Folha de S. Paulo


Cristiano Ronaldo, o humilde

RESUMO Eleito pela Fifa o melhor jogador do mundo, na segunda-feira passada, Cristiano Ronaldo está longe da unanimidade fora dos gramados; jornalistas e torcedores o acusam de egoísta e arrogante. Técnicos e antigos companheiros, porém, descrevem um atleta "profundamente humano" e aberto a críticas

*

Anos atrás, um garoto passava todo o seu tempo livre tentando acertar os dardos no centro de um alvo pendurado no salão de jogos do time de futebol Sporting, de Lisboa. Os adolescentes à sua volta se divertiam jogando pebolim e pingue-pongue. Ele tinha 12 anos, um ar concentrado, o cenho franzido e os lábios apertados: errar o deixava furioso.

O diretor da escolinha do time, Aurélio Pereira, ainda se lembra dessa expressão de raiva. A mesma de quando ele perdia no pingue-pongue, a mesma de quando o derrotavam no bilhar. O gesto irritado de um menino que não se permitia perder. Semana após semana, insistia em lançar o dardo no centro do alvo. O olho calibrando a pontaria certeira, o pulso firme e o movimento do antebraço.

Leia perfil que o jornalista mexicano Juan Villoro escreveu sobre o jogador Lionel Messi

Pereira, seu primeiro mestre, a quem o ex-aluno visita sempre que passa por Lisboa, descobriu dessa forma seu perfil obsessivo. Todos eram esforçados, mas nenhum garoto se importava em ser derrotado na hora do descanso. Nenhum menos Cristiano Ronaldo.

Os fãs de Ronaldo no Facebook são uma nação sete vezes mais populosa do que Portugal. Ele é um dos atletas mais ativos na internet e um pioneiro em contratos publicitários envolvendo redes sociais.

Graças à marca de xampu Clear, que o patrocina, os fãs do jogador já puderam escolher o penteado de seu ídolo. Contratos como esses fizeram com que, em 2011, ele tenha se transformado, segundo a revista "Forbes", no segundo jogador que mais ganhou dinheiro no mundo, depois de David Beckham: foram quase US$ 43 milhões (cerca de R$ 100 milhões) só naquele ano.

Como Beckham, Ronaldo é vaidoso. Se penteia com gel e faz poses antes das partidas, quando a câmera o enfoca. O atacante inglês Wayne Rooney brincava que haviam instalado espelhos maiores no vestiário do Manchester United quando o português chegou ao time, vindo do Sporting.

Aurélio Pereira diminui a velocidade do carro toda vez que vislumbra garotos jogando futebol em seu caminho. A obsessão do mestre de jogadores como Ronaldo, Figo e Nani é formar talentos. Hoje é coordenador das divisões de base do Sporting Clube de Portugal e diz que sua principal tarefa é passar confiança aos garotos que chegam ao time.

O Sporting não é o clube mais rico de Portugal. Nem o que desperta as maiores paixões. Em um país que divide seu coração entre o Benfica, de Lisboa, e o Porto, da cidade homônima, o Sporting é a equipe tímida que forma estrelas para brilharem nos melhores clubes da Europa. Em sua escolinha, considerada uma das melhores do mundo, treinam, estudam e dormem meninos de todo o país.

Alguns dizem que a arma secreta é Pereira, 66, um lisboeta de fala calma e caminhar decidido. Quando conheceu Ronaldo, ele era um moleque franzino. Depois de seis anos sob sua tutela, o Manchester United pagou 15 milhões de euros por seu aluno, que acabava de chegar à maioridade. De lá, Ronaldo sairia em 2009 para o Real Madrid, em troca do maior valor pago à época por um jogador de futebol.

O menino despenteado, que quando não estava competindo com os outros desafiava a si próprio nos dardos, se converteu em um jovem de cabelos engomados que hoje não tem vergonha de dizer que é o melhor jogador do planeta. Um jogador excepcional, com fama de arrogante.

HUMANO

Aurélio Pereira, como tantos em Portugal, não entende por que enxergam um arrogante no menino que ele educou durante anos. Fora de Portugal não caem bem as declarações autossuficientes de Cristiano Ronaldo, nem sua falta de modéstia ao reivindicar que merece os prêmios que ganhou. Pereira não se aventura em explicar por qual motivo rejeitam sua pose, seu olhar, o penteado, as respostas em terceira pessoa, as roupas, a obsessão por ganhar tudo. "Ao contrário do que se costuma crer, ele é um garoto profundamente humano", diz Pereira.

Marcelo Daldoce

Paulo Cardoso também foi professor de Ronaldo. Era técnico da equipe infantil do Sporting. Hoje também rejeita a ideia de que CR7 -o apelido alude ao número de sua camisa- seja arrogante. Relembra que nos primeiros momentos de Ronaldo no Sporting chegou a se questionar: "Como educar alguém como ele?. Afirmando que ele é igual aos demais?". Ele diz que chegou à conclusão de que essa fórmula não funcionaria. "Não podemos esperar que alguém que é considerado o melhor desde garoto não tenha autoconfiança ou uma autoestima elevadíssima. Para que falsa modéstia?"

Afirma Pereira que seu trabalho com os garotos é ensiná-los o respeito mútuo. O desrespeito não seria um traço português. No Sporting, Pereira e Cardoso exigiram mais de Cristiano Ronaldo desde menino e conduziram seu caráter obsessivo à busca da perfeição.

O sonho de Aurélio Pereira era ser professor de primário. Seus pais, preocupados com que ele não conseguisse um salário decente, o obrigaram a fazer um curso técnico. O futebol o devolveu a sua vocação. Começou treinando os garotos de seu bairro. Depois passou ao Sporting, no qual havia jogado quando tinha 14 anos, e, como treinador, conduziu à vitória em campeonatos portugueses nos anos 1990.

Enquanto Cristiano Ronaldo viveu em Lisboa, Pereira foi seu treinador. O Professor tem um temperamento calmo como sua voz. Seu bigode se curva com um sorriso enquanto mostra em seu celular as mensagens de texto que troca com seus discípulos.

Em frente aos campos da Academia do Sporting, Pereira ajusta a distância dos óculos para conferir os SMS mais recentes. São de seu ex-aluno Silvestre Varela, atleta da seleção portuguesa que lhe escrevia da Ucrânia, onde então se encontrava, disputando a Eurocopa. Ele havia marcado o gol que definira o resultado da partida. Em um país com pouco mais de 10 milhões de habitantes, Pereira é o único técnico ao qual dez dos convocados portugueses à Eurocopa 2012 já chamaram de Professor.

Cristiano Ronaldo tinha a liberdade de um garoto desses que brincam na rua, roubam uma fruta no quintal do vizinho, escalam muros e jogam bola até a hora de dormir. Com sua mãe trabalhando o dia todo como cozinheira, ele e seus três irmãos passavam a maior parte do tempo sozinhos.

CR7 ia à escola em Funchal, a capital da Ilha da Madeira (arquipélago mais próximo do Marrocos do que da Europa), e depois ia jogar pelada com os primos e com os amigos de seu irmão Hugo, dez anos mais velho. Talvez tenha sido ali que começou a moldar seu estilo de correr: bem estirado, como se quisesse parecer mais alto.

Há jogadores que correm como desesperados. Outros, de forma burocrática. Cristiano Ronaldo avança ereto, com a coluna vertebral estendida em direção ao céu, os braços e as pernas rasurados pela velocidade. Enquanto a bola está entre seus pés, é impossível olhar para outra direção. Quando corre, é o pavão mais veloz do mundo.

O número 7 do Real Madrid poderia concluir uma maratona aos 30 minutos do segundo tempo se corresse com a mesma velocidade com que dribla. Sobre o gramado e cercado por zagueiros, ele atinge 33,6 km/h, de acordo com a revista alemã "Der Spiegel".

Veja vídeo

Esse estilo de correr já aparecia quando ele chegou para fazer testes no Sporting, em 1997. Os técnicos da divisão infantil Paulo Cardoso e Osvaldo Silva viram um garotinho magro e frágil em cujo corpo não se adivinharia o atleta de 1,85 m de altura e 80 kg que viria a ser. Mas, quando a bola chegou aos seus pés, o campo virou sua autoestrada -uma premonição: o antigo gramado hoje é cortado pelo Eixo Norte-Sul, a estrada que cruza Lisboa. "Começou a driblar os outros numa velocidade incrível. Olhei para Osvaldo, ele, para mim, e nos perguntamos: 'O que é isso?'", relembra Cardoso. Ao final do treino, curiosos, os adolescentes cercaram o recém-chegado.

DRIBLES

O menino veloz que corria espichado tinha 11 anos e, segundo o primeiro documento do clube que menciona o nome de Cristiano Ronaldo dos Santos Aveiro, era um "jogador com um talento fora de série, tecnicamente muito evoluído. Destaca-se sua capacidade de drible, em movimento ou parado".

No dia seguinte ao primeiro teste já falavam sobre ele no campo principal. Havia corrido a notícia de um prodígio. Esse foi o dia no qual Aurélio Pereira viu seu discípulo pela primeira vez.

Era seu segundo teste e ele jogava novamente com adolescentes. Um deles o marcava com insistência e o agarrava seguidas vezes pelas costas. Cristiano Ronaldo parou a bola e lhe disse: "Ei, colega, vai com calma". Pereira lembra que viu nisso uma prova de caráter. E deu-se conta de que nunca tinha tido um aluno tão jovem na escolinha.

Os meninos chegavam aos 14 ou 15 anos. Ele escreveu um relatório para o diretor financeiro e o convenceu a aceitar a proposta do Nacional da Madeira, onde até então jogava o menino: trocá-lo pelos 450 mil escudos (cerca de R$ 80 mil) que o time devia ao Sporting. Nunca haviam desembolsado tanto por um garoto.

PELÚCIA

Meses depois, Cristiano Ronaldo se mudou para Lisboa. Tinha dificuldades para aceitar que as coisas não saíssem como ele queria. Ele não gostava de ser contrariado. Tinha trocado a liberdade das ruas de Funchal pela rigidez de uma academia.

"Logo nos demos conta de que ele precisava de carinho. Estava longe da mãe e num ambiente totalmente estranho." Chorava todas as noites e dormia com a bola como se fosse um bichinho de pelúcia. Era um menino de 12 anos que dividia o quarto com garotos de 15. Em Portugal, aqueles que chegam das ilhas que fazem parte do país são vistos como gente fechada. Os ilhéus têm uma couraça. Assim parecia Cristiano Ronaldo aos olhos dos outros.

Bruno Militão, seu contemporâneo nas categorias de base, lembra de um menino de quem tiravam sarro por seu forte sotaque madeirense, um português fechado, pronunciado com lábios que quase não se desgrudam. Ao final daquela primeira temporada, Cristiano Ronaldo ganhou os prêmios de melhor jogador em todos os campeonatos que disputou.

Com os anos, Militão viu o garoto perder a timidez, converter-se em um gozador e despojar-se daquilo que o mantinha deslocado: começou a falar como um lisboeta. Os professores descrevem Cristiano Ronaldo como um menino tímido que aprendeu a se abrir, um menino querido pelos colegas e um aluno humilde, mas sempre insatisfeito.

Dizem que Maradona não se desgrudava nunca da redonda, mesmo nos treinos sem bola. Do jogador de basquete iugoslavo Drazen Petrovic, seus técnicos diziam que não o tiravam da sala de treinamento nem com um fuzil. Ao garoto Cristiano Ronaldo costumavam encontrar de noite escondido no ginásio do Sporting fazendo embaixadinhas com dois pesos em cada pé.

Mais de uma década depois, o "Wall Street Journal" contabilizou as horas que ele havia jogado em um ano e declarou que Ronaldo era o esportista que mais trabalhara no mundo.

Em 2010, sua obsessão à perfeição foi tema de um comercial. "Não perco em nada", dizia para promover as taxas de juros do Banco Espírito Santo. O comercial abria com Ronaldo lançando um dardo e acertando no centro do alvo. Não era um truque de câmera.

Ao final de um dos jogos da Eurocopa 2012, Bruno Prata, um famoso jornalista português, sugeriu num artigo que Cristiano Ronaldo consultasse um psicólogo. "Quando ele estiver menos obcecado com as vitórias, com os gols e com ele mesmo, tudo será mais fácil", escreveu. Voltou a um ponto comum nas críticas locais ao atacante: sua exagerada obsessão por ganhar.

Alguns dias depois, a seleção nacional perderia as semifinais na disputa de pênaltis contra a Espanha, por 4 a 2. Nessa partida, Ronaldo não chegou sequer a ter a chance de chutar sua cobrança, que teria sido a última de Portugal. Um golpe e tanto para alguém que, aos 21 anos, havia declarado que estava disposto a tudo para ser campeão.

Todos o tomaram como um ato calculado de vaidade: fazer o gol para sair nas fotos que anunciariam a chegada portuguesa à final. O apresentador britânico Piers Morgan disse como provocação que ainda não tinha entendido se Ronaldo era um grande caçador de glórias ou só um desmancha-prazeres supervalorizado. Mas o técnico português, Paulo Bento, declarou que a ordem das cobranças foi uma escolha dele próprio, com antecedência.

Além de ser acusado de obsessão por triunfar, Cristiano Ronaldo era atacado pela imprensa local por nunca jogar bem nas partidas importantes. Diziam que não sabe jogar nas Eurocopas e nos Mundiais, que não sabe trabalhar em equipe, que não aparece quando é mais necessário, que só serve para jogar pelo clube que paga seu salário, que não faz nada pela seleção porque nela não ganha milhões. Os portugueses já acusaram CR7 de tudo, menos de arrogante.

E arrogante não é uma palavra estranha ao vocabulário esportivo português. Assim caracterizaram o marfinense Drogba, quando este gracejou que estava "tremendo de medo", porque o oponente na Liga dos Campeões de seu time da época, o Chelsea, seria o Benfica. Também se falava da arrogância de Hulk, quando era ídolo do Porto. Diziam que não passava a bola e foi acusado de bater num segurança do estádio do Benfica.

FANFARRÃO

Fora de seu país, CR7 granjeou a fama de quem se sente superior aos demais. A imprensa chinesa o chamou de egoísta e arrogante, por fazer cara de tédio nas entrevistas e ser apático nas respostas. Os ingleses o chamam de "Cocky Ronaldo", algo como "fanfarrão". A modelo israelense Bar Refaeli, ex-namorada de Leonardo DiCaprio, tuitou durante um jogo: "A única coisa que penso quando vejo Ronaldo é que ele deveria ser proibido de usar gel no cabelo".

Desde que Cristiano Ronaldo comemorou um gol dançando "Ai, se Eu te Pego", sucesso cantado por Michel Teló, a coreografia virou sinônimo de arrogância.

Veja vídeo

Num jogo do campeonato espanhol contra o modesto Rayo Vallecano, Daniel Alves, jogador do Barcelona e da seleção brasileira, foi repreendido por ter dançado para festejar um gol. O capitão do time, Carles Puyol, o interrompeu, e o então técnico da equipe catalã, Pep Guardiola [hoje no Bayern de Munique], chegou a declarar que aquilo era uma falta de respeito ao adversário: "Não voltarão a fazê-lo. Não é um ato próprio para jogadores do Barcelona". Na Espanha, muitos o criticam porque, quando o Real Madrid está ganhando, CR7 faz passes olhando para o lado oposto e outras pirotecnias que não faria se estivesse empatando.

Muhammad Ali já afirmou que não existe arrogância se você pode sustentá-la. A Ronaldo chamam de arrogante porque ele se crê extraordinário. "Neste momento" -disse ele quando lhe perguntaram há algum tempo quem era o melhor jogador, ele ou Messi- "acredito que sou eu." O Real Madrid havia acabado de ganhar "La Liga". Ele não estava sozinho na crença. Santiago Segurola, jornalista do diário esportivo espanhol "Marca", escreveu durante a Eurocopa que Cristiano o fazia pensar no Maradona da Copa de 1986.

Nessa época, o próprio Maradona declarou ao jornal indiano "Times" que Cristiano e Messi eram os melhores do mundo e que deveriam fazer um busto do português no centro de Lisboa. Uma ideia pouco compatível com o discreto espírito de Portugal, país no qual o maior ídolo do futebol, Eusébio [morto no dia 5 de janeiro deste ano, aos 71], havia sido homenageado com uma prudente estátua na entrada do estádio do Benfica.

Quase nada em Cristiano Ronaldo é discreto. Nadou até a exaustão para conseguir um físico melhor, em nome da técnica. Os músculos fortes o ajudam a manter a velocidade e ampliam sua resistência. Ele exibe seu corpo e, nas férias, parece escolher roupas justas com cores que o destacavam da multidão: rosas, roxas, vermelhas e em tons fosforescentes.

Em um comercial da Nike ele aparece com outros jogadores. Seu papel é o de representar a si mesmo: treina na academia, procura em seu "locker" uma camisa tamanho infantil e entra em campo com pose de modelo -e o umbigo aparente.

VAIDOSO

Cristiano é capaz de fazer graça de sua própria fama de vaidoso. Ela nem sempre foi justificada, como comprova seu melhor amigo, Fábio Ferreira, ex-jogador que foi seu companheiro nos primeiros anos de Sporting e depois virou garçom em Lisboa.

Há uma foto do time de 1998 na qual Ferreira abraça um garoto despenteado e baixinho que franze os lábios e tem os olhos semicerrados. Quase todos são mais altos que ele. Sorriem de boca aberta, inflam o peito enfeitado com o escudo de um leão, ensaiam poses de craque. Todos menos Cristiano, o único daquele pôster que virou uma estrela.

O jogador que é pago para mudar de penteado gosta de manter por perto as pessoas que são duras com ele. "Eu agradeço por cada puxão de orelha que levei", disse na televisão espanhola. "Se não fosse pelos meus primeiros professores, não seria o jogador que sou."

Saber perder é um tema pouco explorado no futebol. O técnico colombiano Francisco Maturana repete que "perder é ganhar um pouco". Seu veterano colega espanhol Luis Aragonés disse certa vez que no futebol "é preciso ganhar, e ganhar, e ganhar; e voltar a ganhar, e ganhar, e ganhar". Guardiola declarou: "O medo de perder é a razão fundamental para competir bem".

A CR7 sempre doeram muito as derrotas. Na fase final de um campeonato juvenil no início dos anos 2000, o Sporting faria uma viagem à Madeira. Ronaldo contava os dias para jogar diante de sua família. Seria sua primeira competição em sua terra. Leu a lista dos convocados para o jogo quatro vezes, mas não encontrou nela seu nome. Começou a chorar. Quando foi reclamar, Aurélio Pereira lhe explicou que era uma punição por uma indisciplina no colégio. O Professor o deixou em Lisboa de castigo.

Nenhum técnico gosta de ver sua equipe perder, mas Pereira preferiu arriscar alguns pontos do que a disciplina de seus jogadores. Nessa ocasião, o menino que recentemente ganhou sua segunda Bola de Ouro lhe respondeu que compreendia. Ronaldo diz hoje que foi uma das lições mais valiosas que já teve.

Suas roupas, suas respostas, seu porte ao correr, os passos que retrocede antes de chutar uma falta, a forma de franzir os lábios em sinal de insatisfação: Cristiano Ronaldo é observado e interpretado em cada gesto.

Em junho de 2012, o jogador quis dar um presente a seu filho, que completava dois anos. Depois de marcar de cabeça o gol que colocou Portugal na semifinal da Eurocopa, saiu correndo até um canto do gramado, cercado pelos companheiros, que riam e o abraçavam. Depois, correu em direção à câmera de TV gritando "para ti, para ti". Logo em seguida, apareceram no Twitter mensagens raivosas de muitos que acreditaram ver em seus lábios um "Messi, Messi", igual ao cântico que lhe dedicam as torcidas adversárias.

Lionel Messi ainda é uma pedra na chuteira de Cristiano Ronaldo. Desde que os torcedores dos times adversários descobriram que ao cantarem esse nome o deixavam mais irritado do que se xingassem sua mãe, o argentino "aparece" em todos os seus jogos.

John Carlin, um jornalista inglês, opina que o Cristiano Ronaldo que disputa o campeonato espanhol é um exemplo de garoto humilde e boa pessoa. Em especial levando em conta os insultos que ele recebe dos alambrados.

Em 2011, perguntaram a Ronaldo por que as torcidas o vaiavam e lhe gritavam "Messi, Messi". "Acho que por ser rico, bonito e um grande jogador as pessoas têm inveja de mim. Não tenho outra explicação." Ele acabava de sair do gramado e tinha três pontos recém-costurados em seu pé. Em um dia ruim, ele disse o que pensava.

Num jogo da Eurocopa, a torcida da Dinamarca entoou o cântico cada vez que ele tocava na bola. Ao final, os jornalistas perguntaram sobre o coro. "Sabem onde estava Messi a essa altura da Copa América? Eliminado, em seu próprio país. Não é pior?", respondeu. Na Colômbia, perguntaram a Messi o que tinha achado do comentário de Ronaldo. "Não tenho nada a dizer sobre ele", entrincheirou-se.

Recentemente, Aurélio Pereira viajou a Madri para visitar o discípulo. O Professor virou amigo da família do jogador e acompanha de perto seus passos, como no início. Ronaldo e Pereira conversaram por horas a fio, o que é comum quando se encontram. Pereira sempre repete um elogio: Cristiano Ronaldo tem uma capacidade extraordinária de escutar.

Entre outros assuntos -ambos se preocupam, por exemplo, com o fato de o Sporting não ganhar o campeonato de Portugal desde 2002-, falaram sobre Messi.

Em 2007, Kaká ganhou o prêmio de melhor do mundo, e Messi ficou em segundo. Ronaldo, em terceiro lugar, ficou frustrado como quando os dardos não atingiam o alvo. No ano seguinte, ele acertou em cheio. Ganhou o prêmio da Fifa e a Bola de Ouro da "France Football" [hoje unificados], deixando Messi, de novo, em segundo. Depois, foram cinco anos afinando a pontaria, até a última segunda-feira.

O Professor defende que o argentino tem um efeito positivo para Ronaldo. "Se não tivesse um jogador com quem competir, podia se acomodar. Hoje se levanta com um objetivo. Messi é seu desafio permanente." O aluno concordou. O mestre Pereira lhe dava assim mais uma lição.

SABRINA DUQUE, 34, jornalista equatorianaresidente em Lisboa, é colaboradora da revista peruana "Etiqueta Negra", que publicou a versão original do texto sobre Cristiano Ronaldo.

CASSIANO ELEK MACHADO, 38, é editor da "Ilustríssima".

MARCELO DALDOCE, 34, é artista plástico.


Endereço da página:

Links no texto: