Folha de S. Paulo


Respostas de Paulo Roberto Tonani do Patrocínio

PAULO ROBERTO TONANI DO PATROCÍNIO
professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade da PUC-Rio e autor do livro "Escritos à Margem, a Presença de Autores de Periferia na Cena Literária Brasileira" (FAPERJ/7Letras)

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É possível apontar tendências da produção literária contemporânea?
Todo olhar crítico que se debruça sobre a produção literária contemporânea busca antes de tudo identificar uma linha comum que possa aproximar autores e produções para além da própria relação temporal. Este esforço crítico resultou na constatação de certas tendências. A primeira é a observação da recorrência de uma escrita ficcional calcada na própria experiência do sujeito autoral, que borra as fronteiras entre a biografia e a ficção, se fixando neste interstício. É forte esta tendência e podemos nomeá-la como uma escrita de si ou autoficional, por trazer em seu corpo elementos do discurso biográfico a partir de uma espécie de pacto ficcional. Outra importante tendência é a produção literária que se volta para a tematização da violência urbana por meio de uma prosa ágil que busca representar o cotidiano das populações marginalizadas.

Neste ponto, ganha destaque o fenômeno mais específico que é o da Literatura Marginal. Uma literatura que é produzida por autores residentes na periferia e que retratam esta realidade na prosa e poesia. Por fim, ao analisarmos a produção contemporânea também localizamos um importante sintoma que é o esvaziamento do desejo de representar o Estado-Nação em sua totalidade. Nos parece que não há mais espaço para este tipo de narrativa. De uma narrativa fundacional da nação. Quando se narra a nação, ela é narrada em fragmentos e não em sua totalidade. Fica patente que os discursos ficcionais que oferecem uma imagem da nação enquanto um organismo holístico estão encapsulados no passado.

Quais seriam suas principais qualidades e deficiências?
A principal qualidade da literatura brasileira contemporânea é sua a multiplicidade. Multiplicidade de temas, procedimentos estéticos e, principalmente, de autores. É claro que ainda temos um predomínio de autores se tomarmos como referência o número de escritoras. Mas um importante elemento da literatura contemporânea é a presença de novos sujeitos da enunciação por meio da Literatura Marginal, com a publicação de autores negros e moradores de periferia.

A Feira de Frankfurt e os programas da política do livro mantidos pelo governo (bolsas de tradução, bolsas de criação, criação de festivais) trouxeram resultados significativos para a produção artística?
Não tenho como avaliar.

A perspectiva de aceitação no mercado exterior norteia de alguma forma o tipo de literatura que se está produzindo? O jovem autor escreve pensando no exterior?
Não creio que o desejo de publicar no exterior seja um elemento norteador da produção de um jovem autor. Além disso, caberia elaborar a questão de outra forma. O que o exterior espera de um jovem autor brasileira? O mercado internacional espera uma literatura que ofereça a cor local, representando traços de uma identidade nacional ou o próprio território? Essa questão impulsionou um rico debate em parte da literatura latino americana a partir da publicação do volume de contos "McOndo", organizada por Alberto Fuguet. O grupo de autores desejou romper com o realismo mágico de García Márquez e oferecer uma imagem da América Latina moldada pela cultura pop ocidental. No entanto, não observo esse tipo de preocupação com os autores brasileiros.

Existe uma "globalização" dos temas?
Não tenho como responder.

A literatura contemporânea inova em algum sentido? Ela renova formas, gêneros? Como?
O senso comum espera que o presente, o contemporâneo, consiga romper com o passado e criar o novo. A modernidade se baseia nesse tipo de percepção, que o presente é necessariamente o novo. No entanto, a própria crítica tem observado que a prosa contemporânea não se funda na busca pelo novo. A publicação do volume de ensaios "O Futuro pelo Retrovisor", de Giovanna Dealtry, Stefania Chiarelli e Paloma Vidal comprova isso. Os textos críticos reunidos no volume examinam obras literárias contemporâneas que estão ancoradas em procedimentos, temas e inquietudes formadas no passado. O olhar para o futuro está direcionado para o retrovisor, sendo necessário retornar a modelos do passado.

Um belo exemplo disto é o romance "Passageiro do Fim do Dia", de Rubens Figueiredo. O romance apresenta um diálogo com o naturalismo cientificista do século 19 e coloca Charles Darwin como uma espécie de interlocutor do protagonista por meio da leitura que o personagem faz dos diários do pesquisador inglês. O naturalismo, uma importante referência estética e ideológica de nossa literatura, passa na contemporaneidade a ser lido de outra forma.

Existe ainda no Brasil literatura "regional"? A origem geográfica é determinante na literatura que se produz?
Não tenho como responder.

A literatura produzida atualmente no país é política?
A literatura produzida é política. Na realidade, é necessário afirmar que a literatura é uma atividade política. Mesmo que o autor busque de forma inocente afirmar que não produz uma literatura política, o próprio ato de escrever e assinar uma obra, colocando-se como autor de um volume de páginas, é um ato político. E a proposta de engajamento a partir da literatura é uma característica relevante para a crítica que deve ser analisada também em sua dimensão extraliterária.

A chamada autoficção, voltada para o próprio eu, para a própria experiência, parece ser um dos mais fortes motes da produção literária dos últimos anos. Alguns estudos apontam uma exacerbação da subjetividade, que seria vista como um valor de autenticidade. Como avalia essa questão? Quais implicações disso na literatura brasileira?
Há no cenário contemporâneo um predomínio de obras que podem ser nomeadas como autoficcionais. No entanto, a classificação destas obras como autoficção em alguns casos obedece primeiramente o impulso do crítico que busca localizar no próprio ato de leitura indícios da "presença" do autor no universo ficcional construído no interior da obra. No entanto, é possível observarmos casos opostos em que o próprio autor busca rasurar essas fronteiras entre biografia e ficção. O caso mais exitoso é o de Ricardo Lísias, com a publicação de "Divórcio".

A literatura, se voltada para o eu, para a própria experiência, pode ser política?
"Divórcio", de Ricardo Lísias, é a prova de que um texto formado a partir de um explícito pacto autoficional pode ser um texto altamente político e significativo para alcançarmos uma bela representação da classe média contemporânea. Se no ato de leitura não lançarmos nossa atenção para os elementos biográficos do autor, não tratando-o como um Roman à clef, estamos diante de uma contundente representação da classe média paulistana, expondo a partir de um olhar de dentro a apatia política de seus membros.

Como as formas de interação via redes sociais se manifestam na literatura que se produz hoje?
Não posso responder.

Existe uma desagregação do romance como forma convencional –pela fragmentação, pela intervenção gráfica?

Luiz Ruffato, em "eles eram muitos cavalos", discutiu de forma extenuante essa questão. O autor afirma que para narrar uma megalópole como São Paulo foi necessário criar um novo modelo de representação e construção do romance. A estrutura linear não suporta as muitas vozes que estão presentes em uma cidade como São Paulo, o fragmento e a agilidade são os recursos possíveis para representar a cidade. No entanto, isso não invalida o romance enquanto forma. O romance acaba sendo reestruturado a partir do uso que os escritores oferecem.

Um exemplo é a publicação do esperado romance de Marcelino Freire "Nossos Ossos". O autor domina a prosa curta e especializou-se em contos, criando um modelo próprio para o gênero. Ao publicar "Nossos ossos", seu primeiro romance, o autor não se submeteu ao romance enquanto gênero, mas sim submeteu o romance aos seus experimentos construídos no espaço do conto.

Antologias, coletâneas temáticas, seletas de escritores e outras iniciativas que partem do mercado editorial são frutíferas? Beneficiam a produção?
Sem dúvida. Não apenas beneficiam a produção, mas também surgem como objetos de pesquisa e de interesse da crítica. Um exemplo é a coleção "Amores expressos". Com o simples gesto de convidar autores para criarem narrativas de amor em diferentes capitais do mundo, a coleção lançou uma série de questões que interessam aos críticos. A antologia editada pela Granta também nos permitiu conhecer o perfil esperado e desejado pelos editores da revista para a imagem do jovem escritor brasileiro.

As oficinas de criação literária, que abundam nos últimos anos, "moldam" a literatura que se produz hoje?
Não tenho como responder.

Que espaço tem a poesia hoje, na produção e no mercado? Pode ganhar mais espaço após o sucesso surpreendente da edição da poesia completa de Leminski no ano passado?
Não tenho como responder.


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