Folha de S. Paulo


O sorriso guardado de Coutinho

Tinha 14 anos quando conheci Eduardo Coutinho. Na época dividia meu tempo entre o colégio e o campo de peladas na minha João Pessoa, em 1962. Vladimir Carvalho, meu irmão, já ingressado no cinema como documentarista, hospedou em nossa casa o cineasta. Coutinho passava pela Paraíba com a chamada UNE Volante, do CPC (Centro Popular de Cultura).

Vladimir se encarregou de levá-lo para conhecer dona Elizabeth, viúva do líder camponês João Pedro Teixeira, e seu filho Abraão.

Coutinho tinha o projeto de filmar "Cabra Marcado para Morrer", sobre o assassinato de Teixeira. As filmagens foram interrompidas em 1964, após o golpe militar. O documentário só seria lançado em 1984, tornando-se um dos ícones do cinema brasileiro.

Vi em minha casa pela primeira vez -e ainda hoje, na semana de sua morte, trago na memória- aquela figura magra, de rosto recortado e óculos espessos, que fumava muito e falava sem parar sobre as questões que envolviam a história do filme.

A cada final de frase colocava a expressão "compreende...", que em geral dizia duas vezes, com um leve sotaque do sul, puxado pelo erre forte dos paulistas.

Minha mãe e eu, depois que Coutinho deixou nossa casa, ficamos os dois a repetir a expressão "compreende..., compreende..." entre nós, de forma engraçada.

O tempo passou e seis anos depois fui morar no Rio para tentar o vestibular na Escola Superior de Desenho Industrial, da UERJ. Nessa época, meu irmão Vladimir me levou para conhecer a Cinemateca do MAM, onde me apresentou a Cosme Alves Neto, diretor da instituição no período.

Na Cinemateca avistei Coutinho pela segunda vez e pude me aproximar da figura carismática que continuava falando rápido, "compreende...", acendendo um cigarro após outro, carregando no ombro a famosa bolsa de couro cru comprada nos confins da Paraíba.

Aos poucos nos aproximamos e lembro claramente que logo ele procurou saber dos companheiros do João Pedro Teixeira e de dona Elizabeth, que naquela ocasião vivia ainda na clandestinidade.

Alguns anos se passaram e sempre me encontrava com Coutinho, embora ainda envolvido com minha escola, enquanto trabalhava como "graphic designer" no próprio Museu de Arte Moderna.

Em 1984, eu já estava completamente mordido pela fotografia e com alguns filmes no currículo. Recebi, pouco depois da estreia de "Cabra Marcado", um telefonema de Coutinho, me convidando para registrar o encontro de dona Elizabeth e seus filhos no Rio. Seria um momento histórico, pois ela não os via havia mais de 20 anos.

Fomos, no carro de uma amiga, para Ramos, bairro onde morei na casa de uma tia, em 1968. Minha presença ali era útil, pois era o único que conhecia as ruas do local.

O mês era maio, o sol límpido iluminava a praia de Ramos, ofuscando a Ilha do Governador no sentido oposto. O clima quente era suave naquela época do ano. Nossos corações batiam apressados, na expectativa do que iríamos presenciar logo mais.

Fomos primeiro à casa de uma das filhas. Ela levou um grande susto, tamanha a surpresa de ver a mãe fragilizada e em lágrimas.

Caminhamos em grupo rua afora para o encontro mais importante daquele dia: a mãe, o filho José Eudes, as irmãs Marta e Marinês, Coutinho e a criançada da família.

Batemos palmas à moda nordestina para anunciar a visita. O que vi, com a tarefa de fotografar, foi uma cena de extrema emoção, todos se abraçavam e choravam sem dizer uma palavra, impulsionados pelo sentimento de uma família despedaçada.

Eduardo Coutinho, contido, mas profundamente emocionado, presenciou a cena com distanciamento, mas havia em seu semblante, entre um cigarro e outro, um sorriso guardado por ter cumprido mais uma tarefa de aproximar aquelas pessoas, que ele mesmo havia revelado para o mundo com seu filme.

Sempre falávamos dessa aventura em nossos encontros, lamentando o nosso erro em não ter filmado. Coutinho dizia que o "Cabra Marcado" poderia continuar ali outra fase. E ria ao comentar aquela nossa incursão: "Nós não somos documentaristas".

WALTER CARVALHO, 66, é diretor de fotografia e cineasta. Dirigiu, entre outros, os documentários "Janela da Alma" (2001, com João Jardim) e "Raul - O Início, o Fim e o Meio" (2012).


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