Folha de S. Paulo


Respostas de Luiz Costa Lima

LUIZ COSTA LIMA
professor emérito da PUC-RJ, autor, entre outros, de "Frestas: a Teorização em um País Periférico" (Contraponto)

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É possível apontar tendências da produção literária contemporânea?
Não pretendo estar em dia com a produção literária nacional. Tendências? A quebra dos estritos limites nacionais das tramas. Mesmo no caso de um Milton Hatoum, um dos prosadores atuais de destaque, a ênfase na questão da emigração para o Amazonas e da migração para São Paulo, não se faz apenas tendo em conta propriedades dos lugares que receberam os emigrantes. No caso de Bernardo Carvalho, essa internacionalização da trama é ainda mais evidente. A segunda tendência que aponto não é temática mas formal: até meados do século 20, o escritor brasileiro estreava com uma obra fraca ou, pelo menos, muito inferior, à qualidade que alcançaria a seguir. Tomo quer o já citado Hatoum ou Rubens Figueiredo como exemplos contrários: seus livros de estreia não são livros de estreantes.

Destaco ainda o surpreendente "As Visitas que Hoje Estamos", de Antônio Geraldo Figueiredo Ferreira, em que a preocupação com a linguagem interiorana não segue nem o clichê documentalista, que foi próprio do romance naturalista do século 19, nem do regionalista, dos anos de 1930, nem o experimentalismo de Guimarães Rosa. Nele, a "estranheza" da linguagem literária está impregnada da linguagem de um certo Brasil rural, sem pretender ser seu espelho. Acrescento por fim uma ausência: embora tenhamos tido recentemente uma ditadura de mais de 20 anos, há uma espécie de amnésia coletiva do que ela significou.

Quais seriam suas principais qualidades e deficiências?
Extrairia as qualidades dos elementos positivos citados na resposta anterior. Deficiência: se o termo for adequado, a necessidade de o prosador brasileiro não ir além de uma indagação mediana das questões humanas pelos limites de recepção de um público ainda ralo. Prova indireta do que noto: a poesia, mesmo porque de antemão sabe não contar com uma recepção sequer razoável, se permite algumas vezes seguir uma trilha menos clara, como no caso de Simone Homem de Mello.

A Feira de Frankfurt e os programas da política do livro mantidos pelo governo (bolsas de tradução, bolsas de criação, criação de festivais) trouxeram resultados significativos para a produção artística?
Creio que há um equívoco básico em nossa política cultural. Se as bolsas de tradução são bem-vindas, elas se chocam com a manutenção da ideia do estrangeiro sobre o Brasil, que continua a ser visto como exótico, inculto e ignorante. Os festivais são eventos sociais em que não há clima para discussões sérias. Os simpósios das entidades culturais partem do suposto que o público conhece muito pouco do que ouvirá. Por isso os debates são paupérrimos, quando não chegam a dar vergonha.
A Feira de Frankfurt mostrou tudo isso com clareza: inúmeras eram as mesas de debates entre autores que tinham necessariamente de falar em uma língua pouca conhecida, exceto pelos brasileiros ali presentes. O investimento indispensável haveria de ser nos departamentos onde se trata da língua e da cultura nacionais. Tanto na Europa, como nos Estados Unidos, esses departamentos estão reunidos aos estudos hispânicos, que, contando com muito mais professores, reservam para si a quase exclusividade das verbas.

A perspectiva de aceitação no mercado exterior norteia de alguma forma o tipo de literatura que se está produzindo? O jovem autor escreve pensando no exterior?
Conheço poucos autores, velhos ou jovens. É possível que eles não só pensem no pequeno público brasileiro como em responder à expectativa que o estrangeiro tem em geral do Brasil.

Existe uma "globalização" dos temas?
Sim. Mas não é por sua globalização que eles são criticáveis senão pela mediania de seu tratamento.

A literatura contemporânea inova em algum sentido? Ela renova formas, gêneros? Como?
Sim. Internacionalmente, os exemplos seriam inúmeros. Cito apenas Sebald, um certo Roth, Michael Chabon, para não falar nos mais co- nhecidos como Seféris, Káfavis, Paul Celan e Ingeborg Bachmann.
No Brasil, que inovação maior poderíamos ter senão nos poemas, não só nos experimentais, de Augusto de Campos, ou no prosa estelar do Galáxias, de Haroldo? A economia dos exemplos não deve entretanto impedir que se observe: o auge das inovações formais na literatura contemporânea foi atingido com o "Finnegan's Wake", de Joyce. O recuo do experimentalismo, evidente já no "Doutor Fausto", de Thomas Mann, e reiterado, de outro modo, por W. G. Sebald, não significa diminuição de qualidade. A ficção literária não tem hoje o prestígio que manteve até recentemente, mas isso não significa que a qualidade de suas obras ímpares seja menor.

Existe ainda no Brasil literatura "regional"? A origem geográfica é determinante na literatura que se produz?
Por sorte, creio que não. Sempre me pareceu curiosa a designação. Por que o romance urbano não seria também "regional"?! Então o romance machadiano, concentrado na cidade do Rio de Janeiro, seria regional? 

A literatura produzida atualmente no país é política?
Ser/não ser política é uma das possibilidades no elenco temático aberto para todo escritor. Sua relevância é ética, não estética.

A chamada autoficção, voltada para o próprio eu, para a própria experiência, parece ser um dos mais fortes motes da produção literária dos últimos anos. Alguns estudos apontam uma exacerbação da subjetividade, que seria vista como um valor de autenticidade. Como avalia essa questão? Quais implicações disso na literatura brasileira?
Creio que a questão envolve o abismo em torno da reflexão crítica sobre que é ficção. Vejo a chamada autoficção como apenas um grau mais acentuado das autobiografias. A exacerbação da subjetividade é nela evidente, até por desconhecimento de seus praticantes que a concepção do sujeito advinda do romantismo tem sofrido uma enorme modificação.

A autoficção é um equívoco, senão um desastre porque supõe que haja uma maneira de falar de si - auto(biografia) - que seja tão "verdadeira" que não contenha uma montagem (em geral inconsciente) fictícia. E, ao contrário, que a ficção - como consolidação verbal de um relato fictício - seja absolutamente isenta de traços biográficos ou extraídos da "realidade". Acrescento apenas não ser por acaso que hoje se fala, e não só no Brasil, em autoficção. Vejo isso como sintoma de (a) em princípio, não se saber o que é exatamente ficção; (b) vivermos em um momento histórico de absoluto contraste entre as reflexões sobre o sujeito (o ego), em que ou se afirma que o sujeito é um mito ou, mais corretamente, que não tem unidade, e a dissolução dos laços comunitários, tendendo os indivíduos a se tornarem, para falar com o termo do velho Durkheim, anômicos.

*Alguns pesquisadores reclamam que temas de relevo público, atentos à dimensão política da vida, estão ausentes do grosso da produção atual. O senhor concorda?
Creio que a falta de debate de temas de relevância nacional, ou mais especificamente políticos, não deve ser separada de uma questão mais ampla: a falta de reflexão aprofundada em nossa expressão literária. Claro que há dimensão política em Machado, mas está conjugada com outras. É a dimensão humana que conta.

Esse ensimesmamento excessivo, no romance e sobretudo na poesia, piora o estado das coisas. A reflexão exige um distanciamento, uma saída de si. A poesia é constituição subjetiva que afasta do próprio eu, que afasta da subjetividade particularizada.

Como as formas de interação via redes sociais se manifestam na literatura que se produz hoje?
Tenho pouco ou nenhum contato com as redes sociais para que saiba lhe responder.

Existe uma desagregação do romance como forma convencional –pela fragmentação, pela intervenção gráfica?
Não, ao contrário das formas fixas, o romance é uma forma aberta. É verdade que vejo a fragmentação presente em obras bem recentes como prejudicial à sua qualidade. Mas não vejo como discutir o problema senão diante de casos concretos.

Antologias, coletâneas temáticas, seletas de escritores e outras iniciativas que partem do mercado editorial são frutíferas? Beneficiam a produção?
A menos que trate de um período ou autores esquecidos ou pouco estudados, se elas beneficiarem será à divulgação. 

As oficinas de criação literária, que abundam nos últimos anos, "moldam" a literatura que se produz hoje?
Não tenho conhecimento das obras assim feitas para lhe responder. Em princípio, diria que, embora não creia muito na eficiência das oficinas, elas podem, ao menos evitar, uma escrita desastrosa.

Que espaço tem a poesia hoje, na produção e no mercado? Pode ganhar mais espaço após o sucesso surpreendente da edição da poesia completa de Paulo Leminski no ano passado?
Conheci pessoalmente Leminski e reconhecia a promessa que era. A vida pela qual optou impediu sua plena realização. Sua vendagem é um efeito de uma publicidade bem feita e a fama ganha de frequentador de botecos.
Seria ótimo que seu êxito ajudasse a circulação de inúmeros poetas de qualidade (Sebastião Uchoa Leite, Carlito Azevedo, Age de Carvalho, por exemplo) ou de que pouco se fala (como no caso de Augusto de Campos) que muito poucos conhecem.

Quero por fim chamar a atenção do redator deste questionário que, como teórico da literatura e, eventualmente, crítico literário, estranho a marginalidade em que é posto o estudo da literatura. Como se a literatura fosse necessariamente divertida e seu estudo necessariamente chato.


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