Folha de S. Paulo


A evolução de um mundo menos violento

RESUMO Em aguardada edição brasileira, psicólogo evolucionista sustenta que a humanidade se encontra num dos períodos de menor violência de toda a sua história. Autor sublinha o embate entre as tendências que nos levam à agressividade, como a vingança e o sadismo, e as que nos afastam dela, como a razão e a empatia.

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Há boas razões para acreditar que vivemos no mundo menos violento de todos os tempos, e que essa tendência benévola tem tudo para continuar nos próximos séculos, afirma o psicólogo evolucionista Steven Pinker, da Universidade Harvard.

O livro mais recente do pesquisador, "Os Anjos Bons da Nossa Natureza" [trad. Bernardo Joffily e Laura Teixeira Motta, Companhia das Letras,188 págs., R$ 74,50], acaba de chegar ao Brasil, e usa uma enorme massa interdisciplinar de dados para argumentar que, perto de qualquer outro momento da história humana --inclusive o "estado de natureza" supostamente idílico dos caçadores-coletores ancestrais--, o século 21 é um paraíso de paz. Até o terrorismo já passou de seu auge, que teria sido nos anos 1970.

Leia abaixo os principais trechos da entrevista que Pinker concedeu à Folha, por e-mail.

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Folha - O sr. acha que a tendência de violência decrescente que descreve em seu livro vai continuar, digamos, pelos próximos 200 anos?

Steven Pinker - Depende da categoria de violência de que estamos falando. Levando em conta o fato de que o declínio da violência vem de mudanças institucionalizadas e não depende do capricho de um pequeno número de agentes, podemos fazer extrapolações, ainda que com cuidado. Várias tendências na área dos direitos humanos se encaixam nessa categoria, como o declínio da autocracia, da violência contra as mulheres, a diminuição da perseguição a homossexuais e da violência contra crianças, e acho que esses declínios vão se acentuar.

A razão para esse otimismo é que as campanhas anteriores, cujo objetivo era envergonhar os praticantes de algum tipo de violência, como as que condenavam a escravidão, a pirataria, a captura de baleias e os testes nucleares atmosféricos, levaram décadas ou séculos para atingir seus objetivos, mas acabaram chegando lá. Agora, vemos campanhas de grande escala, parecidas entre si, a respeito da violência contra mulheres, e há razões para acreditar que, no fim das contas, elas também terão sucesso.

Rebecca Goldstein/Divulgação
Steven Arthur Pinker é um psicólogo canadense da Universidade de Harvard
Steven Arthur Pinker é um psicólogo canadense da Universidade de Harvard

Mudanças nas normas sociais sugerem que a guerra entre diferentes países vem se tornando menos provável. Não acreditamos mais que a guerra seja "a continuação da política por outros meios", como dizia [o teórico militar prussiano Carl von] Clausewitz [1780-1831]. Ainda há, porém, algumas categorias de violência nas quais um pequeno número de indivíduos consegue causar muito estrago. Um terrorista com uma arma nuclear, um líder despótico que tiraniza um país ou um golpe de Estado realizado por um pequeno grupo de insurgentes continuam a representar perigo. Há 7 bilhões de pessoas no mundo, e nenhuma tendência se aplica a todas elas.

Por isso mesmo é impossível prever se as mortes causadas pelo terrorismo vão diminuir, porque isso exigiria que 100% de nós concordemos que o terrorismo é ruim. Mesmo se 99% de nós concordarmos, ainda sobraria muita gente que encoraja o terrorismo, e elas poderiam causar muito estrago.

Se a natureza humana não é infinitamente maleável, mas tem restrições biológicas, onde a capacidade de "mudar para o bem" termina?

Essa visão vem de uma incompreensão completa da abordagem evolucionista para o comportamento humano. A evolução não cria --nem é capaz de criar-- comportamentos totalmente definidos. Os comportamentos são controlados pelo cérebro, que processa informações. A evolução é capaz de moldar o cérebro para que ele tenha certas motivações, para que aprenda e pense de determinadas maneiras, e o comportamento propriamente dito depende de como o cérebro, equipado com essas faculdades, reage a seu ambiente. Esse era o cerne de outro livro meu, "Tábula Rasa".

No caso da violência, o comportamento agressivo depende da interação entre motivações que nos impelem à violência, como a exploração, a dominância, o sadismo e a vingança, e motivações que nos afastam dela, como a empatia, o autocontrole e a razão. O equilíbrio entre essas motivações pode mudar ao longo da história.

Na sua opinião, qual será a próxima grande Revolução Humanitária?

Acho que já estamos vendo algo parecido em muitas frentes, como as campanhas contra o tráfico de pessoas, a violência contra a mulher, o "bullying", a criação de animais em escala industrial, o uso de crianças em Exércitos e o encarceramento excessivo.

Há pensadores que traçam um elo entre os ideais do Iluminismo e o monoteísmo judaico-cristão. A ideia é que não poderíamos ter o florescimento da razão e dos direitos humanos sem a crença anterior num Universo ordenado e num Criador que fez todos os homens iguais. O sr., contudo, discorda dessa visão?

Não consigo entender o que uma coisa tem a ver com a outra. O monoteísmo judaico-cristão é perfeitamente compatível com diferenças nefastas entre grupos de pessoas --a Bíblia permite a escravidão, encoraja a crença de que os africanos carregam a "marca de Caim", ordena que homossexuais, bruxas, adúlteras, heréticos, filhos desobedientes sejam executados, e por aí vai. E algumas ideias do Iluminismo surgiram de forma independente na Índia e na China.

O sr. não tem uma confiança excessiva no poder da razão como instrumento para a paz? Não dá para conceber um regime político ou uma cultura capazes de compartimentar a razão e usá-la de maneira totalmente amoral?

Eis um teste para essa ideia: será que esse regime ou essa cultura permitiria liberdades de expressão e de imprensa? Se não permitir --e a maioria dos regimes tirânicos não permite--, isso significa que tem medo do que acontecerá quando as pessoas exercitarem a razão. Significa que tem algo a esconder, ou seja, sua própria irracionalidade.


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