Folha de S. Paulo


Uma viagem pela Grã-Bretanha de Margaret Thatcher

Grande parte da vida adulta de Eileen Jeffrey foi moldada por uma mulher que ela nunca conheceu pessoalmente, e uma primeira-ministra na qual ela nunca votou.

"Eu me lembro de Margaret Thatcher, é claro que lembro", diz Jeffrey, de pé à sombra da estação South Quay Docklands do VLT, com uma mão pousada sobre o carrinho de compras. Ela para, e aí pisca por trás dos óculos respingados pela chuva. "Eu não concordava com algumas das coisas que ela fazia."

Jeffrey, 60, vive há 31 anos na Isle of Dogs, no leste de Londres. Quando se mudou de Surrey para lá, vivia com as três filhas pequenas em uma moradia subsidiada, e trabalhava no moinho de farinha McDougalls, no cais de Millwall. Naquela época, havia um sentimento comunitário, e Jeffrey conhecia todos os seus vizinhos pelo nome, mas o acesso era ruim. "Só havia um ônibus, e nenhuma loja até construírem a Asda", diz ela.

Quando foi eleita primeira-ministra, em 1979, Thatcher declarou a sua intenção de arrastar combalidos setores econômicos britânicos para uma nova era de prosperidade econômica. Um ano depois, o moinho McDougalls fechou, e Jeffrey perdeu o emprego.

Em meados dos anos 1980, uma nova legislação sindical permitiu que grande parte do setor jornalístico transferisse suas operações gráficas para Wapping, e Jeffrey foi trabalhar na cantina da gráfica West Ferry.

Ao seu redor, toda a paisagem mudava: em 1981, o governo Thatcher criou a Corporação de Desenvolvimento das Docklands Londrinas, para reconstruir 22 km2 de docas abandonadas. A área foi declarada uma Zona de Empreendimentos --as restrições de planejamento urbanístico foram atenuadas, e foram oferecidos incentivos financeiros a incorporadores a fim de atrair grandes empresas para lá. Edifícios altos brotaram no velho bairro de Jeffrey; o horizonte sumiu por trás de um paredão de aço e vidro.

Houve um afluxo de novos moradores --executivos de bancos e empresários que podiam pagar o inflacionado IPTU--, e Jeffrey descobriu que já não sabia mais o nome das pessoas que moravam vizinhas a ela. Em 1990, quando Thatcher deixou o cargo, a Isle of Dogs que Jeffrey conhecera se tornara irreconhecível.

O que ela sente, agora que Thatcher morreu, sobre o legado dessa mulher poderosa, que tanto fez para moldar o curso da vida de Jeffrey?

Há um resignado encolher de ombros: "Às vezes, me deixavam com raiva as coisas com que ela costumava aparecer. Ela podia achar que o que estava fazendo era certo, mas muita gente não achava".

Jeffrey nunca votou em Thatcher, e no entanto, durante 11 anos, viveu as consequências da ideologia política e pessoal da Dama de Ferro. Em todo o país, há pessoas iguais a Eileen Jeffrey, que continuam a sentir o mesmo tipo de impacto ressonante.

Faz uma semana que a baronesa Thatcher morreu, e já virou praticamente um clichê falar em como ela provocou divisões. Na imprensa, há um alarido quase constante. Há quem argumente que ela foi uma defensora do empreendedor que se lança por conta própria, uma amiga da aspiração que permitiu que beneficiários da moradia social comprassem suas próprias casas, e uma política de convicção, que encarou de cima para baixo os sindicatos que ameaçavam deixar o país de joelhos.

"Ela fez o que deveria ser feito", diz Rory Scott Russell, 34, que trabalha no setor de gás e petróleo, em escritórios de Canary Wharf que ficam a poucas centenas de metros da casa de Eileen Jeffrey. "Ela fez absolutamente mais bem do que mal para os negócios."

E há quem a chame de bruxa, quem celebre sua morte dançando na rua, quem a veja como a inimiga do espírito comunitário e do autossacrifício, quem jamais perdoará o tratamento cruel que ela dispensou aos mineiros, ou a forma como levou ao chão setores econômicos em dificuldades, e deixou as classes trabalhadoras sem emprego.

Mesmo os que são jovens demais para se lembrarem dela têm opiniões fortes. "Honestamente?", pergunta Andrew Nicholl, 26, apanhando o ônibus para casa depois de um dia de trabalho em uma fábrica perto de Sheffield. "Ela é uma vaca."

Já em Grantham, cidade de Lincolnshire onde Thatcher nasceu, há um orgulho discreto entre os seus residentes.

"Acho que ela foi maravilhosa", diz Susanne Fletcher, 52, uma ex-professora de administração de empresas. "O que ela fez pelas mulheres em particular --ela nos ajudou a entrar nas hierarquias."

A mercearia da North Parade onde Thatcher foi criada é agora um centro de saúde alternativa, oferecendo quiropraxia e tratamentos holísticos. No lado de fora, há uma pequena pilha de flores e mensagens. Um ramalhete, embrulhado em papel úmido, diz simplesmente: "Girl Power" ("poder das meninas").

Em frente à loja passa Tony Mason, 77, um ex-mineiro de Nottingham que há 15 anos, depois de se aposentar, se mudou para Grantham com sua esposa, Josephine. Mason se tornou mineiro depois de prestar o serviço militar porque "era o melhor trabalho pago disponível", e incluía moradia. Labutou por 19 anos debaixo da terra: oito horas diárias de trabalho exaustivo.

"A gente estava sempre trabalhando em espaços muito confinados", recorda ele. "Não havia banheiros lá embaixo. Você levava uma garrafa de água, alguns sanduíches numa lata, e prendia isso no cinturão."

"Mas nada de sanduíche de presunto", acrescenta sua mulher. "A carne estragaria no calor."

A maioria dos mineiros de Nottingham se recusou a aderir à greve de 1984-85 sem a aprovação de uma votação nacional. Mason, que a essa altura tinha um emprego no departamento pessoal, às vezes precisava viajar a outras minas por motivos profissionais. Quando cruzava piquetes, era xingado e chamado de pelego, e se esquivava de uma chuva de pedras. Manteve-se de cabeça baixa e foi promovido a um cargo mais graduado na mina, antes de ser dispensado aos 55 anos.

Como seguidores de toda a vida do Partido Conservador, o casal Mason votou em Thatcher. Mason diz que fez isso em parte porque, tendo experimentado a indescritível dureza de precisar descer nas minas para ganhar a vida, sentia que, numa sociedade justa, ninguém deveria ter de fazer o mesmo. Ele não lamentava ver o fim da mineração de carvão. Mas também foi porque, tendo trabalhado arduamente a vida toda e criado dois filhos, a crença de Thatcher na liberdade individual, na parcimônia e no empreendedorismo estava em harmonia com a visão pessoal do casal.

Mas, 100 km ao norte de Grantham, a história é outra. Nos arredores de Sheffield, um polo empresarial de £ 100 milhões e um novo empreendimento da Barratt Homes brotou no local de um dos mais violentos confrontos ocorridos no governo Thatcher. Em 1984, as tensões entre a polícia de South Yorkshire e mineiros grevistas da usina de coque de Orgreave se inflamaram. Houve violência. Cinquenta e um mineiros ficaram feridos, e 93 prisões foram feitas --mas todas as acusações depois foram arquivadas, em meio a acusações de detenções ilegais e perseguições mal intencionadas. A polícia de South Yorkshire posteriormente aceitou pagar £ 425 mil em indenizações.

Restam agora poucos sinais daqueles tempos conturbados. A mina fechou. A aldeia desapareceu. Hoje, o local está seccionado por uma estrada larga e movimentada, com rotatórias levando ao Parque Industrial Avançado, uma série de construções fabris modernas e angulosas, erguidas à sombra de uma gigantesca turbina eólica.

A descarada modernidade do polo empresarial faz um estrago na zona rural ao seu redor. O efeito é esquisito: as paixões do passado deixadas sob as construções, mas não propriamente esquecidas.

"Cada moitinha e cada tijolo --acabou tudo agora", diz o advogado Michael McColgan, membro da Campanha da Verdade e Justiça de Orgreave, que pleiteia um inquérito independente sobre o que aconteceu. "Não consigo pensar em nada que não seja negativo sobre Thatcher.

Escutar os conservadores no Parlamento foi como escutar um bando de meninos da escola primária lamentando a morte da sua inspetora. Ela era uma mulher tacanha."

O impacto de Orgreave continua sendo sentido. "A maioria das pessoas presas naquele dia não tinha condenações prévias", diz McColgan. "O trauma de ser preso, mantido sob custódia durante bastante tempo e então esperar um ano para que chegue a data do julgamento, e neste meio tempo sabendo que sua mina seria fechada --isso teve um efeito terrível sobre eles e suas famílias.

Vários dos mineiros dizem que não querem falar mais nisso porque é simplesmente doloroso demais. Não posso perdoar Thatcher por isso."

Nem todos, porém, viam a Dama de Ferro como uma inimiga da classe trabalhadora. David Steel, engenheiro da localidade de Washington, no condado de Tyne and Wear, nasceu dois anos antes de Thatcher assumir o poder.

Ele se lembra de que seus pais, operários, compraram por £ 7.000 em 1989 a moradia social semiautônoma em que a família vivia, graças a um sistema de direito à aquisição de imóveis instituído por Thatcher. Doze anos depois, o casal vendeu a casa por £ 75 mil.

"Muita gente da classe trabalhadora que odiava Margaret Thatcher com paixão se esquece dessas coisas", diz Steel. "A maioria das pessoas no conjunto habitacional comprou sua casa. Meu argumento é que não foi tão ruim quanto as pessoas acham."

Dois tios de Steel eram mineiros que se envolveram na greve. Quando as minas fecharam, diz ele, "eles receberam enormes pagamentos e foram ajudados a achar novos empregos, que eles recusaram".

"Antes de Thatcher, havia lixo nas ruas, os sindicatos teriam feito todo mundo trabalhar uma semana de três dias se pudessem. As pessoas entravam em greve se não pudessem fazer uma pausa para o chá. Alguma coisa precisava ser feita."

No entanto, ele admite: "Se você disser o nome de Thatcher no lugar de onde eu venho, é como dizer aquela palavra que começa com F."

Em Liverpool, os ânimos estão ainda mais à flor da pele. Aqui, os anos 1980 não foram uma década de carteiras recheadas, drinques flamejantes e agendas Filofax, e sim uma época de desemprego elevado e privação social. Houve distúrbios em 1981 no bairro pobre de Toxteth.

BRUXA

Cortes no setor público, combinados com uma perda ainda maior dos empregos, contribuíram para a sensação de que Thatcher e seu governo não se importavam em salvar Liverpool do declínio inevitável, e levaram à ascensão da Tendência Militante na Câmara local. Então, em 1989, veio a tragédia no estádio de Hillsborough e o subsequente acobertamento policial.

"Ela era uma puta", diz Matthew Parry, 26, comerciante no mercado local. Na sua banca estão pendurados vários cachecóis vermelhos e brancos, as cores do Liverpool FC, com uma só palavra escrita: "Justiça".

"Ela ajudou a acobertar o que aconteceu em Hillsborough", diz Parry. "Ela roubou o meu leite quando eu estava na escola, então precisamos começar a pagar por ele. Meu avô trabalhava na estiva e perdeu seu emprego por causa dela. Ela era uma bruxa, né?"

O apoio a Thatcher é escasso por aqui. Os comentários menos inflamados vieram de pessoas como Brenda Chong, uma mãe de quatro filhos que se sente desiludida com todo o sistema político, em vez de reservar sua ira para um indivíduo em particular.

"Não voto porque não importa", diz Chong, 41. "Não importa quem você colocar no poder, eles de qualquer maneira vão bagunçar tudo."

Hoje, o cais de Liverpool foi embelezado e reconstruído. Há um Museu Marítimo e uma atração turística dedicada aos Beatles. Famílias e turistas passeiam com câmeras, tirando fotos da suave amplidão do rio Mersey e da familiar silhueta do Royal Liver Building. Mas, embora os prédios tenham mudado, as emoções permanecem.

"Quando penso naquela mulher e no que ela fez para esta cidade...", diz o músico Ned Murphy, 46, que então sacode a cabeça, sem palavras. "Acho uma pena que não estejam fazendo um minuto de silêncio [nos jogos de futebol], porque aí todo mundo poderia vibrar."

"Eu me lembro de como era [com Thatcher no poder]. Era devastador. Havia zero emprego. Meu pai era estivador e perdeu o emprego. Não tínhamos dois centavos para esfregar um no outro. Ela não era nada amiga da classe trabalhadora. Ela só ligava para os ricos."

De volta à estação South Quay Docklands do VLT, a garoa se transformou em chuva. Eileen Jeffrey tem um trem a apanhar. Antes de ir embora, ela me conta que, embora discordasse de algumas das coisas que Thatcher fez, sente-se triste pela morte da ex-primeira-ministra. Ela não consegue explicar isso para si mesma. Mas talvez, após uma vida vivida em uma cidade e em um país transformados por uma das figuras políticas mais polêmicas do século, será um pouco estranho saber que ela finalmente se foi.

Tradução de RODRIGO LEITE.


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