Folha de S. Paulo


Libertinagem e alucinação em Harvard

Cinquenta anos depois de ser expulso e banido de Harvard por realizar experimentos com LSD em alunos do curso de psicologia, o professor e neurocientista Timothy Leary (1920-96) volta à universidade pelas portas do inferno.

Ícone da contracultura e guru da substância que fez a cabeça dos jovens nos anos 1960, Leary é um dos destaques daquela que é anunciada como a maior coleção particular do mundo sobre sexo e drogas, que acaba de ser incorporada ao sistema de 73 bibliotecas de Harvard.

O acervo, que ao longo dos anos absorveu coleções da Europa e dos EUA, pertencia ao bilionário colombiano Julio Mario Santo Domingo Jr. (1958-2009). Após sua morte, a família assinou um contrato de cessão da biblioteca, antes sediada na região de Thônex, na Suíça, e batizada como biblioteca Ludlow-Santo Domingo.

Harvard recebeu as 700 caixas no final do ano passado e começou a fazer a catalogação e a digitalização dos mais de 50 mil itens, entre livros raros, filmes e vídeos, manuscritos, cartazes, fotos, panfletos e experiências de famosos e anônimos no universo do sexo e das drogas, da agora rebatizada Santo Domingo Collection.

A Folha foi o primeiro jornal do mundo a visitar o arquivo, no início do ano, no complexo de bibliotecas do campus central de Harvard, em Cambridge, no Estado de Massachusetts.

"Harvard cresceu ao redor de sua biblioteca. Somos a maior universidade do mundo porque também temos o maior acervo universitário do planeta, que agora está ainda mais completo com essa coleção tão peculiar", comentou, feliz, o historiador Robert Darnton, diretor do complexo de bibliotecas da instituição.

Espalhada por unidades da universidade em Cambridge e Boston por afinidade temática, a coleção não só constitui um manancial enorme de pesquisa em áreas como literatura, medicina, botânica, artes, cultura pop, fotografia e cinema como dá a Harvard algo que ainda lhe faltava: um inferno.

É assim que se conhece, nas grandes bibliotecas do mundo, "o depósito jamais aberto ao público; o Inferno, coletânea de todas as sem-vergonhices luxuriosas da pluma e do lápis", conforme define o dicionário Larousse de 1877.

O inferno da Biblioteca Nacional da França ficou interditado até a década de 1910, quando o poeta Guillaume Apolinnaire, com dois amigos, se embrenhou ali e pôs a nu os autores proibidos ao editar um catálogo e uma coleção. Começava a se abrir o longo caminho até a reabilitação de autores como o marquês de Sade [1740-1814].

Especializado na história da França do século 18, Darnton lembra que passou anos estudando nos "infernos" das bibliotecas francesas, interessado em temas tabu, como sadismo e a relação com as drogas.

"Muitas vezes os fenômenos marginais estavam fora das grandes bibliotecas, e consideramos que elas devem ter todo tipo de material relacionado à experiência humana", ressalta. "O mundo do sexo e das drogas foi muito importante em uma parte dos anos 60 e 70, sobretudo. É um fenômeno cultural internacional."

Só sobre o autor de "Os 120 Dias de Sodoma" a Santo Domingo conta mais de 500 volumes, sendo 125 do próprio Sade, como o raro exemplar de 1791 de "Justine ou les Malheurs de La Vertu". A erótica francesa concentra boa parte dos livros raros e antigos: cerca de 1.200 vieram da coleção do suíço Gérard Nordman, que Santo Domingo arrematou em 2006. Vem de lá, por exemplo, o manuscrito do clássico sadomasoquista "História de O" (1954), de Pauline Réage.

Livros autografados e manuscritos de poetas malditos como Charles Baudelaire e Paul Verlaine também estão disponíveis para consulta. Conforme faz a catalogação, a equipe de uma das bibliotecas posta textos e imagens com as novidades encontradas nas caixas no blog da biblioteca (blogs.law.harvard.edu/houghtonmodern).

Entre os muitos livretos que circulavam de mão em mão, clandestinamente, no final do século 18, um dos mais interessantes é "Enculées" (as enrabadas), livro organizado entre 1892 e 1898 pelo escritor francês Pierre Louÿs (1870-1925). Louÿs tomou o depoimento de prostitutas que trabalhavam na Paris do final do século 19, com fartas descrições e fotos explícitas.

Há ainda documentos importantes do século 18, como opúsculos clandestinos da França iluminista; um tratado ricamente ilustrado sobre história e usos antigos e modernos do cinto de castidade; um curioso relatório investigativo de uma comissão do Congresso dos EUA sobre obscenidade e pornografia, produzido sob o governo Lyndon Johnson (1963-69) e reeditado com ilustrações da época.

DROGAS

Se a coleção Nordman foi a matriz de boa parte da erótica francesa de Santo Domingo, o outro pilar da coleção, as drogas, tem raízes ali mesmo em Harvard, na pesquisa pioneira sobre os efeitos do LSD que Timothy Leary e Richard Alpert fizeram em si mesmos e em seus alunos na universidade, no início da década de 1950.

Os testes de Leary inspiraram três amigos a formar, na Califórnia, em 1970, a biblioteca Fitz Hugh Ludlow Memorial, que por décadas foi a maior do mundo em se tratando de psicotrópicos.

Em 2003, ela foi comprada por Julio Mario Santo Domingo e transferida para a Suíça. O nome é uma homenagem a Fitz Hugh Ludlow (1836-70), autor do primeiro livro da literatura americana que tematiza as drogas, "The Hasheesh Eater" (o comedor de haxixe), de 1857. (Os comedores de haxixe, aliás, poderão apreciar as duas prateleiras sobre culinária, com receitas de bolos, cookies e outros pitéus amaconhados.)

Um dos criadores da Ludlow, Michael Horowitz, foi grande amigo de Leary e é um dos principais divulgadores de seu legado. Ele planeja produzir um filme sobre Leary, em parceria com o ator Leonardo DiCaprio. Segundo Lisa Rein, parceira de Horowitz num site que disponibiliza material sobre Leary, todos se espantaram com a inexistência de material em Harvard sobre o guru do LSD.

Igual reação teve Leslie Morris, curadora de manuscritos e da seção de livros modernos da Hougthon Library, que recebeu boa parte da coleção sobre sexo e drogas. "Essas experiências são um aspecto interessante de Harvard naquela época, e não havia quase nenhuma documentação", disse ela à Folha.

Leslie Morris foi a primeira pessoa do staff de Harvard a conhecer a Santo Domingo Collection. Ela mescla um sorriso severo com arroubos de simpatia ao falar sobre o universo pervertido da coleção. Há 20 anos em Harvard, ela é a funcionária da instituição que melhor conhece o acervo. Em 2011, durante as negociações da cessão do arquivo entre a família do colombiano e a universidade, Morris foi à Suíça para analisar o acervo. Ela diz ter se impressionado com o que viu. "Acreditamos ser a maior coleção particular sobre o tema no mundo", comenta. "É uma coleção rara."

POP

Nem só de antiguidades, no entanto, se faz a Santo Domingo. A coleção mostra que seu criador levava a contracultura a sério: uma profusão de documentos retrata momentos cruciais da revolução pop, sexual e política dos anos 60. O arquivo deixado pelo bilionário colombiano na Suíça tinha ainda uma seção dedicada ao rock'n' roll, mas ela não foi para Harvard: os documentos foram encaminhados ao Museu do Rock, em Cleveland, no Estado de Ohio.

Interessado nas experiências de sexo, drogas e magia negra, Julio Mario Santo Domingo Jr. foi um colecionador voraz --além da biblioteca, reuniu a maior coleção mundial de cachimbos de ópio. Ele morreu em Nova York, em 2009, de câncer no pulmão.

O colecionador nasceu em uma das famílias mais ricas da América Latina: seu pai era dono de bancos, cervejarias, do grupo de comunicação Caracol, o maior da Colômbia, e da empresa aérea Avianca, entre outros negócios.

Ainda na adolescência Julio Jr. começou a colecionar livros --sobretudo os malditos franceses do final do século 19 e começos do 20.

Segundo Leslie Morris, a socialite brasileira Vera Rechulski, com quem Julio teve dois filhos, conhece como ninguém a coleção. Mas a brasileira, que divide seu tempo entre o Rio e Paris, não quis conversar com a Folha sobre o acervo.

Nos papéis sobre drogas, chama atenção a coleção de micropontos de LSD, quase todos de autoria do designer americano Mark Cloud, o maior nome do gênero. Nos micropontos, o alucinógeno é impresso em pequenos pedaços de papel com desenhos psicodélicos ou figuras que vão do próprio Timothy Leary ao Chapeleiro Maluco de "Alice no País das Maravilhas".

Há ainda documentos históricos, como a carta de 11 de agosto de 1788 em que o vice-rei do Império Espanhol nas Américas, Manuel Antonio Flórez Maldonado (1722-99), aponta o crescimento do uso de maconha na região de Monterrey, no México.

O setor sobre ervas alucinógenas e afins vai dos raros volumes impressos ainda no século 16 a curiosidades como o exemplar do romance "Cocaína", de Dino Segre, que traz o ex-libris (selo da biblioteca pessoal) de Adolf Hitler.

A cultura e as guerras em torno do ópio trazem preciosidades como o livro publicado na Inglaterra em 1870 sobre as diferenças entre o consumo naquele país e na China. A obra "The Chinese Opium Smoker" tem o sugestivo subtítulo de "12 ilustrações que mostram a ruína que o comércio de ópio com a China está trazendo para o país".

As ilustrações mostram chineses usando a droga em poses recreativas. O livro compara o fumante de ópio chinês e o bebedor inglês, fala das responsabilidades da Inglaterra no comércio internacional e alerta em tom catastrófico sobre os perigos da substância:

"Triste é a perspectiva, o marido [viciado] já está condenado à pobreza, à vergonha e à morte prematura, sua esposa, à ruína, seu filho, à mendicidade. Sua mãe vai morrer de um ataque cardíaco".

Uma busca por "Brazil" nos itens da coleção mostra que o acervo estava relativamente atualizado: lá estão "O que Aprendi com Bruna Surfistinha", de Raquel Pacheco, "O Diário de Marise: A Vida Real de uma Garota de Programa", de Vanessa de Oliveira, além de livros sobre narcotráfico e usos de ayahuasca nas cidades brasileiras.

Entre as raridades em língua portuguesa, destaca-se a primeira edição de "Elogio à Punheta", livro erótico português editado em Paris no final do século 19.

A obra é dividida em três historietas --além da que dá nome ao livro, há ainda "Queixumes de um Guarda-Portão" e "O Frade Vicioso, ou A Freira Puta" --dignas, ainda hoje, de fazer corar um bom cristão.

Tem a punheta virtude
Da louvável gratidão;
É companheira do homem
Até mesmo na prisão

A punheta é no mundo
A imagem do prazer,
Quem à vista da punheta
Cabe n'asneira de foder?!...

Em "O Frade Vicioso, ou A Freira Puta", os autores fazem troça de frades e freiras enclausurados.

Havia em certo convento,
Um fradalhão de saber,
Que andava sempre arreitado
Com a fome de foder. (...)

Sendo chamado a um convento
Para as freiras confessar,
Fez logo a uma por uma
Todas no membro a pegar!

Ficaram tão encantadas
Da santa galanteria,
Que quiseram confessar-se
Sempre uma vez cada dia!

Eram trinta, fora a madre,
Que ele tinha a confessar;
Portanto, trinta punhetas
É que havia de trincar!


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