Folha de S. Paulo


AS Byatt retoma mitos nórdicos com desenvoltura

Os deuses podem ser toscos. Seus modos não são os nossos. Gritam muito. Não parecem tão preocupados quanto deveriam com questões de identidade, ou com as compras. Não importa o que afirmem seus entusiastas, o risco é de que, agora, já nada tenham a nos dizer.

Por vingança ou desespero, nós os reativamos como ficção científica, como monstros do id, como astros convidados em espetáculos alheios: deuses de skate, deuses no espectro autista, deuses adaptados às necessidades de ideologias que não teriam adotado nem mesmo em um bilhão de anos, deuses carregando a bagagem de todas as revisões prévias. E talvez os retomemos com mais certeza quando o fazemos no plano pessoal do que quando o fazemos na cultura.

"Ragnarök", de AS Byatt, é o título mais recente na série de mitos retrabalhados da editora Canongate (já notável por "The Hurricane Party", a visão de Klas Ostergren para o mesmo material). Byatt acrescenta valor ao fim de tudo ao adicionar sua experiência pessoal quanto a isso, como criança na Inglaterra sob sítio do começo dos anos 40. "Estamos em guerra", ela escreve. "Talvez venhamos a sempre estar em guerra".

Esse senso de eterno conflito funciona como âncora; ao entretecer as histórias dos deuses nórdicos com a história de como ela primeiro os veio a ler, Byatt cria uma espécie de "bildungsroman", que é tanto sua história quanto a deles. A estratégia é arriscada, mas não tão arriscada quanto, por exemplo, deuses chapados de mefedrona. E preserva um contato claro e direto com o material original, remontado aqui "de muitas histórias em muitos idiomas".

Removida de sua moradia urbana para "o paraíso ordinário do campo inglês", a "criança magra" se vê obrigada a caminhar três quilômetros até a escola a cada manhã, "atravessando prados recobertos de prímulas". Ela não demora a aprender a ler. Um de seus livros favoritos é um "volume sólido, encadernado em verde", com uma imagem do mito da caçada selvagem na capa.

Dentro dele, a menina encontra os deuses à sua espera, no mundo que escavaram do crânio de seu predecessor morto. Enquanto isso, ela sonha que os alemães estão planejando sequestrar seus pais. Ela sonha "o que então ela não sabia conscientemente, que seus pais estavam inseguros, temerosos". Os três - mãe, pai e filha - estão enredados nas ansiedades de sua era.

Essa incerteza também ocupa papel central no mundo dos deuses. Eles sabem que não deveriam ter assassinado e infestado o gigante Ymir, agrilhoado o lobo Fenris e zombado dele, lançado ao mar a filha-serpente de Loki, ou exilado Hel em seus salões sombrios, acompanhada de cálices de veneno. Sempre souberam que essas ações eram estúpidas, que traíam um excesso de confiança. Basta pensar nelas para que Baldur tenha "sonhos de verdadeiro terror, mais reais que o mundo para o qual o sonhador desperta".

Não demora para que Frigg, mais lobista que deusa, comece a tentar convencer "todas as coisas, na terra, ar e oceano, a prometer que não tocariam nem mesmo em um dourado fio dos cabelos de Baldur". Como o mecanismo de um relógio, o tempo dá corda à ansiedade; o tempo está se esgotando, e Ragnarök está por vir. O curioso lado juvenil dos deuses, seus jogos ruidosos mas passivos nos momentos que antecedem o desastre causado por eles mesmos, é metáfora clara para o comportamento destrutivo que adotaram no mundo. Eles celebram "a coesão da terra, ar, fogo e água, e todas as criaturas nesses e desses elementos", mas fazem tudo que podem para garantir que essas coisas todas vão para o inferno.

A despeito disso, a prosa de Byatt, compacta e lírica, os trata com dignidade: Odin, imprevisível, um deus "tanto sinistro quanto perigoso"; Loki, o que desfaz, "esparramando ondas de glamour" e obcecado com a teoria do caos; a Serpente-Mundo, filha de Loki, "se arqueando para recair em um golpe pesado de água branca, repleta de ar e luz, até que serpente e onda silvem juntas na areia, e rolem sobre ela, descansadas". O mundo deles é construído da profunda preocupação da autora com o nosso: "A superfície da terra era como um grande pano bordado... com um intricando forro tecido de elos conectados".

A criança magra observa os erros dos deuses com um olhar impressionado mas acadêmico. O resultado é em certos momentos uma enorme melancolia, e em certos momentos o reconhecimento de que, por mais que o leitor conhecesse a narrativa de Midgard, jamais a havia compreendido tão bem, até agora.

"Ragnarök" é um livro inteligente, lúcido e adorável. Mas não é um romance, ou mesmo uma história no sentido usual. É um discurso sobre o mito, tecido de e em torno de uma polêmica sobre poluição e perda de diversidade de espécies. Yggdrasil, a Árvore do Mundo, ressurgida como ecossistema condenado. As ideias de Byatt ficam próximas da superfície; além disso, a autora mesma está esperando pacientemente, no fim de tudo, para garantir que compreendamos o seu argumento.

Em uma era midiática, esse efeito se estende além do livro. Sei, por exemplo, que a "criança magra" provavelmente é Byatt mesma, porque antes de ler o livro li um artigo recente dela no "Guardian". Entre isso e um mundo do além construído com precisão, ela é capaz de controlar, em grau muito maior do que teria sido possível no começo dos anos 40, a maneira pela qual o leitor recebe e interpreta o texto. Em certo sentido, fico grato por isso; sinto que estou em boas mãos.

Byatt, afinal, conhece muito mais sobre esses mitos - e mitos em geral - do que jamais conhecerei. Em outro sentido, me decepciono por ela não permitir que eu descubra sozinho o que ela criou. A jovem Byatt podia deixar que as histórias de Midgard rolassem por sobre ela "não como prazeres mas como encontros com o inapreensível"; já sua versão mais velha "as resgata" de uma forma que não permite que façamos o mesmo.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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