Folha de S. Paulo


O mini Jorge Amado sorriu para mim

"O Bóris não quer morrer, Zélia."

A voz era do Jorge Amado, e o comentário em voz alta tinha sido dirigido para Zélia Gattai. Cada um estava em uma sala dentro da casa, escrevendo, enquanto eu esperava do lado de fora, sentado na varanda, a hora certa para fotografar o escritor.

Estávamos em 1994. A casa era a da rua Alagoinhas, no bairro do Rio Vermelho, em Salvador, casa que ele tinha construído com a venda para o cinema dos direitos de "Gabriela, Cravo e Canela".

J.R. Duran/Acervo Pessoal
Jorge Amado autografa exemplar de
Jorge Amado autografa exemplar de "Navegação de Cabotagem" para J.R. Duran

Na época eu morava em Nova York e fui contratado pela Standard Ogilvy, uma agência no Brasil, com a missão de fotografar Jorge Amado para uma campanha publicitária do cartão de crédito American Express.

A tarefa não era simples; normalmente as fotos publicitárias para o cartão eram feitas por Annie Leibovitz, uma das feras -e um dos meus ídolos- da fotografia mundial. Por reentrâncias e saliências da vida (questão de agenda, se falou), ela não poderia fazer esse trabalho. Eu teria de entrar no seu lugar e, claro, mimetizar seu estilo.

Era uma tarefa bastante inglória, tanto quanto seria a de um reserva do Barcelona ter que entrar no lugar do Lionel Messi e fazer dois gols nos últimos 15 minutos de um jogo de futebol.

No dia do trabalho, chegamos antes da hora combinada e nos pediram, gentilmente, para esperar um pouco. Foi aí, tomando um cafezinho, que ouvi a frase.
"O Bóris não quer morrer, Zélia." "Que safado", respondeu ela.

Demorei alguns minutos para entender que Jorge Amado comentava alguma coisa que estava escrevendo, e que eu tinha o privilégio de presenciar esse fenômeno criativo em que os personagens começam a ter vida própria e vão traçando eles mesmos seu destino. Os escritores costumam dizer que, nesse momento, a magia do ato de escrever atinge seu ápice.

Só anos mais tarde me dei conta de que naquele instante ele deveria estar lidando com o protagonista de um livro que nunca seria concluído: "Bóris, o Vermelho".

Na hora certa, Jorge Amado se submeteu a todas as solicitações. Foi simpático, gentil e educado, mesmo com os constantes pedidos que eu fazia ao tentar achar a imagem que, imaginava, passaria à história da fotografia publicitária dos cartões de crédito.

Aproveito sempre, quando tenho a oportunidade de fotografar alguma celebridade, para fazer alguns registros para um livro que, desconfio, nunca será publicado.

Dessa vez, além de Jorge sozinho e ao lado de Zélia, pedi autorização para fazer algumas fotos retratando o escritor em seu lugar de trabalho. Com paciência, ele aceitou. Uma forte luz iluminava as folhas de texto colocadas sobre uma mesa, que me surpreendeu pelo seu tamanho reduzido.

Em certo momento, o que me pareceu o sinal para que o deixasse em paz, ele me deu um exemplar de "Navegação de Cabotagem" autografado com um generoso "Para J.R. Duran, mestre da fotografia, um obra de Jorge Amado. 1994".

O tempo passou e voltei à Bahia para um outro trabalho. Fiz uma série de fotos de moda para uma revista italiana. A editora, uma moça divertida e culta, quis conhecer o Pelourinho e, como não, entramos no casarão da Fundação Casa de Jorge Amado.

Uma prateleira, encostada em uma parede, alinhava bonecos de todos os tamanhos reproduzindo a imagem do escritor. Para minha surpresa, uma das fotos que tínhamos feito para o American Express -a de Jorge Amado sentado numa rede laranja, vestindo shorts azuis, com uma camisa florida, chapéu de palha e chinelos brancos com listras azuis, segurando um bastão de madeira- tinha se convertido em um boneco de barro, daqueles feitos pelo Mestre Vitalino. O escritor, com não mais do que dez centímetros de altura, estava lá sorrindo para mim.

Sem querer querendo, tinha entrado na vida de Jorge Amado.

J.R. DURAN, 61, é fotógrafo, editor da "Rev.Nacional" e autor do romance "Cidade sem Sombras" (Benvirá, 2013).


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