paulista e carioca, creio que aí sim temos uma diminuição da importância dessa presença.

Mas há outra dimensão que a pergunta parece querer destacar: o fato de que hoje é bem mais fácil, mais fluente, a comunicação entre as províncias não hegemônicas e as dominantes, o que se traduz por uma muito maior facilidade de jovens escritores da periferia geográfica brasileira já começarem suas carreiras em editoras e mercados do centro do país. Sim, isso existe e é um fenômeno consistente, e se deve ao fato de que o mercado está mais unificado do que antes.

A literatura produzida atualmente no país é política?
Se estamos falando de ser a literatura envolvida com temas de relevo público, temas de algum modo atentos à dimensão política da vida, creio que se pode dizer que isso tem sido uma ilustre ausência do grosso da produção literária atual. Especialmente na geração mais jovem.

A chamada autoficção, voltada para o próprio eu, para a própria experiência, parece ser um dos mais fortes motes da produção literária dos últimos anos. Alguns estudos apontam uma exacerbação da subjetividade, que seria vista como um valor de autenticidade. Como avalia essa questão? Quais implicações disso na literatura brasileira?
Matéria para muita conversa. Sim, a hipótese da exacerbação da subjetividade faz sentido, mas é preciso especificar sociologicamente: estamos tratando de escritores jovens oriundos das classes confortáveis brasileiras, gente que não viveu dificuldades objetivas em suas vidas, ao contrário do que ocorreu nas gerações anteriores. Agora são bem mais raros os casos de gente que lidou com obstáculos realmente duros em sua trajetória, por provir de muito longe social ou geograficamente, e isso redunda na quase ausência dos temas associados à mobilidade social no repertório temático das novas gerações. As exceções são muito raras (mais uma vez Ruffato, Lins, Figueiredo).

Em outro sentido, pode-se falar da busca por um valor de autenticidade, como quer corretamente a pergunta, que se figura agora na autoficção como em outras gerações se figurou na narrativa testemunhal em primeira pessoa (Graciliano, Guimarães Rosa, Clarice, Raduan Nassar, para não recuar a Machado de Assis): talvez o escritor brasileiro, mais do que seguir uma moda, ou ao lado de seguir tal moda, esteja ainda tentando ancorar sua narrativa não nos fatos, como ocorre na tradição anglo-saxã, mas na condição pessoal, testemunhal, em primeira pessoa ou não. Talvez seja uma forma de fugir, no fim das contas, ao isolamento estrutural do escritor um país de escassos leitores.

Como as formas de interação via redes sociais se manifestam na literatura que se produz hoje?
Talvez na educação do escritor, na formação de sua subjetividade, que tende a ser muito diversa na nova geração, bem menos envolvida com temas comunitários amplos, relativos ao conjunto da cidade, da época ou da classe, e mais ligadas a um segmento particular. E não apenas isso, mas isso sem angústia! Em outro sentido, a interação social via redes por certo condiciona a linguagem, mas eu não saberia demonstrar isso, que porém me parece certo.

Existe uma desagregação do romance como forma convencional –pela fragmentação, pela intervenção gráfica?
Romance é laboratório de invenção desde que nasceu, e agora segue sendo. Para mencionar bons exemplos atuais, cito Rubens Figueiredo, Tatiana Levy, Paulo Scott, Marcelo Backes, etc.

Antologias, coletâneas temáticas, seletas de escritores e outras iniciativas que partem do mercado editorial são frutíferas? Beneficiam a produção?
Sim, claro. Ajudam a dar visibilidade e sentido de conjunto aos escritores, por exemplo.

As oficinas de criação literária, que abundam nos últimos anos, "moldam" a literatura que se produz hoje?
Talvez sim. Seria o caso de verificar isso empiricamente, na linguagem e na estrutura, mas também no ânimo e na visão de mundo, o que talvez seja mais significativo ainda. Creio que as oficinas, oferecendo uma justificável vantagem que é o autopúblico, talvez também de alguma forma acabe por conformar o jovem escritor a esse horizonte, afastando-o de uma angústia que deveria estar no horizonte de todos nós que lidamos com literatura e arte – a angústia por conseguir falar para mais gente, por atingir o leitor potencial, o que me parece que é vital para que a literatura tenha relevância histórica, em sentido amplo.

Que espaço tem a poesia hoje, na produção e no mercado? Pode ganhar mais espaço após o sucesso surpreendente da edição da poesia completa de Leminski no ano passado?
Menos espaço do que teve nos aos 1960 e 1970, por certo. Hoje é bem mais comum e mais estimulado praticar romance, ou narrativa longa, e crônica, em qualquer das modalidades; além disso, nunca foi tão fácil fazer uma banda e gravar e ganhar até algum espaço artístico, o que por certo deve também ser responsável por ceifar talentos poéticos potenciais.
Sobre o sucesso de Leminski agora, acho que é um fenômeno isolado, devido ao específico talento dele e a sua ausência das livrarias, sem maior capacidade de eco. Poeta forte mesmo, capaz de encarar operosamente o monstro engolidor de linguagem que é a publicidade, isso ainda não apareceu, acho.


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