Folha de S. Paulo


A "demoiselle" e os dentes

SOBRE O TEXTO O trecho aqui publicado foi extraído de "Locus Solus", principal romance de Raymond Roussel (1877-1933). A tradução, que teve apoio do Centre National du Livre (Paris) e do Collège International des Traducteurs Littéraires (Arles), será lançada no começo de novembro, ao lado de "Como Escrevi Alguns de Meus Livros" (trad. Fabiano Barboza Viana), pela Cultura & Barbárie. Serão os primeiros livros do autor francês a sair no Brasil.

À medida que subíamos, a vegetação se tornava mais rara. Logo o solo acabou de se desnudar completamente e, no final do trajeto, avistamos uma grande esplanada inteiramente descoberta.

Demos alguns passos em direção a um ponto onde se erguia uma espécie de instrumento de pavimentação, lembrando por sua estrutura as "demoiselles" -ou maços de calceteiro- empregados no nivelamento das ruas.

De aparência leve, ainda que inteiramente metálica, a "demoiselle" estava pendurada em um pequeno aeróstato amarelo claro que, por sua parte inferior, alargada circularmente, fazia pensar na silhueta de um balão.

Embaixo, o chão estava guarnecido da maneira mais estranha.

Numa grande extensão, dentes humanos se espalhavam por todos os lados, oferecendo uma grande variedade de formas e cores. Alguns, de uma brancura luminosa, contrastavam com incisivos de fumantes que forneciam a gama inteira dos castanhos e dos marrons. Todos os amarelos figuravam no estoque bizarro, desde os mais vaporosos tons palha até as piores nuances fulvas. Dentes azuis, claros ou escuros, traziam seu contingente a essa rica policromia, completada por um sem número de dentes pretos e pelos vermelhos pálidos ou berrantes de muitas raízes sanguinolentas.

Os contornos e as proporções diferiam ao infinito --molares imensos e caninos monstruosos ao lado de dentes de leite quase imperceptíveis. Numerosos reflexos metálicos brilhavam aqui e ali, provenientes de chumbagens ou aurificações.

No lugar ocupado atualmente pelo maço, os dentes, estreitamente agrupados, engendravam, pela simples alternância de suas tonalidades, um verdadeiro quadro ainda inacabado. O conjunto evocava um retre cochilando numa cripta sombria, molemente jogado ao lado de um lago subterrâneo. Uma tênue fumaça, engendrada pelo cérebro do dorminhoco, mostrava, à maneira de um sonho, onze jovens curvados sob o império do terror inspirado por uma bola aérea quase diáfana, que, parecendo servir de meta ao voo dominador de uma branca pomba, marcava no chão uma sombra leve envolvendo um pássaro morto. Um velho livro fechado jazia ao lado do retre, fracamente iluminado por uma tocha enfiada perpendicularmente no chão da cripta.

Reprodução

O amarelo e o castanho imperavam nesse singular mosaico dental. Os outros tons, mais raros, lançavam notas vivas e atraentes. A pomba, feita de soberbos dentes brancos, tinha uma pose de rápido e gracioso elã; participando dos apetrechos do retre, raízes habilmente agenciadas compunham uma pluma vermelha ornando um chapéu escuro caído perto do livro e um grande manto púrpura preso por uma fivela de cobre formada por engenhosos ajuntamentos de aurificações; um complexo amálgama de dentes azuis criava uma calça azulada, enfiada em largas botas feitas de dentes pretos; as solas, bem visíveis, compreendiam um agregado de dentes cor de avelã, entre os quais numerosas chumbagens figuravam as tachas regularmente espaçadas.

Era sobre a bota esquerda que a "demoiselle" estava parada agora.

Fora do quadro, os dentes jaziam por todos os lados na mais completa incoerência, mais ou menos espalhados sem nenhum resultado pictórico. Em volta do limite fictício marcado em círculo pelos dentes mais distantes da região central, estendia-se uma zona vazia, ela própria cercada por uma fina corda fixada de longe em longe na ponta de pequenas estacas de alguns centímetros. Estávamos todos posicionados diante dessa barreira poligonal.

De repente, o maço se ergueu sozinho no ar e, empurrado por um sopro modesto, parou, não longe de nós, após uma direta e lenta excursão de quinze a vinte pés, sobre o dente de um fumante escurecido pelo tabaco.

Canterel, chamando-nos com um sinal, passou por cima da corda, transpôs o limite deserto e se aproximou do instrumento aéreo. Todos o seguimos, tomando todo o cuidado para não deslocar os dentes esparsos, cuja aparente desordem era sem dúvida o resultado laborioso de estudos aprofundados.

RAYMOND ROUSSEL foi poeta, romancista e dramaturgo francês (1877-1933), autor de "Locus Solus" (Cultura & Barbárie).

FERNANDO SCHEIBE, 39, doutor em teoria literária, traduziu "O Erotismo" (Autêntica, 2013), de Georges Bataille, entre outros

PAULO MONTEIRO, 52, é artista plástico.


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