Folha de S. Paulo


Doenças mentais realmente existem?

O título abreviado é DSM-5, e o livro nada tem de charmoso e é desconhecido fora do ramo da saúde mental.

Mas antes mesmo de sua publicação, que acontecerá em 22 de maio, o "Diagnostic and Statistical Manual", um dicionário de distúrbios psiquiátricos, provocou uma feroz controvérsia que se estendeu aos dois lados do Atlântico e está alimentando um debate sério sobre como a sociedade moderna deveria tratar os distúrbios mentais.

Os críticos alegam que o manual da Associação Psiquiátrica Americana, cujo número de páginas não para de crescer, verá milhões de pessoas categorizadas desnecessariamente como portadoras de distúrbios psiquiátricos. Por exemplo, timidez infantil, acessos de mau humor, e depressão depois da perda de um ente querido podem passar a ser definidos como problemas médicos, tratáveis por medicamentos. E o vício em Internet também.

Essas definições inevitavelmente oferecem munição aos críticos da psiquiatria, para os quais muitas das condições descritas são simples invenções sonhadas para beneficiar os gigantes dos medicamentos.

Um quadro perturbador de interesses escusos compartilhados e de um setor psiquiátrico em conluio com as grandes companhias farmacêuticas emerge dessas descrições. Como declarou em tom apenas parcialmente brincalhão o jornalista Jon Ronson, em palestra na conferência TED, "será possível que a profissão psiquiátrica tenha forte desejo de rotular como distúrbios coisas que são essencialmente parte do comportamento humano?"

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Os defensores da psiquiatria rebatem alegando que essas sugestões são canhestras, distorcidas e que pouco ajudam,. E se queixam de que a muito aguardada publicação da nova edição do manual se tornou pretexto para requentar críticas já desgastadas à profissão psiquiátrica.

Mas mesmo os defensores da psiquiatria reconhecem que o manual tem seus problemas. Allen Frances, professor de psiquiatria e presidente do comitê que preparou a quarta edição do DSM, usou seu blog para criticar o processo de produção do novo manual por ser "fechado demais, indevidamente sigiloso e desleixado", e alegou que o texto "inclui novos diagnósticos e rebaixamento de limiares para diagnósticos antigos que expandem as fronteiras já distendidas da psiquiatria e ameaçam transformar em hiperinflação a atual inflação de diagnósticos".

Outros profissionais de saúde mental foram ainda além em suas críticas. Thomas Insel, diretor do Instituto Nacional de Saúde Mental, a principal agência de pesquisa e prevenção de doenças mentais do governo norte-americano, recentemente contestou a "validade" do manual.

E agora, em um ataque novo e significativo, a natureza mesma dos distúrbios identificados pela psiquiatria foi colocada em questão. Em uma decisão sem precedentes para uma agência profissional, a Divisão de Psicologia Clínica (DCP), que representa mais de 10 mil profissionais de saúde mental e é parte da Sociedade Psicológica Britânica, vai divulgar esta semana uma declaração na qual pede o abandono de diagnósticos psiquiátricos e apela pelo desenvolvimento de alternativas que evitem a linguagem de "doença" e "distúrbio".

A declaração afirma: "O diagnóstico psiquiátrico é muitas vezes apresentado como uma declaração objetiva de fatos, mas em resumo não passa de um julgamento clínico baseado em observação e interpretação de comportamento, e em autoavaliação do paciente, e está sujeito a variações e distorções".

A linguagem empregada pode parecer complexa, mas as implicações são claras. De acordo com a DCP, "diagnósticos como o de esquizofrenia, distúrbio bipolar, distúrbios de personalidade, distúrbio de deficit de atenção e hiperatividade, distúrbios de conduta, e assim por diante", apresentam "confiabilidade limitada e validade questionável".

O diagnóstico é muitas vezes descrito como o cálice sagrado da psiquiatria. Sem ele, as fundações da disciplina desabam. Por isso, Mary Boyle, professora emérita da Universidade de East London, acredita que o impacto da declaração da DCP represente uma virada dramática no debate sobre a saúde mental.

"A declaração não é apenas um relato sobre os muitos problemas do diagnóstico psiquiátrico e da falta de provas que os sustentem", diz. "É um apelo por uma maneira completamente diferente de pensar sobre os problemas de saúde mental, abandonando a ideia de que sejam doenças com causas primordialmente biológicas".

Os psiquiatras afirmam que alegações como essas já foram feitas muitas vezes no passado e ignoram montanhas de estudos científicos sérios sobre a importância dos fatores biológicos na determinação da saúde mental, que incluem trabalhos significativos no ramo da genética. Para eles, as alegações também expõem de maneira incorreta a posição da psiquiatria, ao ignorar sua ênfase quanto ao impacto do ambiente social sobre a saúde mental.

A maioria dos psiquiatras reconhece que o diagnóstico dos distúrbios psiquiátricos não é perfeito. Mas, como explica Harold Koplewicz, conhecido especialista em psiquiatria da infância e adolescência, em artigo para o Huffington Post, "as listas de comportamento do DSM e as demais escalas de classificação que usamos são ferramentas que nos ajudam a considerar comportamentos da maneira mais objetiva possível, a fim de encontrar padrões e conexões que possam conduzir a uma melhor compreensão e tratamento".

Especialistas independentes também dizem que é difícil ver como o mundo da saúde mental poderia funcionar sem diagnósticos. "Sabemos que, para muitas pessoas que sofrem de um problema de saúde mental, receber um diagnóstico autorizado por um documento como o DSM-5 pode ser extremamente benéfico", disse Paul Farmer, presidente da Mind, uma organização assistencial que trabalha no ramo da saúde mental. "Um diagnóstico pode oferecer tratamento adequado às pessoas, e pode dar a uma pessoa acesso a outras formas de apoio e serviços, entre os quais benefícios previdenciários".

Mas mesmo Farmer admite que os diagnósticos são imperfeitos. "Por exemplo, são necessários em média 10 anos para que uma pessoa com, distúrbio bipolar receba o diagnóstico correto, e isso tem diversas implicações de saúde física e mental, entre as quais os efeitos colaterais de usar a medicação errada", ele diz.

Mas agora a DCP transformou o debate quanto aos diagnósticos ao afirmar que eles não apenas desrespeitam as normas da ciência como são inúteis e desnecessários.

"Por mais estranho que possa parecer, você não precisa de um diagnóstico para tratar pessoas com problemas de saúde mental", disse a Dra. Lucy Johnstone, psicóloga clínica e terapeuta que ajudou a redigir a declaração da DCP.

"Não estamos negando que essas pessoas passem por grandes aflições e precisem de ajuda. Mas não existem provas de que o melhor seja compreender essas experiências como doenças com causas biológicas. Pelo contrário, hoje existem provas esmagadoras de que as pessoas entram em colapso como resultado de uma mistura complexa de circunstâncias sociais e psicológicas --luto e perda, pobreza e discriminação, trauma e abuso".

Eleanor Longden, que ouve vozes e foi informada de que era esquizofrênica e que seria melhor para ela ter câncer, já que este é "mais fácil de curar", explica que conseguiu se libertar depois de uma conversa com um psiquiatra que pediu que ela lhe contasse um pouco sobre sua vida. Em estudo publicado pela revista científica "Psychosis", Longden recorda que "eu olhei para ele e disse que me chamava Eleanor e era esquizofrênica".

Longden prossegue: "Em sua suave voz irlandesa, ele me disse algo de muito forte: 'Não quero saber o que outras pessoas disseram a você sobre você. Quero saber sobre você'".

"Foi a primeira vez que tive a oportunidade de me ver como uma pessoa com uma história de vida, e não como uma esquizofrênica criada pela genética e portadora de produtos químicos aberrantes no cérebro, e de falhas e deficiências biológicas que estaria além de meu poder curar".

Longden, que está seguindo uma carreira acadêmica e faz parte de um movimento que combate os diagnósticos psiquiátricos, considera a conversação que teve com o psiquiatra como o primeiro e crucial passo em um processo de cura que permitiu que ela abandonasse os medicamentos. "Tenho orgulho de ouvir vozes", ela diz. "É uma experiência incrivelmente especial e única".

A história de Longden é inspiradora. Mas concentrar a atenção nas experiências de apenas uma pessoa seria ignorar os testemunhos de outros para os quais seus problemas mentais têm raízes biomédicas. De fato, muita gente reporta que não vê motivo claro para seus problemas, e acredita firmemente que nada em suas histórias de vida seja determinante para os problemas mentais que enfrentam.

Mesmo assim, a DCP acredita que o mundo do tratamento de problemas mentais se beneficiaria de uma "mudança de paradigma" que o levasse a se concentrar menos nos aspectos biológicos da saúde mental e mais nos aspectos pessoais e sociais.

"Em resumo, em lugar de perguntar o que a pessoa tem de errado, temos de perguntar o que aconteceu a ela", diz Johnstone. "E quando descobrirmos o que aconteceu, poderemos estudar provas psicológicas que demonstram como os acontecimentos da vida da pessoa e a forma pela qual esta os compreendeu resultaram nas dificuldades atuais".

Abandonar o foco biológico satisfaria os críticos da psiquiatria, que questionam o uso pela sociedade de medicamentos ou de intervenções como os tratamentos de choque, para tratar colapsos psiquiátricos.

O número de receitas de antidepressivos cresceu em mais de 30% na Inglaterra entre 2008 e 2011, o mais recente ano para o qual existem dados.

Um artigo recente na edição online do "British Medical Journal" sugeria que "apenas um em sete dos pacientes se beneficia realmente de antidepressivos", e alegava que três quartos dos especialistas que redigiram as definições de doenças mentais têm conexões com grandes empresas farmacêuticas.

O professor Sir Simon Wessely, diretor do departamento de medicina psicológica no King's College, em Londres, argumenta que sua profissão sempre enfatizou a necessidade de "avaliar a pessoa como um todo, e de fato ir além da pessoa e considerar a família e a sociedade", e que as alegações de que "a psiquiatria está sendo conquistada pelos biólogos" são infundadas.

A defesa, que será delineada em uma grande conferência internacional sobre o impacto do DSM-5 que acontecerá no King's College no começo de junho, muitas vezes não se faz ouvir por sob o ruído do debate.

Na verdade, a intensidade das críticas à psiquiatria vem crescendo perceptivelmente no período que antecede o lançamento do DSN-5. Em tentativa de acalmar as águas, a professora Sue Bailey, presidente do

Royal College of Psychiatrists, admitiu que"muitas das críticas feitas ao DSM são válidas", mas alertou que "a controvérsia está nos distraindo quanto ao desafio real, que é oferecer serviços e tratamentos mentais de alta qualidade aos pacientes e aos profissionais".

Bailey insiste em que a publicação do manual "não terá influência direta dobre o diagnóstico de doenças mentais pelo Serviço Nacional de Saúde" britânico. Mas ela afetará o debate mais amplo sobre como as pessoas veem a saúde mental. Como reconheceu Wessely, os críticos da psiquiatria aproveitarão as "tolas" categorias novas de distúrbios mentais que o manual adicionou para reforçar alegações de que a profissão quer "medicar a normalidade".

Há uma ironia nisso. A psiquiatria está ferida, e boa parte dos danos parecem ter sido causados por ela mesma. E as cicatrizes emocionais podem demorar décadas a desaparecer.

O novo manual, DSM-5

- Distúrbio de desregulamentação perturbadora de humor, ou DMDD, para as pessoas que sofrem acessos de mau humor frequentes e severos.

- Distúrbio de alimentação compulsiva. Para as pessoas que comem excessivamente 12 vezes em três meses.

- Distúrbio de acumulação, definido como "dificuldade persistente para jogar fora ou abrir mão de posses, não importa seu valor real".

- Distúrbio de oposição desafiadora, descrito por um crítico como "problema que aflige crianças que dizem 'não' a seus pais mais que um certo número de vezes".

Fora do manual

O termo "distúrbio de identidade de gênero", para crianças e adultos que acreditam fortemente que nasceram com o sexo errado, está sendo substituído por "disforia de gênero", para remover o estigma associado à palavra "distúrbio". Os especialistas comparam a mudança à remoção de "homossexualidade" como distúrbio na edição de 1973.

E o futuro?

Hiper-sexualidade e vício em Internet serão incluídos em uma seção que recomenda que possam vir a ser classificados como distúrbios, depois de pesquisas adicionais.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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