Folha de S. Paulo


Aqui não existe almoço grátis

O ano era 1985, tínhamos recebido o convite para participar da mostra competitiva do Festival de Cannes com meu filme "O Beijo da Mulher Aranha". Não tínhamos recursos para fazer as cópias nem as legendas em francês, conforme nos foi pedido pelo festival.

Procuramos um "partner" que financiasse a finalização do filme e que bancasse as despesas. Depois de várias tentativas, surgiu um que manifestou real interesse e obviamente queria ver o filme.

Marcamos uma cabine para fazer a projeção e, no horário e no dia combinados, lá fui eu para Los Angeles. Quando cheguei para a projeção, qual não foi a minha surpresa ao ver que a cabine estava ocupada por um outro filme que tinha acabado de começar para Jack Nicholson e convidados.

Com cara de pato, pedi desculpas e aguardamos por duas horas, até o filme terminar. Antes de começar a projeção, fui ao banheiro. Enquanto eu usava o ready-made do Marcel Duchamp, olhei para o lado e vi que tinha um companheiro de atividade: Jack Nicholson, também esvaziando sua bexiga.

Ele olhou para mim e perguntou quem eu era. Eu disse quem era e o que estava fazendo ali. Ele disse que tinha lido "Boquinhas Pintadas", do Manuel Puig (escritor argentino, autor do livro que inspirou o filme "O Beijo da Mulher Aranha"), e que gostaria de ver o meu filme. Era para ligar e combinar.

Cheio de receios, telefonei na manhã seguinte, e a sua assistente já me deu as datas dele e pediu o endereço do lugar onde deveria apanhar as latas do filme. A exibição aconteceu: estavam presentes Jack, uma amiga dele e um amigo.

No fim da sessão, fui convidado para jantar. Nada foi dito a respeito do filme. Achei estranho. Quando terminamos a refeição, agradeci pela noite e nos encaminhamos para a porta. Eu quis ser o último a sair porque o meu carro era a opção mais econômica de aluguel que pude encontrar. Chegou uma limusine Mercedes e lá se foi o Jack. Depois, num reluzente Rolls-Royce conversível, se foi o outro.

Divulgação
O ator Jack Nicholson (à esq.) e o cineasta Hector Babenco durante as filmagens de
O ator Jack Nicholson (à esq.) e o cineasta Hector Babenco durante as filmagens de "Ironweed" (1987)

Quando chegou meu modesto veículo, saiu do restaurante um garçom que se aproximou de mim e perguntou se eu estava jantando com mr. Nicholson. Disse que sim. Ele replicou que ninguém tinha pagado a conta. Puto da vida, tirei meu único cartão de crédito e honrei o pasto da noite. Entendi o real significado da expressão "there is not free lunch in this town" (não existe almoço grátis nesta cidade).

Na manhã seguinte, fui acordado pela campainha. Um chofer me entregou, em nome do restaurante, duas garrafas de champanhe Cristal e um envelope com a minha folhinha azul do cartão rasgada e um bilhete pedindo desculpas pelo acontecido.

O maître daquela noite era novo e não sabia que, quando mr. Nicholson janta lá, a conta é mandada para o escritório dele.

Os anos se passaram e, quando o chamei para uma leitura do roteiro que tinha feito com William Kennedy de seu romance "Ironweed", ele imediatamente se prontificou a fazê-la em sua casa. No fim do encontro, fez alguns comentários que me levaram a entender que ele já conhecia o livro muito bem. O resto é história.

Anos depois, em 1994, o American Film Institute organizou uma cerimônia para entregar o Life Achievement Award ao Jack. Recebo um convite para ser um dos cinco a dizer algo sobre ele, durante a cerimônia. Reconheci naquele jantar homens e mulheres que desde moleque vejo no escurinho do cinema.

Cada vez que as luzes se apagavam, um "spotlight" iluminava quem falava. O primeiro foi Warren Beatty, depois Sean Penn, Milos Forman e, a seguir, Roman Polanski via satélite, até que chegou a minha vez -e eu continuava sem saber o que falar. Como dizer da importância de ter trabalhado com ele e do privilégio de compartilhar uma amizade que dura até hoje?

Contei a história do nosso primeiro encontro sob o olhar perplexo do Jack, que não entendia aonde eu queria chegar. Quando chegou o momento de "o senhor estava sentado na mesa do mr. Nicholson? É que ninguém pagou a conta", a gargalhada foi gigantesca. Ainda hoje encontro alguém que se lembra daquela noite.

HECTOR BABENCO, 67, é diretor dos filmes "Pixote: A Lei do Mais Fraco" (1981), "O Beijo da Mulher Aranha" (1985) e "Carandiru" (2003).


Endereço da página: