Folha de S. Paulo


Elizabeth Bishop entre índios

RESUMO Acompanhando em 1958 visita do escritor britânico Aldous Huxley (1894-1963), Elizabeth Bishop (1911-79) foi a Brasília, então em construção, e conheceu índios em MT. O relato "Uma Nova Capital, Aldous Huxley e Alguns Índios", do qual se extraiu este trecho, está no volume "Prosa", que a Companhia das Letras neste mês.

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Às oito decolou nossa aeronave, um DC-3 da Aeronáutica brasileira. Era um avião agradável, se a palavra pode ser usada para qualificar um avião; novo, sem os estofamentos e cortinas habituais, porém com bancos de pelúcia azul e encostos reclináveis. Tinha capacidade para 24 passageiros e, embora alguns homens desconhecidos tivessem se juntado a nosso grupo, mesmo assim sobrava tanto espaço que podíamos baixar o encosto do banco à frente para nele apoiarmos os pés, como fazíamos nos trens quando crianças.

Leia texto em que o crítico e tradutor Benjamin Moser comenta livro que Elizabeth Bishop escreveu sobre o Brasil

Lá embaixo, o continente descortinava-se em direção ao oeste, um mapa pardacento, em baixo relevo e tamanho natural. Ao longo das rugas do terreno há árvores; os riachos menores são de um tom opaco de verde-oliva. De vez em quando sobrevoamos um trecho mais elevado, com rochas desmoronadas que lembram fortalezas; talvez tenham sido essas formações, observou Callado,1 que deram origem à lenda da cidade perdida que o coronel Fawcett buscava; aquilo era o território de Fawcett.

Depois de algum tempo vimos um rio grande e azul, o Araguaia, correndo para o norte, como fazem todos os rios, para juntar-se ao Amazonas, a mais de 1.500 quilômetros dali. Callado, que estava com um traje de dril cáqui, caminhou pelo corredor dando a cada um de nós um comprimido antimalárico, tirado de um frasco enorme: "É mais para efeito psicológico", ele explicou, "se bem que pode ser que a gente encontre mosquitos transmissores de malária".

Deborah Paiva

Até ficar quente demais, os homens da Aeronáutica permaneceram com suas elegantes túnicas de lã azul-cinzenta, com bibicos da mesma cor. Eram simpáticos e hospitaleiros, e começaram a nos servir comida de imediato: sanduíches, depois jujubas e, por fim, café adoçado servido em copinhos de papel, ao menos três vezes, mas isso é "de rigueur" em qualquer avião brasileiro, e por vezes até mesmo nos ônibus. Depois o avião ficou cheirando a laranja, quando um aviador simpático descascou uma bandeja inteira de laranjas para nós.

"LÁ-DI"

Começamos a ler trechos dos vários livros que havíamos trazido, trocando de exemplares entre nós; mudávamos de lugar para conversar, como quem troca de parceiros numa dança. A jovem intérprete comeu uma barra de chocolate grande e dedicou-se à leitura de uma revista chamada Lady (que se pronuncia "Lá-di").

Ela entregou a revista a Huxley. Havia uma fotografia dele de página inteira, numa entrevista coletiva recente no Rio; na foto, Huxley protegia os olhos e tinha uma expressão muito triste. A mulher dele ficou indignada com a expressão: "Ah, por que será que eles sempre o fotografam com essa cara! Ele não é assim, não, absolutamente!". O que mais me incomodou foi a legenda em letras garrafais: DIZ O VELHO HUXLEY e alguma coisa a respeito da paz mundial. Huxley não sabe português, mas sabe espanhol, e eu temia que ele reconhecesse a palavra "velho", que é parecida nos dois idiomas.

Fiquei a debater comigo mesma se seria melhor explicar ou não dizer nada, e resolvi ficar calada. Afinal, naquele contexto a palavra parecia ter uma conotação afetuosa, ou então tinha apenas o sentido de que ele era famoso há muitos anos. (Nas últimas duas semanas, Huxley estava fazendo sucesso no Rio; nas livrarias havia muitos livros seus, em cinco idiomas, e a imprensa só o tratava com elogios rasgados e grande respeito.)

Um dos homens que se juntaram a nosso grupo era um tipo exuberante; não conseguia ficar parado em seu lugar, porém andava de um lado para o outro pelo corredor, com um chapéu de gaúcho, de couro, amarrado embaixo do queixo. O outro era um velho miúdo, com orelhas grandes e olhar melancólico. Fiquei sabendo que ele era o homem que deveria ter me recebido noaeroporto dois dias antes; naquele exato momento, ele confessou, era para estar recebendo um grupo que chegava do Rio, mas em cima da hora resolvera vir conosco.

Levava uma prancheta em que a primeira folha ostentava o nome "Aldous Huxley" em letras maiúsculas. Apresentou a prancheta a Huxley e lhe pediu que escrevesse uma mensagem -suas impressões de Brasília, ou qualquer outra coisa- para uma coleção de mensagens de celebridades que vinham conhecer Brasília, que ele estava organizando e que seria guardada num museu a ser construído na cidade. Huxley pegou a caneta e começou a trabalhar e, depois de rasgar duas ou três folhas de papel, produziu algumas frases sobre a experiência interessante de voar do passado (as cidades coloniais de Minas) para o futuro, a novíssima cidade de Brasília.

Divulgação
A poeta Elizabeth Bishop com índia durante visita à Amazônia
A poeta Elizabeth Bishop com índia durante visita à Amazônia

Dois dias depois, esse texto foi publicado nos jornais do Rio como sendo um telegrama que Huxley enviara ao presidente Kubitschek, dando uma impressão um tanto estranha do estilo telegráfico de Huxley.

COUVE-FLOR

Agora estávamos voando mais para o norte do que para o oeste, e a paisagem havia mudado gradualmente. Sobrevoamos o rio das Mortes, e depois o rio das Almas. A algumas áreas Callado dava o nome de "matas de couve-flor".

De fato, vistas de cima, as árvores da floresta lembram couve-flor, e mais ainda brócolis, se bem que nessa região a mata não seja tão fechada nem tenha um tom de verde tão vivo quanto na Amazônia. Por fim, alguém exclamou: "Olha! Uma aldeia indígena!".

E era mesmo: numa clareira junto a um riacho lamacento, lá estavam cinco telhados de folhas de palmeira trançadas e dois ou três botes pequeninos parados na margem. Logo adiante havia uma pista de pouso, uma fita de vermelho desbotado de três ou quatro centímetros largada sobre a selva.

Era o posto de Xavantina, uma referência aos índios xavantes, outrora guerreiros ferozes, conhecidos pelas fotos em que aparecem posando numa perna só, com os cabelos em mechas compridas. Nosso destino, porém, era mais adiante: os iaualapitis do posto Capitão Vasconcelos, à margem de um pequeno afluente do rio Xingu.

Callado, que era responsável por esse trecho da viagem de Huxley, começou a ficar um pouco nervoso. Explicou-nos que não deveríamos ter expectativas excessivas em relação aos índios que íamos conhecer; afinal, eles estão num posto, são misturados, por vezes cinco tribos diferentes estão lá ao mesmo tempo, e os que moram no posto em caráter permanente "não são interessantes", segundo ele, como o são os que vivem em suas aldeias, inteiramente isolados.

Alguns deles por vezes usam uma camisa ou uma calça (mas para eles o único motivo compreensível para usar roupas é proteger-se dos mosquitos), e um dos homens fora levado ao Rio uma vez, para ver o Carnaval.

Por fim apareceu outra pista de pouso, e outra clareira à margem de mais um riacho, desta vez de águas límpidas, e os telhados eram ovais. Voamos em círculos sobre uma área com buritis e um pé alto de ipê,2 totalmente florido, sem uma única folha -é uma das mais belas árvores florescentes do Brasil.

Enquanto o avião descia, víamos os índios saindo das casas e correndo por uma estrada rústica em nossa direção, e quando desembarcamos já havia cinco ou seis homens a nossa espera, seguidos por mulheres com crianças de colo. Estavam muito satisfeitos por nos ver, sorrindo efusivamente, pegando com avidez nossas mãos, a esquerda ou a direita, para apertá-las; dois ou três dos homens disseram "bom dia, bom dia", em português. Mais índios chegavam o tempo todo e vinham apertar nossas mãos, com força ou de leve, sorrindo, com expressões deliciosamente francas e alegres, exibindo os dentes quadrados e espaçados.

IAUALAPITIS

Os iaualapitis são de baixa estatura, porém bem proporcionados, os homens quase gorduchos, com músculos lisos, ombros largos e peitos lisos e largos. Andam inteiramente nus, usando apenas colares de conchas e cinturões de contas e conchas; as mulheres usam um "cache-sexe" simbólico feito com uma folha de palmeira dobrada, formando um pequeno retângulo com cerca de quatro centímetros de comprimento, sustentado por um fio fino, feito com a mesma palmeira.

Esta peça de vestuário quase invisível é importante; por vezes elas param e viram-se de costas para ajustar o fio. O cabelo é muito abundante e surpreendentemente fino e lustroso; as mulheres usam-no comprido, com uma franja; os homens adotam um corte em forma de cuia.

Seus corpos quase não têm pelos; os fios ocasionais que nascem são arrancados. Em sua maioria, os homens tingem mechas de cabelo ou toda a cabeleira com uma tinta vermelha e grudenta feita com urucum, o único corante, e a única cor, que eles possuem; alguns polvilhavam com urucum as orelhas, o pescoço e o peito, de um vermelho bem vivo. A pele é fina e macia, um tom moreno escuro.

Algumas das crianças, meninas, tinham duas linhas negras paralelas traçadas nas pernas, do lado de fora, e a testa de uma delas estava pintada de vermelho vivo, dando a impressão de que ela sofria de uma dor de cabeça terrível. Tanto os homens quanto as mulheres levam os bebês no colo, e, além de colares de conchas, muitos usam também contas de vidro azul e branco. Um dos bebês, uma menininha de cerca de dez meses, estava encantadora, vestida apenas com um colar de pérolas falsas de seis voltas.

Os índios são limpos e cheiram bem (eles tomam banho de rio várias vezes por dia) -porém as crianças têm o rosto imundo, sujo de lama. Apesar disso, os homens da Aeronáutica pegaram as crianças (inclusive a menina do colar de pérolas) do colo dos pais e ficaram a carregá-las. Havia uma atmosfera simpática de reencontro de velhos conhecidos.3

Callado e os pilotos conheciam a maioria dos homens; alguns deles falavam um pouco de português, e uma conversa simples e repetitiva se manteve incessantemente durante toda a nossa visita. Huxley foi apresentado como "um grande capitão", 4 e deixou que o apalpassem com admiração.

Havia muita poeira, e o calor era forte; seguimos pela estrada e chegamos a uma área ampla, com chão de terra batida, onde havia quatro casas. Uma enorme porca preta, com seus filhotes, saiu correndo quando nos viu; havia também muitos cachorros magros. Mais índios vinham nos conhecer, olhar para nós e segurar nossas mãos com suas mãos duras e quentes, às vezes nos apalpando discretamente para saber se éramos homens ou mulheres, já que as mulheres do grupo estavam de calça comprida.

Todos os índios estavam nus em pelo, com exceção de um velho com uma camisa do Exército e duas moças com vestidos de algodão estampados de florzinhas vermelhas e brancas. Uma delas, de catorze ou quinze anos, estava já no final da gravidez; a outra, mais velha, era anã ou corcunda, uma criaturinha estranha e melancólica que víamos a toda hora andando de um lado para o outro durante nossa visita, como se trabalhasse mais do que os outros, ou como se quisesse dar a impressão de que era tão ativa quanto qualquer um.

ESPANTO

De repente apareceu um homem branco, de meia-idade, magro, com uma barba de uma semana no rosto claro, trajando calça e camisa, porém descalço. Era o responsável pelo posto Capitão Vasconcelos, Cláudio Villas Bôas, um dos três irmãos que trabalham há muitos anos para o Serviço de Proteção ao Índio. Como o rádio estava quebrado, ele só ficou sabendo de nossa vinda quando ouviu o motor do avião, mas não manifestou o menor espanto até o momento em que viu Huxley.

Foram-lhe apresentados Huxley e Laura. Em português, com uma voz fraca, Villas Bôas exclamou: "Mas é o Huxley? 'Contraponto'?".5 E por um momento pareceu prestes a desmaiar.

Segurou a mão de Huxley e ficou a falar com ele em português, com os olhos cheios de lágrimas. Nesse momento outro homem branco, vestido e descalço, apareceu, saído do nada, um rapaz alto, bonito, com cara de bebê e uma espessa barba negra. Também ele exclamou, só que com um sotaque de inglês de classe alta: "Huxley! Por essa eu não esperava!".

Era um aluno de pós-graduação de Cambridge, historiador, que havia chegado ao posto um mês antes. Estava preparando uma tese sobre os efeitos do contato entre duas culturas diferentes, e também escrevendo um livro. "Ou melhor", disse ele, "eu tenho mais é que escrever esse livro, porque ele já está vendido".

Seguindo Villas Bôas, todos nós penetramos no interior escuro de uma das casas; ela estava ligada a outra menor, com paredes que não chegavam ao teto e uma mesa grande; e uma terceira cabana conectada a ela fazia as vezes de cozinha. Huxley subiu numa das redes e deitou-se (parecendo muito bem instalado); Villas Bôas ficou de cócoras a seu lado, à maneira dos índios, e, com duas ou três pessoas atuando como intérpretes, começou a falar com Huxley com uma voz enferrujada e nervosa, como se há anos aguardasse uma oportunidade de falar com ele.

Nós nos reunimos em torno deles para escutar, e foi uma cena tensa e comovente: a grande cabana escura, o grupo heterogêneo de brancos vestidos cada um a seu modo, o círculo de índios nus e sorridentes, e Huxley, balançando-se de leve, as pernas compridas tocando o chão, passivo e atento.

Villas Bôas disse-lhe que tinha lido todos os seus livros já traduzidos para o português, falou da importância que sua obra tivera para ele e passou a discorrer sobre os livros do avô de Huxley.6

Então falou sobre os anos em que vinha trabalhando no Serviço de Proteção ao Índio, como é difícil ajudar os indígenas, uma batalha perdida contra a doença e a corrupção; mesmo com a ajuda dos médicos do Exército, ele vive com medo de infecções trazidas por forasteiros, pois basta uma pessoa com sarampo, por exemplo, para dizimar várias aldeias.

Os índios não são proprietários de terra alguma; não há reservas onde eles possam se refugiar se as terras em que eles vivem forem vendidas. Embora isso provavelmente não vá acontecer tão cedo, o fato é que a terra está sujeita à especulação, e a criação de Brasília fez com que essa possibilidade ficasse mil quilômetros mais próxima. Em toda a região do Xingu, calcula Villas Bôas, só devem restar agora cerca de 3.500 índios.

POLAROID

Laura Huxley, que havia saído da casa, estava aproveitando sua Polaroid; aqueles índios sabiam muito bem o que era uma câmara fotográfica e gostavam de posar, enfileirados, um com o braço no pescoço do outro. Os que estavam do lado de dentro se reuniam em torno de nós, não exatamente pedindo, mas certamente desejando os presentes que sabiam que havíamos trazido, e um pouco constrangidos distribuímos nossos míseros cigarros, fósforos e dropes Salva-Vidas.

Uma mulher a toda hora me beliscava de leve, pedindo: "Caramelo? Chocolate? Caramelo?",7 e lamentei não saber que esses doces eram os prediletos.

As redes estavam se enchendo; o homem com o livro "Platão" estava reclinado numa delas, um dos pilotos brincava com um bebê em outra, e o homem do chapéu de gaúcho ocupava uma terceira rede com outro bebê, que agora estava usando o chapéu. Também eu me deitei numa rede e olhei para cima.

Os telhados altos são muito bem-feitos, com folhas de palmeira dobradas sobre galhos horizontais, formando camadas superpostas, e a cúpula extensa se sustenta no alto com uma armação de galhos que não foram descascados. Ali havia pombos, que arrulhavam, e um casal de periquitos.

Uma espetacular arara azul e amarela, empoleirada na parede da sala de jantar, encarava-nos e falava sem parar em nu-aruaque, imagino -o grupo linguístico a que pertencem os iaualapitis. Alguns mutuns -uma espécie de peru, negro e reluzente, com uma crista que parece um pente com bolas nas pontas e manchas verdes dos dois lados da cabecinha elegante- andavam por entre nossas pernas, a cacarejar.

A sombra, as vozes contidas, as carícias e os sorrisos e as redes a balançar-se, tudo inspirava tranquilidade e devaneio, uma sensação terra a terra, até mesmo nostálgica, de estar de novo no chão depois de três horas de voo.

Ouvi um índio fazendo perguntas ao aviador na rede ao lado da minha. Ele queria saber o nome de Huxley, qual das mulheres era dele e quantos filhos eles tinham.

O aviador respondeu às perguntas; o índio ficou examinando Huxley, a sorrir, repetiu todas as perguntas e recebeu as mesmas respostas. (As conversas com os índios, explicaram-me, têm o andamento de uma geleira. Uma narrativa simples pode se prolongar por horas, até mesmo por dias.) Como sabe todo aquele que já viu fotos de Huxley na capa de seus livros, ele é um homem muito bonito, aristocrático, mas a opinião final do índio, expressa, com muito tato, em voz baixa, foi: "Feio feio". E naquelas circunstâncias Huxley não parecia feio, e sim muito alto, branco, refinado e deslocado.

Depois de algum tempo saímos e fomos até o rio, onde alguns dos nossos foram nadar, e os índios, sociáveis, caíram n'água também. Normalmente as aldeias ficam a uma distância de mais de um quilômetro dos rios, para fugir dos mosquitos, e a população inteira atravessa a floresta, enfileirada, todas as manhãs, ou de manhã e à tarde, para tomar banho de rio.

Um índio jovem era visitante da tribo dos caiapós, que está em contato com os brancos há apenas dois anos. (Ainda estão sendo contatadas tribos novas, enquanto outras já são conhecidas há dois séculos.) O visitante usava calça e camisa, cabelo longo escorrido nas costas e amarrado com uma fita branca, e no lábio inferior uma placa oval de madeira, com dez centímetros de comprimento, tingida de vermelho do lado de baixo.

Era um rapaz alegre, conversador ("Simpático, mas meio bobo", Callado observou); quando lhe pediram que posasse para uma foto, teve a delicadeza de despir-se. Quando veio nadar conosco uma espécie de nado de peito, jogava água dentro da boca com a placa de madeira, bebendo como se fosse um pato. O rapaz inglês chamava-o de "Ronny", um nome relativamente parecido com seu nome indígena cheio de vogais.

Como estávamos no final da estação da seca, a água do riacho batia apenas na cintura, mas o fundo estava limpo e arenoso, e havia ondulações verdejantes no terreno, trepadeiras e touças de palmeiras delicadas; lembrava as xilogravuras nos livros antigos sobre explorações. O barco de "Ronny" estava na margem, cheio de maços de folhas de palmeiras que ele levaria para sua aldeia.

A construção do barco era simples: um tronco de árvore é cortado ao longo do comprimento e escavado com cunhas; a casca da árvore é então rasgada com gravetos, as pontas dobradas para cima, deixa-se a madeira secando e pronto, sem muito trabalho tem-se uma ótima canoa leve.

Depois fomos para a margem, tirando mais fotos. Os índios adoraram as fotos da Polaroid (quem vai à floresta deve sempre levar uma câmara Polaroid e bastante filme) e por um triz não as rasgavam para ver logo como tinham saído; alguém surrupiou com muito jeito do bolso de Huxley algumas fotos que não ficaram boas, guardadas ali por Laura.

Uma nuvem de borboletas pierídeas de um amarelo claro pousou, trêmula, na lama úmida à beira-rio, como se fosse o início de uma regata; entre elas havia alguns exemplares magníficos de uma espécie que eu não conhecia, que quando fechava as asas ficava idêntica a uma folha prateada seca e, quando as abria, eram duas faixas de veludo de um tom vivo de vermelho rosado.

Huxley ficou entusiasmado com essas borboletas, abaixando-se lá do alto para examiná-las de perto com sua lupa.

Então fomos chamados para o almoço: as salsichas que havíamos trazido, uma panela de feijão-mulatinho e duas travessas de arroz mal cozido. (A comida habitual é mandioca; o arroz fora um presente recebido pouco antes.) "Ronny" vestiu as calças e ajudou a nos servir, enchendo de água os canecos de metal, manejando a concha cheia de feijão aguado, enquanto o disco de madeira no lábio subia e descia de modo simpático.

Os índios impediram que a arara azul e amarela pulasse sobre a mesa e ficaram bem perto de nós, observando cada bocado e sorrindo enfaticamente cada vez que alguém olhava para eles. Eu estava usando brincos de ouro pequenos, e de vez em quando alguém beliscava de leve o lóbulo de minha orelha. Depois do arroz com feijão serviram mais cafezinhos; acendemos cigarros para os índios, que cuidadosamente acenderam cigarros para nós, e uma moleza tomou conta de todos.

Notas:
1. O jornalista e escritor Antonio Callado (1917-97), autor de "Quarup" (1967), membro da comitiva que acompanhava Aldous Huxley (Nota da Redação).
2. Bishop escreve "îpé". (N.T.)
3. No original, "Old-Home-Week atmosphere", referência a uma tradição da Nova Inglaterra, em que antigos moradores de uma cidadezinha retornam a ela por uma semana para reencontrar amigos de infância. (N.T.)
4. Em português no original. (N.T.)
5. O título do livro está em português no original. (N.T.)
6. Thomas Henry Huxley (1825-95), biólogo, grande defensor da teoria da evolução de Charles Darwin. (N.T.)
7. Em português no original. (N.T.)

ELIZABETH BISHOP, (1911-79), poeta americana, reconhecida com prêmios como o Pulitzer e o National Book Award, viveu no Brasil entre as décadas de 1950 e 1970.

PAULO HENRIQUES BRITTO, 62, poeta, ensaísta e professor de tradução, criação literária e literatura brasileira na PUC-Rio, é um dos principais tradutores da língua inglesa no país.

DEBORAH PAIVA, é artista plástica.


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