Folha de S. Paulo


Ruy Castro mede a estatura de Woody Allen

RESUMO Prêmio especial dado ao cineasta Woody Allen na cerimônia do Globo de Ouro, há uma semana, gerou protestos de Mia, sua ex-mulher, e de Ronan Farrow, filho do casal, nas redes sociais. Acusado por ambos de pedofilia e incesto, Allen é notório exemplo de que a arte não deve ser avaliada pela vida de quem a produz.

*

No domingo último, na entrega do prêmio Globo de Ouro a figurões do cinema, em Los Angeles, havia um prêmio especial para Woody Allen. Como sempre, ele não foi recebê-lo pessoalmente. A tarefa coube a Diane Keaton, sua ex-namorada, amiga e atriz. Quem assistia à cerimônia pela TV e fazia comentários pelas redes "sociais" era a ex-mulher de Woody, a também atriz Mia Farrow. Ao ouvir o nome de Woody Allen, ela escreveu: "Hora de pegar um sorvete e mudar de canal para assistir a 'Girls'".

Seu filho com Woody, Ronan, 26 anos, foi mais enfático: "Perdi a homenagem a Woody Allen", escreveu. "Eles colocaram a parte em que uma mulher confirmou publicamente que ele a molestou aos sete anos?".

Reprodução/Twitter/RonanFarrow
Ronan Farrow acusa Woody Allen de pedofilia pelo Twitter
Ronan Farrow acusa Woody Allen de pedofilia pelo Twitter

Os comentários se referem a um escândalo de 1992 envolvendo Woody Allen, Mia Farrow e seus filhos naturais e adotivos -os dois formavam um casal, embora não fossem casados e vivessem em apartamentos separados, em Nova York. Como muitos usuários dessas redes ainda não eram nascidos quando a história aconteceu, é provável que as mensagens tenham caído no vazio. Mas ainda há quem se lembre.

Em janeiro daquele ano, ao visitar o apartamento de Woody na Quinta Avenida com ele ausente, Mia encontrou fotos de sua filha adotiva, a coreana Soon-Yi, nua e em poses sensuais. O choque foi grande -Woody era um pedófilo, seduzira sua filha, 37 anos mais nova do que ele. Foi esta a versão que, pouco depois, em seu apartamento no outro lado do Central Park, Mia apresentou para seus dez filhos -nove adotivos, um deles a pequena Dylan, de 7 anos, e o que tivera com Woody, Ronan (então chamado Satchel), 4. O caso foi para os tribunais, onde aflorou a chocante acusação de que Woody também abusara sexualmente de Dylan.

Pode-se imaginar a repercussão desse julgamento. Woody e Mia já tinham feito 13 filmes juntos, entre os quais três dos maiores da carreira do diretor, como "A Rosa Púrpura do Cairo" (1985), "Hannah e Suas Irmãs" (1986) e "A Era do Rádio" (1987). As plateias tendiam a identificá-lo com seu personagem nas telas -o homem tímido e inseguro, mas decente e digno de proteção. Mia, ex-mulher de Frank Sinatra e do compositor e pianista André Previn, também renascera para o mundo: depois de uma estreia explosiva como protagonista em "O Bebê de Rosemary", de 1968, eclipsara-se e só se provara de novo uma atriz sensível e competente nos filmes de Woody. Era um relacionamento perfeito. Por que aquilo estava acontecendo?

Nos seis meses que durou o julgamento, sobraram versões e contraversões que deixaram todo mundo mal. Mia teria inventado a história de Dylan para se vingar de Woody por ele a ter trocado por Soon-Yi. Woody e Mia estariam juntos apenas formalmente, porque a vida sexual entre ambos acabara desde que ela tivera Satchel em 1987. Mia seria uma neurótica, dada a tentar salvar seus casamentos adotando crianças asiáticas e africanas, física ou mentalmente deficientes -mas como ser uma boa mãe para dez filhos ao mesmo tempo, cada qual falando uma língua? E, quanto a casos com homens maduros, ela própria tinha o que contar: aos 21 anos, em 1966, casara-se com Sinatra, 51. "Algumas gravatas de Frank são mais velhas do que Mia", disse um amigo do cantor.

O casamento durou apenas dois anos, em parte porque Mia nunca quis aprender a cozinhar macarrão. Em 1969, ela tomou André Previn de sua amiga Dory Previn, que tinha o dobro de sua idade. Com Previn, Mia começou seu programa de adoção em massa de crianças do Terceiro Mundo, o que levou alguém a defini-la como "baby-sitter da Unicef".

REPUTAÇÃO

As acusações abalaram também a reputação de Woody. Ao rever seus filmes, as pessoas se deram conta de que, em vários deles, algum de seus personagens faz sexo com a enteada, a cunhada, a mulher do amigo, a sogra e até com uma ovelha (Gene Wilder, em "Tudo o que Você sempre Quis Saber sobre Sexo e Tinha Medo de Perguntar", 1972). E, claro, havia "Manhattan" (1979), que trata de seu romance com a adolescente Tracy, vivida por Mariel Hemingway. A própria Tracy seria baseada em Stacey -atenção para a sonoridade- Nelkin, uma menina de 17 anos que ele teria namorado em 1976 e que faz uma ponta em "Annie Hall" ("Noivo Neurótico, Noiva Nervosa", 1977).

Veja vídeo

Mas, se Allen podia ser um pedófilo e incestuoso -como Mia o acusou no tribunal-, não seria com Soon-Yi, porque ela tinha 18 anos em 1992 e não era sua filha, nem adotiva. Era uma moça feita e ambiciosa, queria ser atriz ou modelo. Woody tinha 56 anos, mas essa diferença era pouco maior que a de Sinatra para Mia em 1966. Quanto à outra história, bem mais grave, Mia nunca conseguiu provar que Woody tivesse molestado Dylan.

Quando isso estava acontecendo, há 22 anos, eu próprio comecei a achar que era o fim de Woody Allen. Seus filmes tinham prestígio, mas não eram sucessos comerciais. As plateias não o perdoariam e seus financiadores iriam abandoná-lo. Havia um precedente triste: o caso de "Fatty" Arbuckle (1887-1933), um dos grandes da comédia muda, mestre de Buster Keaton e amado pelo público. Uma garota de programa morreu numa orgia promovida por ele num hotel em San Francisco, em 1921. Depois de três julgamentos, "Fatty" saiu inocentado e o tribunal lhe pediu perdão. Mas o público nunca mais quis saber dele.

O caso de "Fatty" Arbuckle foi uma exceção. Charles Chaplin, Carlitos (1889-1977), ainda mais querido, foi a julgamento em 1944 nos EUA por tráfico de brancas e saiu quase sem arranhões. Entre muitos outros, o poeta François Villon (1431-63) conheceu longamente a prisão por assassinato; o Marquês de Sade (1740-1814), por libertinagem; o também poeta Paul Verlaine (1844-96), por tentar matar seu namorado Rimbaud; o teatrólogo e "wit" Oscar Wilde (1854-1900), por homossexualismo; o contista O. Henry (1862-1910), por latrocínio; e o romancista e teatrólogo Jean Genet (1910-86), por renitente vadiagem. Alguns morreram em função da prisão, outros a superaram em vida mesmo, e todos foram reabilitados pela posteridade. O próprio Sinatra levou a vida sob suspeita de ligações com a máfia, mas qual de seus fãs se importava com isto?

O britânico P.G. Wodehouse (1881-1975), um dos humoristas mais adoráveis do século 20, colaborou por ingenuidade com os nazistas na ocupação de Paris na Segunda Guerra e foi preso pelos aliados. Mas acabou perdoado -ninguém podia passar sem seu delicioso personagem, o mordomo Jeeves. O poeta americano Ezra Pound (1885-1972), declaradamente torcedor do fascismo, também foi preso e condenado por traição no pós-Guerra, mas fosse você perguntar a Augusto e Haroldo de Campos e a Décio Pignatari -e à maioria dos grandes poetas internacionais- se isto lhes fazia diferença.

E o racista e antissemita Richard Wagner (1813-83), cuja música embalava Hitler e pode ter sido tocada em campos de concentração na Alemanha? Nunca foi tão admirado quanto hoje. O francês Louis-Ferdinand Céline (1894-1961) era igualmente antissemita, o que nunca turvou a apreciação mundial por seu romance "Viagem ao Fim da Noite" (1932). E ninguém desconhece a história do cineasta Elia Kazan (1909-2003), que entregou nomes no macarthismo e carregou para sempre a pecha de dedo-duro -o que não o impediu de continuar trabalhando e fazer grandes filmes, como "Sindicato de Ladrões" (1954), "Vidas Amargas" (1955) e "Terra do Sonho Distante" (1963).

Esses nomes são sempre citados quando se discute se a estatura da obra de arte deve ser medida pela largura ou fundura do artista. A resposta, pelo visto, é não -ou não necessariamente-, mesmo quando se refere ao pensamento puro. Vide Martin Heidegger (1889-1976), já estabelecido como o filósofo do século quando se descobriu que fora também nazista.

Woody Allen, embora um caminhão lhe tenha passado por cima, não foi destruído pelo escândalo. Levantou-se, voltou a produzir e já fez 22 filmes desde então. Todos continuam a querê-lo -inclusive o Rio, que lhe acena com milhões para que venha filmar aqui. Na vida real, ele também vai bem: casou-se em 1997 com Soon-Yi e estão juntos até hoje, com duas filhas adotivas.

Mia Farrow não se conforma. Há meses, deixou escapar numa entrevista que Ronan "poderia ser filho de Sinatra", não de Woody. E, de fato, pelas fotos do garoto, isso parece uma certeza -os mesmos olhos azuis, a boca insolente, o rosto desafiador. Para Mia, que melhor vingança contra Woody do que, tantos anos depois, insinuar que o corneou?

Mia só se esquece de que, em 1986, quando isso teria acontecido, ela estava com 41 anos. E Sinatra, com 71. Não apenas Soon-Yi via nos coroas o ó do borogodó.

RUY CASTRO, 65, jornalista e escritor, é colunista da Folha e autor de "Carmen - Uma Biografia" (Companhia das Letras) e de "Letra e Música" (Cosac Naify), entre outros.


Endereço da página:

Links no texto: