Folha de S. Paulo


Respostas de Alcir Pécora

ALCIR PÉCORA
professor de teoria literária da Unicamp e autor de "Máquina de Gêneros" (Edusp)

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É possível apontar tendências da produção literária contemporânea?
Acho que a produção é bem dispersiva e pouco marcante, em qualquer tendência que se observe. O que mais existe é, por assim dizer, um genérico de literatura, que se expande muito, em várias direções, inflaciona a vida de signos, mas não tem caráter decisivo como experiência ou como experimento.

Quais seriam suas principais qualidades e deficiências?
Já pela resposta anterior, estou mais preparado para falar dos defeitos. Na poesia, há predomínio do gosto evocativo, sentimental, sentencioso e generalizante, pois se trata mais de uma "ideia geral" (esse horror, como dizia o Eduardo Coutinho), de um clichê confessional e de intimidade do que de experiência. Na prosa, há muita narrativa sobre narrativa, que refere livros e vidas dos autores célebres, as quais funcionam como piscadelas cúmplices para o leitor amigo capaz de identificar as referências.

Ou seja, resumindo, na poesia, a praga é o kitsch, falta de fibra e de objetividade; na prosa, o romanesco ralo, batido, com remissões ostensivas ao "mundo dos livros" e à cultura de fachada.

Nos livros melhores- justamente os que se apresentam como exceções às tendências –, permanece o compromisso com o novo (pois este é uma exigência invencível do próprio campo da literatura) e com a verdade (com questões levadas a sério, como experiência de viver e pensar o real).
 
A Feira de Frankfurt e os programas da política do livro mantidos pelo governo (bolsas de tradução, bolsas de criação, criação de festivais) trouxeram resultados significativos para a produção artística?
Esse tipo de iniciativa, à qual acrescentaria as festas e os prêmios literários cada vez maiores e mais comuns, têm efeitos eventuais para a profissionalização do escritor e para o incremento do mercado livreiro. Ou seja, pode favorecer quem faz da literatura um negócio, mas os resultados mais comuns se resumem à publicidade em favor de alguns autores de umas poucas editoras, o que pode gerar um cânone de ocasião, por assim dizer, tirado da manga para um evento oficial e finito ali mesmo.
A meu ver, a produção artística, em termos de nível médio, só é realmente afetada pela qualidade do sistema educacional do país.

A perspectiva de aceitação no mercado exterior norteia de alguma forma o tipo de literatura que se está produzindo? O jovem autor escreve pensando no exterior?
"Jovem" já é uma categoria do negócio e não da literatura: trata-se de colocar novos produtos na praça identificados a um novo público consumidor. Como categoria do negócio, ela vai aonde vai o negócio, e, portanto, é crível a figura desse "jovem" em busca de um padrão que vença no "exterior".
Mas duvido um pouco dessa abertura do exterior para a literatura brasileira. Essa possibilidade deve permanecer um nicho de poucos, justamente aqueles agenciados por grandes editoras, ou então de uns poucos autores já conhecidos, entre eles o famigerado Paulo Coelho. Acho que o momento de curiosidade maior pelo Brasil já passou. Ásia e África parecem estar mais na cena desse mercado "exótico" do que o Brasil.

Existe uma "globalização" dos temas?
Eu li outro dia um livro brasileiro que imitava o Dan Brown, assim como li outros que imitavam o Vila-Matas. Me lembro daquele projeto "Amores Expressos", que colocava autores nacionais em cenários estrangeiros e buscava dar-lhes rumos internacionais. Assim, há qualquer esforço de globalização de temas, mas na prática ocorre apenas a adoção de estereótipos literários internacionais, os quais acabam suscitando pouco interesse desse mercado globalizado.

O que o mercado globalizado da literatura pede, em geral, é o contrário do que já pode ter por si mesmo. Isto é, pede o pitoresco e exótico locais, ou então narrativas com testemunhos de experiências de minorias marginalizadas ou situadas em zonas conflagradas e pouco conhecidas. Na primeira alternativa, Jorge Amado é mais "globalizado" do que qualquer autor brasileiro contemporâneo que eu conheça. Na segunda, há pouca coisa a ser oferecida pelo Brasil, pois a exclusão social é grande a ponto de testemunhos de experiência direta raramente alcançar versão escrita, quanto mais literária. Quando ocorre, dá-se muito mais na música popular ou no documentário jornalístico que na literatura. Até a moda praiana, produzida na favela, tem mais sentido de encaixe no mercado globalizado que a literatura brasileira.
 
A literatura contemporânea inova em algum sentido? Ela renova formas, gêneros? Como?
A literatura contemporânea, no Brasil ou fora dele, raramente inova, pois vive um impasse radical. De um lado, já não consegue fazer a epopeia da construção nacional, pois a circulação internacional do capital minou as bases do Estado-nação; de outro, não cola como valor estético suficientemente duradouro, pois seu programa, geralmente associado a reivindicação de direitos, tende a ser imediatista e relativo a grupos restritos.
Acho que a Teoria tem ocupado a centralidade cultural que era da literatura. Os grandes nomes da cultura, hoje, com rara exceção, são de pensadores, teóricos, não de escritores.
 
Existe ainda no Brasil literatura "regional"? A origem geográfica é determinante na literatura que se produz? 
Sinceramente não sei. Talvez haja. O Rio Grande de Sul, em especial, preza muito a sua face gaucha. Sei que, em diferentes universidades do país, há disciplinas sobre literaturas regionais. Seja como for, o mercado de livros é muito centralizado. S. Paulo e Rio monopolizam a produção, a circulação, a distribuição etc., de modo que, de alguma maneira, o Brasil é grande, mas vive encolhido.

Não apenas o "regional", mas a maior parte do que é produzido fora desse eixo fica fora do acesso público nacional. É uma perda tremenda. Uma produção menos determinada pelas modas editoriais, mais vincada em experiências reais seria sempre um respiro, mesmo que não chegasse a ser grande. Nisso, não apenas a música, mas o cinema tem se saído melhor: Pernambuco, por exemplo, tem uma produção séria e de alcance internacional.

No que toca à segunda questão, a origem geográfica pode ser determinante ou não, mas a literatura não admite determinação a priori, de nenhuma espécie. Por exemplo, já que falamos em Pernambuco: Cabral ser pernambucano pode ser importante para a sua literatura, mas é consideração que apenas podemos fazer a partir da forma já efetivamente produzida. Antes, não.

A literatura produzida atualmente no país é política?
Está muito longe da política, embora, por vezes, se finja oportunisticamente de política: li vários livros recentes que referem guerrilhas ou sequestros, mas elas aparecem apenas como fait divers. Política ali é apenas uma tentativa de criar uma aura séria ou histórica para a diversão fácil.

Em literatura, não existe característica determinante a priori. Não é como uma língua já existente, ou uma variante de fala prevista nela. Ser política ou atribuir-lhe qualquer essência particular apenas pode ser relevante depois que a forma particular é efetuada. Antes disso, a literatura apenas pode ser pensada como intervenção imprevista. Depois disso, quanto melhor ela for, mais ela é autodeterminada em seus próprios termos.

A identidade nacional era, de uma forma ou outra, um tema sempre presente em nossa ficção. Isso se perdeu? Essa questão deixou de ser central?
Não é apenas questão de "identidade" nacional – identidade era apenas uma das possibilidades de pensar os acontecimentos vividos com relativa urgência. A questão, até por volta dos anos 60/70, a forma literária era central na interpretação do país, parecia central na criação consistente de uma comunidade imaginária que respondia por ele ou por seus destinos. Hoje, essa urgência interpretativa perdeu fôlego para a representação de um pequeno espetáculo de si, de grupos de leitores ou de comunidades mais restritas, com gostos e perspectivas a priori homogêneos, ainda que disseminados pelo mundo. Quero dizer, enfim, que não me parece que seja na literatura, na linguagem da invenção, que se trava, hoje, a batalha das contradições do real ou da busca de suas alternativas mais consistentes.

Essa centralidade obtida em decorrência do fortalecimento do estado-nação é um ciclo terminado, em função mesmo do enfraquecimento do Estado-nação no contemporâneo. Isto posto, não entendo que seja possível qualquer retorno à situação histórica anterior, nem acho que nos cabe qualquer nostalgia da brasilidade perdida. Cabe, sim, à literatura buscar descobrir uma nova centralidade para si no cerne da vida social. É isso ou conformar-se a um papel lateral, secundário na cultura.

A minha opção, pessoalmente, é pela relevância decisiva da literatura. Mas criar uma nova centralidade implica, a meu ver, em tirá-la desse "entre-lugar" no qual se reduz à expressão de grupos de semelhantes ou de próximos, ou à produção e consumo de entretenimento pop, no qual a crítica e o compromisso com o novo não têm papel.
Reforçar a crítica, capaz de formular critérios adequados de análise das obras em particular, e considerar as obras sob pressão do legado cultural mais exigente são, para mim, as melhores pistas para uma retomada de seu lugar de força na cultura.

A chamada autoficção, voltada para o próprio eu, para a própria experiência, parece ser um dos mais fortes motes da produção literária dos últimos anos. Alguns estudos apontam uma exacerbação da subjetividade, que seria vista como um valor de autenticidade. Como avalia essa questão? Quais implicações disso na literatura brasileira?
Em geral, a única autenticação no gênero que tem sido chamado de autoficção no Brasil é a da vulgaridade: uma exposição despudorada de uma falsa subjetividade, construída para consumo imediato e obsceno em larga escala.
Claro, falando genericamente, pode-se dizer que toda ficção é "auto", ou seja, toda invenção se associa à produção de uma subjetividade (não à sua representação inerte ou transparente), mas o que tenho lido na esfera do que se autonomeia de autoficção está bem mais próximo da falsificação da experiência e da história como espetáculo vulgar.

Como as formas de interação via redes sociais se manifestam na literatura que se produz hoje?
Formalmente, talvez na ideia de capítulos em pedacinhos, de literatura em fragmentos, como os scrapbooks de adolescentes americanos: esse é um dos modelos populares de literatura hoje. Há também um modo de compor o livro inteiro nessa disposição segmentada: um capítulo sobre uma coisa, outro sobre outra, o terceiro sobre outra, até que ao final se juntam no mesmo enredo de última hora. É uma espécie de fecho de editor: como os capítulos têm passinhos curtos, os caminhos se articulam tarde demais, às pressas, fora do tempo construído por eles.

Mas o pior da interação redes sociais-literatura talvez seja a ideia de se escrever para próximos, de estabelecer contato entre "amigos". Nesses termos, é mínima a preocupação com o domínio técnico da língua, do assunto ou com o rigor da criação, o que implica demanda do novo, sem o que não há literatura. Por isso mesmo, é nula a demanda crítica, e quando um crítico se apresenta diante da obra, ele acaba por assumir a condição de "intruso", como diz o crítico italiano Alfonso Berardinelli.

Talvez um termo de Tony Judt esclareça melhor o assunto, pois a literatura sob o influxo das redes sociais está balizada por "subjetividades expandidas" mais do que pelo esforço de criação de objetos novos, que resistem a uma interpretação já dada e partilhada. Ora, um aparelhamento ostensivo de gente que deve necessariamente concordar entre si, rezar a mesma missa dos pares, nada tem a ver com uma ideia importante de literatura. Enquanto tal, ela é produção de um artefato basicamente estranho, de assimilação difícil, de acontecimento único, de criação de uma forma que suscita necessariamente um ato livre de juízo.

Existe uma desagregação do romance como forma convencional –pela fragmentação, pela intervenção gráfica?
Embora a fragmentação exista, como já comentei antes, o gênero do romance (equivocadamente totalizado pelo modelo do romance naturalista francês) sempre foi uma forma livre, aberta a experimentações gráficas e ao que mais a prosa admita. Na Itália, por exemplo, nunca houve esse modelo do romance realista totalmente articulado entre si. Nas outras literaturas, dá-se igualmente o caso: de Sterne a Machado, de Huysmans a Joyce, de Proust a Broch, o que neles pode ser chamado de romance convencional?

Tendo isso em mente, não vejo grandes experimentações gráficas atuais - ao menos, não no que signifique participação do experimento no cerne do romance –, mas apenas formas decorativas do livro. Quer dizer, há muito livro decorativo, com páginas em várias cores, com tipologia alternada e alterada, mas a narrativa propriamente é linear, quadrada, escrita embora aos pedacinhos.

Antologias, coletâneas temáticas, seletas de escritores e outras iniciativas que partem do mercado editorial são frutíferas? Beneficiam a produção? 
São iniciativas úteis para a divulgação do trabalho deste ou daquele autor, desconhecido ou não, ou para dar acesso a peças consideradas mais importantes de um autor, segundo determinados critérios estéticos ou outros. Mas nada disso beneficia diretamente a qualidade da produção. Como poderia, quando a divulgação é um ato isolado, um evento ocasional, descolado da formação do leitor?

Repito o que disse antes: o procedimento eficaz a ser adotado para favorecer a produção literária é a qualificação do sistema educacional do país. Pode não garantir nenhuma obra-prima, pois esta não tem explicação, nem cumpre hora marcada pra acontecer, mas é apenas a força do processo educacional que garante o peso relativo da cultura no país.

As oficinas de criação literária, que abundam nos últimos anos, "moldam" a literatura que se produz hoje?
No Brasil, acho que não. Essas oficinas não são tão correntes nem tão prestigiosas como nos Estados Unidos, onde têm presença marcante nas Universidades e nos estudos literários. Aqui, os cursos são oferecidos de maneira amadora, quase como aulas particulares de reforço de redação.

Que espaço tem a poesia hoje, na produção e no mercado? Pode ganhar mais espaço após o sucesso surpreendente da edição da poesia completa de Leminski no ano passado?
O espaço é pequeno e dificilmente deixará de continuar pequeno. No Brasil, evidentemente, a situação é muito pior que nos países europeus, uma vez que é mínimo o tamanho do público com formação cultural bem sedimentada, apto a interpretar diversos registros da experiência e da linguagem.

Leminski foi um caso isolado de ajuste de uma campanha publicitária altamente profissional com uma poesia de viés pop, que casou bem com a internet e com as sentenças de sabedoria prática e auto-ajuda para jovens. A melhor poesia de Leminski não se reduz a isso, mas, no conjunto, é uma poesia que admite esse recorte. Nesses termos, é mais um exemplo da facilitação geral que sinal de uma mudança boa de rumos.


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