Folha de S. Paulo


O paraíso dos terremotos

O Conselho para Prevenção de Desastres do Japão divulgou no final de dezembro a previsão de que, nos próximos 30 anos, a área metropolitana de Tóquio será atingida por um terremoto de nível 7 -o mais alto na escala japonesa. Preveem-se dezenas de milhares de mortos e centenas de bilhões de dólares em prejuízos.

Tóquio já sofreu terremotos devastadores. Em 1923, a destruição foi tão completa que se cogitou mudar a capital para outra localidade. Quem mora aqui tenta esquecer o tema, mas é lembrado quando desperta de madrugada com a cama vibrando forte, ou quando o café espirra da xícara porque a terra tremeu no meio da tarde.

O governo, porém, já iniciou planos para mitigar os efeitos desse mega abalo sísmico que se prevê. Entre outras medidas, tendo em vista os Jogos Olímpicos de 2020, decidiu elevar em dois metros a construção da Vila Olímpica, às margens da Baía de Tóquio, para protegê-la de um eventual tsunami.

Meu empregador segue a recomendação do Ministério de Prevenção de Acidentes e fornece a cada funcionário um "kit terremoto", que inclui capacete, apito, lanterna e rádio autocarregáveis, garrafas de água, latas de atum, isqueiro, vela e material de primeiros socorros.

Tenho um deles no escritório e outro em casa e concluo que Tóquio é mesmo o melhor lugar do planeta para se enfrentar um grande terremoto, hoje ou daqui a 30 anos.

O ROUXINOL

Na manhã do dia em que completou 80 anos, em 23 de dezembro, o imperador Akihito apareceu em público três vezes. Do balcão do Palácio Imperial em Tóquio, acenou para as milhares de pessoas que foram homenageá-lo por seu aniversário.

Na tarde, foi a vez de receber os cumprimentos do corpo diplomático. Tóquio abriga grande número de embaixadas estrangeiras. O aniversário do imperador é uma das poucas oportunidades para os chefes de missão visitarem áreas reservadas do Palácio Imperial, uma joia arquitetônica inacessível à visitação pública. Ninguém quer perder o convite.

A ocasião era festiva, mas a atmosfera era solene. Contudo, no início da cerimônia, prestes a começar seu discurso de cumprimentos ao imperador, o decano do corpo diplomático, o embaixador de San Marino, foi subitamente interrompido pelo toque de um telefone celular.

Enquanto o telefone soava, os diplomatas constrangiam-se. O único a manter perfeitamente a fleuma foi o aniversariante, que se comportou como se aquele trinado digital que roubava o discurso do embaixador viesse de um dos rouxinóis que habitam os jardins de seu palácio.

"KAWAII"

Nas ruas de Tóquio, não se fala com estranhos. Contato visual com desconhecidos é considerado rude, e as pessoas caminham dentro de um espaço vital de privacidade, que não se viola.
Inexiste interação. Ninguém jamais puxará conversa com você. A menos que você tenha um cachorro. Aí, tudo muda. Sei disso por experiência própria.

Na região de Omotesando, que concentra o comércio do bairro onde eu moro, vendedoras vêm à calçada para acariciar os meus cães. Chamam-nos de "kawaii" ("gracinha").

Enquanto espero o sinal de pedestres, uma senhora pergunta que tipo de ração dou aos cachorros. Outra, depois de beijá-los, me diz, com lágrimas nos olhos, que também tinha um animalzinho, "um gato siamês lindo, que morreu aos 16 anos de idade".

CARINHO ARTIFICIAL

É impossível transitar por Tóquio sem passar por máquinas de venda automática de bebidas. Parece não haver rua em que elas não estejam instaladas. Sua operação é simples: colocam-se as moedas e seleciona-se a bebida. Tudo automático e impessoal.

Os fabricantes do Georgia, uma das marcas mais populares de café gelado -sim, os japoneses adoram o café gelado-, resolveram humanizar essa experiência.

Como os compradores tendem a utilizar as mesmas máquinas, criaram um aplicativo para smartphone que permite ao cliente escolher uma gerente virtual que o atenda em sua máquina de preferência.

Quando se aproxima para comprar sua bebida, a "gerente" lhe manda mensagem de boas-vindas. Ela também recebe comentários e faz sugestões. A ideia, segundo os fabricantes, é desenvolver uma relação "humana" com a máquina, como se o café fosse comprado em um bar, das mãos de uma pessoa real.

ALEXANDRE VIDAL PORTO, 48, é colunista da Folha, diplomata e autor do romance "Matias na Cidade" (Record).


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