Folha de S. Paulo


Sam Parnia, o médico que pode trazê-lo de volta da morte

O médico Sam Parnia pratica uma especialidade altamente requisitada: a ressurreição. Seus pacientes podem ficar mortos durante várias horas antes de voltarem à vida, com décadas de vida pela frente.

Parnia é o chefe da UTI do Hospital Universitário Stony Brook, em Nova York. Se você sofresse uma parada cardíaca no hospital de Parnia no ano passado e fosse submetido a técnicas de ressuscitação, teria tido 33% de chances de ser trazido de volta. Em um hospital americano médio, essa cifra cairia para 16%, e (embora os dados sejam duvidosos) para aproximadamente a mesma coisa, ou menos, se o seu coração passasse de bater dentro de um hospital britânico.

Numa extrapolação conservadora, Parnia acredita que os métodos relativamente baratos e simples que ele usa para restaurar os processos vitais poderiam poupar até 40 mil vidas americanas por ano, talvez 10 mil vidas britânicas. Não é surpreendente que Parnia, que se formou no Reino Unido e se mudou para os EUA em 2005, esteja frustrado com a aparente demora e relutância do "establishment" médico em escutar tais cifras. Ele já escreveu um livro na esperança de difundir a mensagem.

"The Lazarus Effect" ("o efeito Lázaro") é nada menos do que uma tentativa de reformular nossa compreensão sobre a morte, com base no íntimo conhecimento adquirido por Parnia acerca da agora porosa natureza daquele que já foi "o país não descoberto, do qual nenhum viajante retorna". Sua obra a respeito da ressuscitação logicamente o levou a questões mais amplas sobre o que constitui ser e não ser. Em particular, ele pergunta o que acontece exatamente, se você está jazendo morto antes da ressuscitação, com o seu ser e com o seus respectivos caráter e lembranças --sua "alma", como ele não se intimida em chamar-- antes que eles acabem por lhe serem restituídos, horas depois.

Quando encontro Parnia, ele saiu há pouco de um avião procedente de Nova York, após um voo noturno com sua esposa e sua filha bebê, e a ressureição específica pela qual ele anseia depende do milagre de um café forte. Seu jeito de falar é ao mesmo tempo brando e direto, cheio de um zelo cuidadoso por suas descobertas. Quando nos sentamos à mesa frente a frente, ele é capaz de fazer com que a mais extraordinária afirmação soe calmamente racional. "É minha crença", diz ele, "que qualquer um que morra de uma causa reversível não deveria mais morrer. Ou seja: toda vítima de ataque cardíaco não deveria mais morrer. Preciso ser cuidadoso quando declaro isso, porque as pessoas vão dizer: 'Meu marido morreu recentemente, e você está dizendo que ele isso não precisava ter acontecido'. Mas o fato é que os ataques cardíacos propriamente ditos são bem facilmente administráveis. Se você conseguir administrar adequadamente o processo da morte, então você pode ir lá, retirar o coágulo, colocar um 'stent', o coração vai funcionar na maioria dos casos. E o mesmo vale para infecções, pneumonia ou o que seja. As pessoas que não reagem a antibióticos a tempo, nós poderíamos mantê-las lá por um tempo maior [depois de morrerem], até reagirem".

A crença de Parnia é amparada por sua experiência à margem da vida e da morte em UTIs ao longo das últimas duas décadas --ele se formou no hospital Guy's and St Thomas', em Londres--, e particularmente nos últimos cinco anos, aproximadamente, quando ocorreu a maioria dos avanços no campo da ressuscitação. Tais avanços --mais notavelmente o resfriamento drástico do cadáver para retardar a deterioração neuronal, e o monitoramento e manutenção do nível de oxigenação do cérebro-- ainda não foram aceitos como possibilidades na prática médica. Parnia está em missão para mudar isso.

A única coisa certa na vida de todos nós, diz ele, é que todos um dia passaremos por uma parada cardíaca. Todos os nossos corações vão parar de bater. O que acontece nos minutos e horas depois disso serão potencialmente os momentos mais significativos da nossa biografia. No momento, entretanto, é grande a probabilidade de nos encontrarmos nesses momentos cruciais no ambiente médico das décadas de 1960 ou 70.

O tipo de RCP (ressuscitação cardiopulmonar) à qual estamos familiarizados por conta dos dramas médicos --o frenético bombeamento do peito-- continua arraigado, alega Parnia, na sua descoberta casual em 1960. Continua sendo um tipo aleatório de procedimento, muitas vezes realizado mais com torcida do que com expectativa de sucesso. Isso é, em parte, uma questão dos profissionais envolvidos. Parnia fica discretamente entristecido pelo hábito mundial dos hospitais de, em caso de morte, mobilizar os médicos mais novatos para "dar uma mão na RCP". É como se o pessoal hospitalar desistisse antes mesmo de começar.

"A maioria dos médicos faz a RCP por 20 minutos e aí para", diz ele. "A decisão de parar é completamente arbitrária, mas se baseia em um instinto de que depois daquele tempo o dano cerebral é muito provável, e você não quer trazer as pessoas de volta para um estado vegetativo persistente. Mas, se você entende todas as coisas que estão acontecendo no cérebro nesses minutos --como agora conseguimos entender--, então você pode minimizar essa possibilidade. Há numerosos estudos que mostram que, se você implementar todos os passos de ressuscitação juntos, você não só consegue duplicar seus índices de sobrevivência, como também as pessoas que voltam não ficam cerebralmente danificadas."

No mundo ideal de Parnia, a forma como as pessoas são ressuscitadas levaria em conta inicialmente o conhecimento de que as máquinas são muito melhores em fazer a CPR do que os médicos. Depois disso, sugere ele, o próximo passo é "entender que você precisa elevar o nível de cuidado". A primeira coisa é resfriar o corpo para melhor preservar as células cerebrais, que estão a essa altura no processo de apoptose, ou suicídio.

Ao mesmo tempo, é necessário manter o nível de oxigênio no sangue. No Japão, essa já é uma prática padrão nas salas de emergência. Usando uma técnica chamada ECMO, o sangue do falecido é bombeado para fora do corpo, atravessa uma membrana oxigenadora e é devolvido ao organismo. Isso garante o tempo necessário para a solução do problema subjacente que causou a morte da pessoa. Se o nível de oxigênio no cérebro cai abaixo de 45% do normal, o coração não se reativa, segundo as pesquisas de Parnia. Com qualquer coisa acima disso, há uma boa chance.

Potencialmente, por esse meio, o tempo morto pode ser prolongado para horas, e ainda assim há resultados positivos. "O maior tempo que eu conheço é de uma menina japonesa que eu cito no livro", diz Parnia. "Ela havia passado mais de três horas morta. E foi ressuscitada por seis horas. Depois, ela voltou à vida em perfeito estado, e, segundo me disseram, recentemente teve um bebê."

Foi uma versão truncada desse processo, no Chest Hospital, em Londres, que permitiu que o jogador Fabrice Muamba, do Bolton, fosse devolvido à vida depois de desmaiar no gramado do estádio White Hart Lane, no ano passado. Parnia assistiu ao desenrolar do fato pela TV, e posteriormente continuou lendo que Muamba havia estado, durante até uma hora, "morto" --mas sempre entre aspas. Ele ri. "Os jornalistas inventaram um novo termo, 'clinicamente morto'. Não sei o que esse termo significa. Mas o fato é que Muamba esteve morto. E não foi por milagre que ele foi trazido de volta à vida, foi pela ciência."

Uma das coisas mais estranhas que se nota ao ler o livro de Parnia é a ideia de que podemos estar cativos das percepções históricas sobre a vida e a morte, e que essas constantes máximas se tornaram ultimamente mais vagas do que a maioria de nós toleraria. A outra faceta da pesquisa de Parnia, na qual ele comanda uma equipe na Universidade de Southampton, é a respeito daquilo que a maioria das pessoas tende a chamar de "experiências de quase-morte", e que ele chama de "experiências de morte real". Parnia já conversou com muitas pessoas sobre o que elas se lembram de terem experimentado enquanto estavam mortas na UTI dele. Cerca de metade das pessoas afirmava ter lembranças claras, das quais muitas envolviam olhar para baixo e ver a equipe cirúrgica trabalhando sobre o corpo delas próprias, ou então a familiar imagem de um limiar brilhante ou um túnel de luz para o qual elas eram atraídas. Parnia coleta há quatro anos relatos detalhados dessas experiências. Pergunto a quais conclusões ele chegou.

Ele sugere que é agnóstico a respeito da fonte dessas lembranças subjetivas, assim como a respeito de questões sobre a mente e a matéria. "Quando comecei a me interessar por essas questões de mente/corpo, fiquei perplexo por descobrir que ninguém tinha nem começado a levantar uma teoria sobre exatamente como os neurônios no cérebro podem gerar pensamentos", diz ele.

"Sempre supomos que todos os cientistas acreditam que o cérebro produz a mente, mas na verdade há muitos que não têm certeza disso. Mesmo neurocientistas proeminentes, como sir John Eccles, um ganhador do Prêmio Nobel, acreditam que jamais iremos entender a mente por meio da atividade neuronal", afirma Parnia.

"Tudo o que eu posso dizer é o que observei a partir do meu trabalho. Parece que, quando a consciência se interrompe na morte, a psique, ou a alma --com isso não estou falando de fantasmas, estou falando do seu ser individual-- persiste pelo menos durante aquelas horas antes de você ser ressuscitado. Daí podemos justificadamente começar a concluir que o cérebro está agindo como um intermediário para manifestar sua ideia de alma ou de ser, mas pode não ser a fonte ou originador disso... Acho que os indícios estão começando a sugerir que deveríamos manter nossas mentes abertas para a possibilidade de que a memória, embora seja obviamente uma entidade científica de algum tipo --não estou dizendo que ela seja mágica ou algo assim-- não seja neuronal."

Ele tem alguma fé religiosa?

"Não", afirma, "e não tenho nenhuma abordagem religiosa para isso. Mas o que sei é que todo campo de investigação que costumava ser tratado pela religião ou pela filosofia é agora tratado e explicado pela ciência. Uma das últimas coisas a serem examinadas dessa forma é a questão do que acontece quando morremos. Essa ciência da ressuscitação nos permite olhar para isso pela primeira vez".

Enquanto esses estudos mais esotéricos prosseguem, Parnia quer garantir que cada vez mais gente seja devolvida da morte para contar qualquer história que puder. "Ainda tenho colegas de UTI que dizem: 'Não sei por que estamos fazendo todo esse troço'", diz ele. "Há não muito tempo, fui a uma entrevista de emprego em um hospital-escola de Nova York, e me disseram que se um paciente dá entrada, tem uma parada cardíaca e vai parar na unidade de cuidados cardíacos, ele é resfriado, mas se for parar na UTI o médico encarregado não acredita nisso.

Ele acha que isso bloqueia seus leitos, então não faz. Não vejo isso exatamente como uma negligência, porque não há, por enquanto, nenhuma autoridade que nos diga que esse é o padrão que deveríamos usar. Mas certamente deveria haver." Tudo isso, digo eu, deve ter influenciado muito o senso de moral do próprio Parnia. Seu trabalho o conforta ou o deixa paranoico?

Ele sugere que a experiência de conversar com pessoas que voltaram da morte só serve para reforçar sua curiosidade acerca do processo pelo qual essas pessoas passaram, e que ele às vezes ajudou a reverter. Além disso, ele diz: "Na UTI, vejo pessoas morrendo todos os dias, e cada vez que acontece uma parte de mim pensa: um dia serei eu. Haverá pessoas se aglomerando em torno do meu leito, decidindo me ressuscitar ou não, e uma coisa é certeza: não quero que seja apenas questão de sorte se eu vou acabar com o cérebro danificado ou mesmo vivo".

A MÁQUINA DO "MILAGRE"

O QUE É A ECMO?

Durante uma parada cardíaca, o sangue não é capaz de levar oxigênio ao cérebro, causando um dano irreparável às células cerebrais, e tornando a recuperação incerta. A RCP (ressuscitação cardiopulmonar), em que a circulação é manualmente estimulada para adiar o dano cerebral, é tradicionalmente considerada a última chance para os pacientes.

Com a ECMO, no entanto, esses mesmos pacientes podem ser trazidos da beira do abismo e mantidos vivos enquanto os médicos trabalham no diagnóstico e tratamento, fazendo com que a RCP pareça comparativamente primitiva. Esse método altamente tecnológico de ressuscitação é conhecido como ECPR, e pode representar uma revolução na prática médica se for adotado por hospitais no mundo todo.

COMO FUNCIONA?

Uma máquina de oxigenação por membrana extracorpórea (ECMO, na sigla em inglês) é um aparelho avançado de apoio à vida. Duas agulhas de cateter são inseridas, uma em uma veia importante, e outra em uma artéria importante, permitindo que uma bomba sintética comece a retirar o sangue do organismo, fazendo-o circular pelo aparelho antes devolvê-lo à corrente sanguínea.

O sangue passa por uma membrana oxigenadora, em que o oxigênio é introduzido e o dióxido de carbono é retirado, de forma análoga às trocas gasosas ocorridas nos pulmões. Algumas máquinas de ECMO também incluem um equipamento para a troca de calor, o que pode resfriar ou aquecer o sangue conforme a condição do paciente.

É necessária uma equipe específica para submeter um paciente à ECMO, mas, uma vez que o paciente está estabilizado, a máquina pode ser supervisionada por enfermeiros especialmente treinados, e ela pode manter tal estabilidade por períodos prolongados. Isso permite que o paciente viva sem um sistema cardiopulmonar ativo durante dias ou mesmo semanas, dando aos órgãos falecidos valiosas férias para se recuperarem.

QUANDO É USADO?

Até recentemente, ele era usado principalmente em bebês com insuficiência pulmonar grave. No Reino Unido, ele é visto principalmente como um tratamento usado em UTIs, mas cada vez mais hospitais dos EUA estão adotando a ECPR entre as suas opções de tratamento emergencial. Numa emergência, quando um paciente não apresenta retorno da circulação espontânea após a RCP convencional, um médico decidiria a conveniência de acoplar o paciente a uma máquina de ECMO, o que deve ser feito em questão de minutos. A ECMO de emergência é, portanto, administrada como último recurso para pacientes que tenham uma boa chance de recuperação total.

Nessas condições, ela pode ser muito eficaz, e pacientes que passaram várias horas medicamente mortos já foram ressuscitados com sucesso por meio da ECMO, que pode reativar o batimento cardíaco por meio do fluxo sanguíneo e da pressão arterial constantes. Mesmo após uma parada cardíaca total, em situações em que a deterioração celular e o dano cerebral foram evitados, a ECMO comprovadamente salva vidas. Há quatro centros de ECMO no Reino Unido. O maior centro europeu e o único do Reino Unido que atende adultos fica no hospital Glenfield, em Leicester.

Tradução de RODRIGO LEITE.


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