Folha de S. Paulo


Jeffrey MacDonald cometeu os homicídios de Fort Bragg?

Errol Morris, documentarista premiado com o Oscar, ganhou fama em 1988 com "A Tênue Linha da Morte", um valente documentário que conseguiu libertar da prisão um homem sentenciado à morte. Mas ainda que tenha dedicado diversos anos àquela investigação, não é o crime de que tratou naquele filme que se manteve mais presente em seu intelecto e imaginação. Esse posto cabe a um outro caso de homicídio, acontecido em 17 de fevereiro de 1970 em Fort Bragg, Carolina do Norte.

E ele não está sozinho em sua obsessão. Os homicídios cometidos na madrugada daquele dia e a prolongada controvérsia que se seguiu a eles deitaram uma longa sombra não só sobre o sistema norte-americano de justiça criminal --trata-se do mais longo caso criminal na história do país-- mas também sobre a mídia norte-americana. Uma pequena biblioteca de livros, uma minissérie de TV, incontáveis documentários e uma floresta de artigos noticiosos já tentaram explicar o que aconteceu 43 anos atrás na casa do capitão Jeffrey MacDonald, que então tinha 26 anos e era um promissor cirurgião nas forças especiais do Exército norte-americano.

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Imagem de Colette MacDonald e sua filha Kristen em 1970, ano em que foram assassinadas
Imagem de Colette MacDonald e sua filha Kristen em 1970, ano em que foram assassinadas

Conceitos que costumam merecer maiúsculas, tais como Verdade, Justiça, Imparcialidade e Honestidade, têm posição central no crime e na forma pela qual ele recebeu cobertura noticiosa, mas todos esses ideais parecem estar em conflito uns contra os outros no caso. Desonestidade foi utilizada para estabelecer a verdade, e a justiça muitas vezes pareceu bem menos que imparcial. A atenção da mídia à questão, de sua parte, gerou um debate essencial sobre a natureza da ética jornalística.

Eis alguns fatos básicos quanto aos quais as duas partes concordam: em algum momento da madrugada de 17 de fevereiro de 1970, antes das 3h30min, alguém agrediu brutalmente a família MacDonald em sua casa no número 544 da Castle Drive, então parte do território de Fort Bragg, uma base militar norte-americana. Colette, 26, mulher de MacDonald, estava grávida e teve seus dois braços fraturados e sofreu múltiplos ferimentos cortantes no peito e pescoço, com um furador de gelo e uma faca de cozinha. Kimberley, 5, filha do casal, recebeu um golpe de bastão na cabeça e múltiplas facadas no pescoço. Kristen, 2, foi esfaqueada mais de 30 vezes nas costas, pescoço e peito, com uma faca e furador de gelo. O capitão MacDonald recebeu apenas ferimentos leves, excetuada uma única facada que perfurou seu pulmão.

Por volta das 3h30min, MacDonald ligou para os serviços de emergência, aparentemente pouco antes de perder a consciência. Disse aos policiais do Exército que foram os primeiros a atender ao chamado que sua família havia sido atacada por quatro intrusos --dois homens brancos, um homem negro e uma mulher branca. Ele disse que a mulher tinha uma vela nas mãos e repetia continuamente que "ácido é demais" e "mate os porcos". Na cabeceira da cama do casal, a palavra "porco" havia sido escrita com sangue.

Em 1970, os Estados Unidos eram um país em tumulto. O pano de fundo para os homicídios era a guerra do Vietnã, um movimento de protesto cada vez mais intransigente e uma contracultura desiludida e influenciada pelas drogas. Seis meses antes, os seguidores de Charles Manson haviam cometido uma série de homicídios igualmente depravados em Los Angeles. Na casa de Roman Polanski, eles haviam assassinado sua mulher, a atriz Sharon Tate, que estava grávida, e usaram o sangue da vítima para escrever "porco" em uma parede.

Aquele crime apavorou os subúrbios norte-americanos. Parecia ser o fruto maligno de uma sociedade em transição, desenraizada, sem deus e sem pátria. E MacDonald era o completo oposto disso. Formado pela Universidade de Princeton, ele personificava os valores do heroísmo americano --atlético quarterback no time de futebol americano de sua escola mais tarde transformado em médico bonitão e trabalhador, fazendo carreira em serviços de emergência a soldados feridos, oficial boina verde casado com sua namoradinha de infância. Mas os investigadores logo começaram a suspeitar que a família não havia sido morta por um grupo de intrusos drogados, mas sim por MacDonald, que depois teria se esfaqueado a fim de criar a impressão de que ele também havia sido vítima do ataque.

MacDonald terminou detido pela polícia do Exército, mas depois de uma extensa investigação e da mais longa audiência preparatória de corte marcial da história das forças armadas, foi inocentado e recebeu baixa honrosa do Exército. MacDonald logo a seguir cometeu o erro tático de conceder uma entrevista no programa de Dick Cavett, a primeira em uma série de desastrosas interações com a mídia. Diante de uma audiência nacional de TV, ele se queixou longamente do tratamento que havia recebido de parte das autoridades militares. A maior parte dos espectadores viu com suspeita o fato de ele falar tanto de seu sofrimento pessoal sem mencionar muito sua família assassinada. Cavett mencionou posteriormente a peculiar falta de "emoção" de MacDonald.

Um dos telespectadores que acompanharam o programa de Cavett foi Freddie Kassab, sogro de MacDonald e até aquele momento o mais incansável defensor do genro. De um dia para outro, Kassab se tornou o mais ferrenho adversário de MacDonald. Este além disso cometeu o erro adicional de contar a Kassab que havia rastreado um dos agressores e o matado. Era mentira, admitiu MacDonald mais tarde, e o objetivo era livrá-lo de Kassab.

Mas a mentira só serviu para agravar as desconfianças do sogro. Kassab pressionou as autoridades incessantemente por uma reabertura das investigações sobre MacDonald, e cinco anos mais tarde um júri de instrução foi convocado para determinar se o médico deveria ser julgado como civil. Por fim, em 1979, ele foi levado a julgamento na Carolina do Norte. Depois de avaliar as provas, o júri só precisou de seis horas para considerá-lo culpado. O juiz, Franklin Dupree, sentenciou o acusado a três penas consecutivas de prisão perpétua.

A história poderia ter acabado ali, não fosse o segundo e fatídico encontro de MacDonald com a mídia. Antes do julgamento, ele havia contratado Joe McGinniss para escrever um livro sobre ele e o caso, a fim de ajudar a cobrir suas custas judiciais. McGinniss era um escritor conhecido no campo da não ficção, que havia ganhado fama com "The Selling of the President", um best-seller sobre a campanha presidencial de Richard Nixon em 1968. Os dois homens estavam na casa dos 30 anos, eram altamente inteligentes, apreciavam esportes. Desfrutavam um da companhia do outro e, embora tivessem cada qual motivos pessoais para a colaboração, terminaram por se tornar grandes amigos, de acordo com todos os relatos.

Assinaram um contrato sob o qual MacDonald receberia um quarto dos royalties autorais do livro. Só havia uma condição importante: McGinniss assumia o compromisso de manter a "integridade essencial" da história de vida de MacDonald. Para que pudesse ter acesso pleno ao caso, McGinniss foi integrado à equipe de defesa de MacDonald. Ele, MacDonald, os advogados de defesa e diversos assistentes foram morar juntos em uma residência universitária. McGinniss acompanhou o julgamento de perto. Depois que MacDonald foi considerado culpado e sentenciado à prisão, McGinniss manteve uma intensa correspondência com ele, e durante todo o tempo deu a impressão de acreditar firmemente na inocência do amigo.

Em 1983, quase quatro anos depois do julgamento, McGinniss publicou "Fatal Vision", um extenso relato do caso, seguindo a linha de "A Sangue Frio" de Truman Capote. O livro era, acima de tudo, uma acusação severa a MacDonald. Descrevendo em detalhes o estilo de vida festivo que o médico havia adotado no sul da Califórnia, para onde se mudou depois de deixar o Exército, o texto estava repleto de exemplos da vida de playboy que MacDonald havia adotado, com carros esporte, banheiras de hidromassagem, uma lancha chamada Recovery Room e uma sucessão de jovens namoradas. O trabalho era um ataque claro e altamente detalhado ao caráter de MacDonald, e McGinniss retratava o ex-amigo no livro como um assassino de crianças psicopata, mulherengo e narcisista. "Fatal Vision" conquistou grande sucesso de vendas.

No ano seguinte, MacDonald processou McGinniss por fraude e violação de contrato. O processo judicial resultante foi julgado em 1987. O júri não chegou a uma decisão e, para evitar um dispendioso segundo julgamento, a seguradora que cobria McGinniss encerrou o processo por meio de um acordo extrajudicial. O processo civil sobre o livro serviu de base a um artigo de Janet Malcolm publicado em duas porções pela revista "New Yorker", e mais tarde lançado como livro, sob o título "O Jornalista e o Assassino". Malcolm considerava o relacionamento entre MacDonald e McGinniss como símbolo da conexão antiética que existe entre jornalistas e aqueles que lhes servem de temas. O primeiro parágrafo do livro de Malcolm se tornou uma referência quanto à duplicidade da mídia noticiosa: "Todo jornalista que não é burro ou vaidoso demais para perceber o que está acontecendo", escreveu Malcolm, "sabe que aquilo que está fazendo é moralmente indefensável".

MacDonald e seus advogados apresentaram diversos recursos contra sua condenação por homicídio, alegando que o julgamento havia sido injusto, que provas essenciais haviam sido excluídas e que testemunhas vitais haviam sido silenciadas. A mais recente audiência a respeito foi conduzida no ano passado em Wilmington, Carolina do Norte, e diversas testemunhas depuseram perante um juiz. Mais ou menos na mesma época, dois outros livros foram adicionados à bibliografia em constante expansão sobre o caso. McGinniss ofereceu um resumo atualizado sobre o transcurso do caso, sob o título "Final Vision" --o que talvez demonstre otimismo excessivo-- e Errol Morris publicou "A Wilderness of Error", no qual reexamina boa parte das provas do caso e as considera deficientes. Morris começou a se interessar pela história de MacDonald nos anos 80, e vem acumulando detalhes sobre ela desde os anos 90. Ao tentar explicar o que o reconduziu diversas vezes ao caso, ele escreve: "Não foi a brutalidade dos homicídios. O que eu temia era algo ainda mais apavorante --que MacDonald fosse inocente. Que ele tivesse testemunhado o selvagem assassinato de sua família e depois tivesse sido condenado injustamente pelas mortes. Fiquei imaginando se as pessoas precisavam que ele fosse culpado porque a alternativa era horrível demais e ninguém desejasse contemplá-la".

Com diagramas, fotocópias e cronologias, o livro de Morris se posiciona como análise forense dos homicídios, dos diversos processos judiciais deles derivados e do papel crucial desempenhado pela cobertura da mídia quanto ao caso. A resenha do livro de Morris pelo "New York Times" diz: "O livro deixa o leitor 85% certo de que MacDonald é inocente. E 100% certo de que não recebeu julgamento justo". Além disso, o texto foi escrito como defesa do conceito de verdade comprovada e em oposição aos avanços do relativismo, um conceito que ganhou muito espaço intelectualmente nas últimas décadas. Para Morris, a verdade não é uma questão de interpretação subjetiva. Algo acontece ou não acontece. MacDonald ou matou a família ou não matou. E Morris não está nada convencido de que ele o tenha feito.

Errol Morris trabalha em um estúdio espaçoso e arejado em Cambridge, Massachusetts. Quando o visitei, em uma tarde de frio intenso em fevereiro, ele estava editando um documentário sobre Donald Rumsfeld, com o título provisório de "O Desconhecido Conhecido". Morris conquistou seu Oscar por "The Fog of War", um brilhante documentário sobre Robert McNamara, secretário da Defesa dos Estados Unidos durante a guerra do Vietnã. Pergunto se ele conseguiu acesso a Rumsfeld.

"Até demais", diz. "Dezoito horas de entrevistas".

Morris tem o cabelo grisalho, cortado rente, e um rosto largo e simpático, dado a expressões irônicas e a sorrisos cúmplices. Antes de se tornar documentarista, foi investigador particular, e antes disso estudou História da ciência, orientado por Thomas Kuhn, o homem responsável por nos dar a expressão "mudança de paradigma". Kuhn era o que Morris descreve como relativista pós-moderno. Era cético quanto à ideia de verdade objetiva, enquanto Morris, desde a infância, se apega fortemente à convicção de que a verdade existe, mesmo que não possa ser provada. Kuhn sustentava que diferentes paradigmas, ou eras científicas, eram "incomensuráveis", o que significa que não podem ser entendidos um com relação ao outro. Portanto, argumentava, era um erro ver a História da ciência como movimento progressivo em direção da verdade. Mas Morris rebatia o professor argumentando que, se os paradigmas fossem incomensuráveis, então o passado seria incomensurável, e qualquer história da ciência seria impossível. Kuhn se frustrava tanto com a teimosia do orientado que, de acordo com Morris, certa vez jogou um cinzeiro nele.

Mas Morris não se deixou abalar. Como escreveu mais tarde em um ensaio sobre a verdade, "verdade é algo que existe, mas muitas vezes temos interesses ocultos em negá-la ou escondê-la. Além disso, não é pensar alguma coisa que a torna verdade. A verdade não é relativa. Não é subjetiva. Pode ser difícil de desvendar, por estar oculta. As pessoas podem preferir desconsiderá-la. Mas verdade existe, e a busca da verdade também: tentar descobrir o que realmente aconteceu, tentar determinar como as coisas realmente são".

É essa convicção, e o fato de que tantas pessoas acreditam que sabem o que aconteceu sem que tenham qualquer conhecimento das provas, que despertou seu interesse quanto aos homicídios da família MacDonald. Harvey Silverglate, um dos advogados de MacDonald, é um velho amigo de Morris e foi ele que primeiro contou ao amigo sobre as anomalias, dúvidas e inconsistências que havia encontrado no caso da promotoria. "O motivo para que eu decidisse estudar o assunto", diz Morris, "é que erros são dignos de exame, qualquer que seja a causa ou ocasião. O assunto me interessa muito. Como chegamos a acreditar em coisas que não são verdadeiras ou podem ser falsas. O título do meu livro [uma citação de Edgar Allan Poe] captura meu pensamento sobre o caso e sobre muitas outras coisas. E certamente tem ramificações no ramo geopolítico. Para mim, é algo que se aplica ao Iraque e ao Vietnã, guerras horrendamente destrutivas criadas com base em falsas crenças".

O que Morris está realmente colocando em discussão aqui é a maneira pela qual nos persuadimos de que informação constitui prova quando ela constituiu apenas informação. Ele queria fazer um filme sobre o caso, originalmente, mas diz que isso não interessou a pessoa alguma. Descreve uma reunião com o executivo de um estúdio, que lhe disse que não havia como produzir o filme. E quando Morris quis saber o motivo, o executivo respondeu: "Aquele homem assassinou a família".

É uma crença comum nos Estados Unidos, e sua prevalência, alega Morris, tem muito a ver com o relato difundido por McGinniss. No livro, Morris afirma que "Jeffrey MacDonald foi condenado à história criada em torno dele".

Em "Final Vision", McGinniss rebate com frieza, afirmando que o juiz Dupree não baseou suas constatações evidenciarias "em um livro publicado quatro anos mais tarde", e acrescentando que a condenação foi sustentada em tribunais de recursos antes da publicação de "Fatal Vision". Em uma série de e-mails, McGinniss demonstrou menos circunspecção com relação ao livro de Morris, definindo-o como "uma verdadeira bosta, um livro prostituído e mendaz".

O caso MacDonald gera opiniões fortes de lado a lado. Não é só por os envolvidos terem dedicado anos a debater o caso, e nem por acreditarem fervorosamente que estão buscando ou defendendo a verdade. Existe também a sensação de que aqueles que discordam deles estão agindo de má fé. Ainda que Morris insista em que não deseja se concentrar em McGinniss, não resiste a criticar o caráter do escritor rival. Fala com desdém sobre "Heroes", o livro de memórias de McGinniss. "Considero uma enorme ironia", diz, "aquelas passagens que McGinniss escreveu em 'Heroes' descrevendo sonhos em que mutilava sua família". Ele está se referindo a uma seção em que McGinniss transcreve diários nos quais registra sua culpa e ansiedade por trocar sua primeira mulher e filhos pela pessoa que se tornaria sua segunda mulher.

"Morris usa aquilo para tentar me comparar a MacDonald?", diz McGinniss. "É tanto patético quanto ridículo. Mas se você vai levar a alegação a sério, por favor ressalte que escrevi sobre os sonhos terríveis que tinha na época, nos quais minhas filhas eram mutiladas e destruídas. Em ponto algum afirmei ter sonhado que era eu que as atacava".

McGinniss está certo, mas a interpretação de Morris é instrutiva. Boa parte do caso MacDonald depende daquilo em que você acredita, ou da pessoa em quem acredita, mas ao citar erroneamente o que McGinniss tem a dizer, seja por descuido ou deliberadamente, Morris só solapa a própria credibilidade. E isso nos deixa com um problema epistemológico. Sem acesso às provas originais, é preciso confiar em interpretações. Mas será que os intérpretes merecem nossa confiança? Em que momento os fatos começam a ser influenciados pelas opiniões?

Pergunto a Morris se ele considera McGinniss uma testemunha confiável. "O que você quer que eu diga?", ele suspira. "Ficou claramente demonstrado no tribunal o enorme número de coisas sobre as quais McGinniss mentiu. E isso vai bem além de ele ter iludido MacDonald quando às suas intenções, o que evidentemente fez. Se o que teremos aqui, em última análise, é um tribunal para decidir em quem deveríamos acreditar, não creio que deveríamos acreditar em pessoa alguma, nem mesmo em mim",

MALDIÇÃO

Morris fala sobre o caso como se fosse uma maldição, um feitiço sombrio lançado sobre todos que se envolveram nas suas inúmeras complexidades e conflitos. Ele menciona os envolvidos cujas carreiras foram impulsionadas ou travadas pelo caso, e as pessoas que morreram acreditando que a verdade havia sido sufocada por falsos testemunhos.

Em contraste, McGinniss afirma que se trata de uma história simples e clara, deliberadamente distorcida por um homicida que se recusa a aceitar sua culpa. Também mantém que jamais se deixou afundar no atoleiro criado por MacDonald.

"O livro foi publicado em 1983 e eu levei minha vida adiante", diz. Se sua reputação foi prejudicada pelo retrato nada lisonjeiro que Malcolm pinta sobre ele, em um texto que se tornou referência para o jornalismo, ele diz que ainda assim nunca se arrependeu de seu papel. E, depois de sofrer com o ataque de Malcolm, McGinniss afirma que as críticas de Morris pouco o incomodam.

"Comparado a uma aranha viúva negra como Malcolm, Morris é só um exploradorzinho barato", diz. "Sei que você sabe que ele ganha a vida principalmente dirigindo comerciais para grandes empresas norte-americanas. Nada de errado nisso, mas sua pose de artista é tão falsa quanto uma eleição na Coreia do Norte. Ele escreve sobre as muitas 'injustiças' que percebeu cometidas durante o julgamento, mas jamais informa o leitor de que todas elas foram alvo de contestação judicial nos anos posteriores, e que todos os recursos foram decididos em favor da promotoria e do juiz Dupree".

A despeito de sua antipatia mútua, há algo em que Morris e McGinniss concordam, a saber, sua posição sobre as críticas de Janet Malcolm à ética dos jornalistas. Morris rejeita a acusação central de Malcolm: "Para Janet Malcolm, iludir se torna o principal crime do jornalismo", diz Morris, "mas isso pode ser definido como o crime da existência humana, se você assim preferir. O crime, para ela, é que McGinniss tenha iludido MacDonald quanto às suas verdadeiras intenções, que ele tenha mentido e manipulado, que ele tenha traído. Para mim, esse não é o verdadeiro crime".

Morris argumenta que Malcolm mesma é culpada de uma soberba indiferença que, na prática, nada tem de mais elevado que a trapaça usada por McGinniss para se aproximar de seu alvo. MacDonald enviou "uma montanha de documentos" a ela quando Malcolm estava investigando o caso, e ela os ignorou. Em "The Journalist and the Murderer", ela trata todo o aspecto de análise das provas como uma inconveniência cansativa e fútil. "Sei que nada tenho a aprender sobre a culpa ou inocência de MacDonald com base nesse material", ela escreveu, sem ter examinado a documentação. "É como procurar provas da existência ou inexistência de Deus em uma flor".

Morris insiste em que "não pode haver interesse pela meta-história de algo se você não se interessa pela história. Essa é minha principal crítica a Janet Malcolm, a quem admiro muito --mas ela infelizmente quer tratar apenas daquilo que convém a ela. Não se pode escrever sobre o relacionamento entre um jornalista e um assassino e de alguma forma evitar a questão subjacente, ou seja, a de o suposto assassino ter ou não cometido o crime".

Ele faz uma comparação entre McGinniss e Malcolm sob a qual os dois podem ser considerados igualmente culpados de abandonar MacDonald à desesperança de seu destino. "É como a parábola do homem que está se afogando. O que você prefere, alguém que diz que não jogaria um colete salva-vidas para quem está se afogando porque a pessoa é um assassino psicopata e misógino, ou a postura pós-moderna, sob a qual a pessoa que tem o colete salva-vidas diria que quem está se afogando não compreende bem a relação entre os dois? 'Você me vê como alguém que está seguro em terra e com um colete salva-vidas nas mãos, mas eu me vejo como alguém que está estudando a relação entre uma pessoa que está se afogando e uma pessoa que está em terra e tem um colete salva-vidas, e por conta disso não posso me envolver'".

Desde os homicídios, a melhor esperança de MacDonald quanto a obter um colete salva-vidas é uma mulher chamada Helena Stoeckley. Ela já morreu, como muitos dos envolvidos no caso, mas na época dos homicídios era uma usuária regular de drogas e moradora de Fayeteville, perto de Fort Bragg. Ela confessou que havia estado no número 544 da rua Castle Drive na noite dos homicídios. Quando a polícia do Exército chegou à casa, MacDonald descreveu a invasora como uma mulher de peruca loira, chapéu e botas brancas. A caminho do local, um dos policiais viu uma mulher que atendia à descrição em uma esquina, não muito longe da casa de MacDonald --uma presença suspeita, às 4h. Stoeckley admitiu que tinha estado na casa, e ao longo dos anos confirmou sua presença. Mas em outros momentos retirou a confissão, e também declarou que havia tido um caso com MacDonald e que estava tentando comprar drogas dele --duas alegações descartadas por todos os envolvidos.

Uma das pessoas a quem Stoeckley supostamente confessou foi um policial federal norte-americano chamado Jimmy Britt. Vinte e cinco anos depois do julgamento, Britt repentinamente decidiu testemunhar contando que havia transportado Stoeckley de carro de Greenville, Carolina do Sul, a Raleigh, Carolina do Norte, para o julgamento, uma viagem de cinco horas. Durante o percurso, ele depôs, Stoeckley lhe teria contado que esteve na casa de MacDonald na noite dos homicídios. Ele também depôs que havia visto um promotor chamado James Blackburn, em uma reunião antes do julgamento, ameaçar Stoeckley com um processo caso ela depusesse sobre sua presença na casa. Blackburn nega qualquer coerção e insiste em que Britt não estava presente na reunião. Stoeckley por fim negou no tribunal (mas não diante do júri) que tivesse ido à casa dos MacDonald na noite dos homicídios.

Em "Wilderness of Error", Morris escreve que "a importância do depoimento de Stoeckley e o resultado do julgamento em si dependem de em quem você acredita: Blackburn ou Britt". Mas na audiência em Wilmington, no ano passado, ficou comprovado que Britt não levou e não poderia ter levado Stoeckley de Greenville para o julgamento, porque o trabalho coube a uma equipe de diversos policiais federais e existiam provas conclusivas de que Britt não era parte dela. Em outras palavras, ele mentiu em seu depoimento. E, se mentiu sobre a viagem, teria mentido também sobre a ameaça de Blackburn a Stoeckley?

O livro de Morris já havia sido impresso quando surgiu essa informação, e uma resenha fortemente negativa define o resultado como "The Wilderness of Errol". Perguntado sobre em quem acredita hoje, Blackburn ou Britt, sua resposta tem aquele tom relativista que Morris diz desprezar. "Se acredito que as diversas contestações da promotoria ao relato de Britt invalidam tudo que ele disse?", ele pergunta, retoricamente. "Não, não acredito. Pessoas recordam coisas que não aconteceram e esquecem coisas que aconteceram? Sim, todos os dias".

Blackburn, que era promotor assistente na Justiça federal norte-americana, perdeu sua licença para praticar Direito em 1993 por violações éticas, e terminou preso por desfalque e fraude. Morris, compreensivelmente, levanta questões sobre seu caráter e confiabilidade. Mas também existem informações de que Britt, o policial federal, havia deixado seu posto amargurado com o governo, e parece provável, de acordo com provas apresentadas em Wilmington, que ele soubesse que certos documentos federais deveriam ser destruídos em prazo de 25 anos --o que explica a data de seu depoimento.

O caso de MacDonald tem cota mais que generosa de esquisitices. Todas as verdades estabelecidas parecem repousar sobre uma base de dúvidas, e todos os personagens estão envolvidos em controvérsias. Uma das figuras mais controversas é o juiz Dupree. Até mesmo McGinniss, em "Fatal Vision", admite que Dupree demonstrava parcialidade física, se não judicial, em desfavor de Bernie Segal, o principal advogado de defesa, vindo da Califórnia. "Desde os primeiros dias do julgamento", escreveu McGinniss, "a expressão mais vista no rosto de Dupree, quando Segal interrogava testemunhas, era a de repulsa".

Segal acreditava que Dupree, um cavalheiro sulista da velha escola, fosse antissemita. Ou talvez ele simplesmente não gostasse de californianos. O certo é que o juiz foi pouco simpático a MacDonald, rejeitando a admissibilidade de testemunhos psiquiátricos de que o acusado não apresentava o perfil de alguém capaz de cometer um homicídio tão horrendo, e impedindo que testemunhas que haviam ouvido a admissão de Stoeckley depusessem sobre isso.

Mas a figura mais controversa é a de Jeffrey MacDonald. Ele continua preso, e ainda insiste em sua inocência. Em uma cerimônia realizada na penitenciária em 2002, ele se casou com uma mulher igualmente convencida de que ele é inocente. Mas nada quanto a ele parece normal. Sua história sobre os hippies que invadiram a casa parece absurda. "Ácido é demais. Matem os porcos"? Isso parece mais um diálogo ruim em um dos filmes mais caricatos de Roger Corman. E por que uma quadrilha usaria tamanho esforço e ferocidade para matar uma mulher grávida e duas crianças mas causaria apenas um ferimento por faca em um homem forte e portanto perigoso?

"Os silogismos que criamos em nossas cabeças são muito interessantes", diz Morris. "Acreditamos estar apontando uma conclusão lógica irrebatível mas não é isso que fazemos. Por que MacDonald está vivo e sua família morreu? Boa pergunta. Para mim, é lícito invertê-la: você quer dizer que, porque está vivo, foi ele que matou a família?"

Da mesma forma, por que um homem que jamais havia mostrado tendências agressivas, conhecido como marido e pai carinhoso, repentinamente assassinaria a própria família? A promotoria jamais conseguiu apontar para um motivo convincente. McGinniss tampouco. Em lugar disso, ele reuniu um grande conjunto de avaliações de caráter negativas e exemplos de pequenos deslizes que criam o retrato de um homem aparentemente normal que, sob um exterior cuidadosamente construído, abrigava um feroz psicopata.

McGinniss descobriu que MacDonald estava tomando Eskatrol, um remédio para dieta que incluía anfetaminas, e sugere que o remédio, e uma escala de trabalho impiedosa, deflagraram sua psicopatia latente. Morris rejeita com desdém o relato de McGinniss sobre aquela noite de fevereiro.

"MacDonald chega em casa e descobre que uma das meninas fez xixi na cama, e perde o controle por estava tomando Eskatrol, o que leva o narcisismo/misoginia/psicopatia/sociopatia subjacentes em sua personalidade a motivá-lo a matar toda sua família? Minha mulher é boa nessas coisas, e o caso incomoda a todos nós. Ela diz que MacDonald era médico de pronto-socorro. Devemos acreditar que ele nunca havia visto fluidos corporais, sangue, urina, sabe Deus mais o quê? Um médico de pronto-socorro que servia nos boinas verdes percebe que a cama de uma filha está molhada. Nossa, urina, acho que vou matar mundo?"

Morris se comunicou em diversas ocasiões com MacDonald, embora não tenha mantido contato enquanto escrevia o livro, para evitar que a emoção alterasse seu foco. "Ele é uma pessoa problemática", diz. "Há alguma coisa que ele tenha me tido, algo em seu comportamento, que revele que matou a família? Não, na verdade não. Para mim a questão não é se gosto de Jeffrey ou não, porque gosto dele, mas ainda assim acho que isso é irrelevante. Há muita gente que realmente gostava dele em 1969 e 1970, o admirava e à sua família, e o via como pai carinhoso".

Ao contrário de Morris, McGinniss entrevistou os jurados do tribunal e diz que eles também reagiram positivamente a MacDonald. "Nenhum estava feliz por condená-lo. Todos gostaram de MacDonald e tinham pena dele. Mas também sabiam que ele havia cometido os crimes, e por isso, ainda que com lágrimas nos olhos, cumpriram seu dever como cidadãos".

A causa última da condenação de MacDonald não foi sua personalidade ou estilo de vida, mas as provas forenses. Morris alega que a cena do crime foi adulterada pela polícia do Exército, que atendeu ao primeiro chamado, e que portanto os elementos forenses não são confiáveis. Mas todos os casos criminais contestados que ganham celebridade tem sua prova emblemática: no caso de OJ Simpson, era a luva que não lhe servia. No assassinato de John Kennedy, é a chamada bala mágica. No de MacDonald, é o paletó de pijama.

Colette MacDonald foi encontrada pela polícia do Exército com o paletó de pijama de seu marido dobrado e posicionado sobre o peito. MacDonald disse ter tirado o paletó do pijama e coberto a mulher com ele depois de tentar reanimá-la, sem sucesso. Mas havia 48 perfurações com um furador de gelo, no tecido, e MacDonald só recebeu uma facada. Ele explicou o fato dizendo que o paletó havia sido puxado por sobre sua cabeça quando os atacantes tentaram esfaqueá-lo com o furador de gelo. No tribunal, a promotoria mostrou que o paletó havia sido dobrado de uma maneira que levava 21 dos 48 furos encontrados nele a se alinharem aos ferimentos no peito de Colette, o que sugere que MacDonald posicionou o paletó sobre o peito de sua mulher antes de atacá-la, quando ela já estava inconsciente. Morris argumenta que a promotoria reteve provas que demonstravam que a direção das fibras do pijama não coincidia com a hipótese exibida no tribunal.

"Creio que o paletó de pijama tenha sido usado de maneira deliberadamente enganosa", ele diz. "Há um padrão sistemático de manipulação de provas, retenção de provas e ocultação de provas pela promotoria".

Um dos promotores envolvidos no caso, Brian Murtagh, me enviou um longo e-mail explicando exatamente por que a demonstração usando o paletó de pijama era acurada e conclusiva. Tentando definir quem estava certo e o que era real, comecei a compreender a relutância de Malcolm em examinar as provas. O caso às vezes parece uma daquelas imagens que mostram dois rostos entrelaçados mas distintos, apenas um dos quais visível de cada vez.

Acreditar em uma narrativa é rejeitar a outra. Mas apenas uma pode ser verdade. Existe uma selva de erros ou uma terra arrasada de verdades. Ou MacDonald passou 34 anos na cadeia por um crime que não cometeu ou ele é um psicopata manipulador asseverando sua inocência desavergonhadamente. Nenhuma das versões é palatável.

"Tenho uma teoria do lismo humano", diz Morris, com um sorriso brincalhão. "Como os moluscos, deixamos essa trilha de lismo ao nos movimentarmos, e ela impede que vejamos o mundo. Nosso desejo de criar narrativas, de suprimir certas observações em favor de outras. Nosso fracasso em recolher provas que possam interferir com nossas crenças centrais. Não importa. O que importa é que, na chegada, obscurecemos o mundo que nos cerca de maneira tal que ele se torna irrecuperável. Não é que a verdade seja impossível de determinar; nós é que a tornamos impossível de determinar. Basicamente, podemos descrever o processo como defecar na realidade".

Dentro de alguns meses, o juiz de Wilmington reportará suas conclusões sobre a longa saga do caso MacDonald. É a última chance de liberdade para o ex-médico, aos 69 anos. McGinniss e Morris têm a mesma opinião: não acreditam que ele venha a ter sorte.

Tradução de PAULO MIGLIACCI.


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