Folha de S. Paulo


Os perigos de ser um exilado russo no Reino Unido

As circunstâncias da morte trágica de Boris Berezovski parecem bastante claras. Um homem deprimido, um banheiro trancado, hematomas no pescoço. O guarda-costas de Berezovski o encontrou caído no chão, completamente vestido, 17 horas depois de tê-lo visto com vida pela última vez. Não havia bilhete.

O guarda-costas ficou preocupado ao ver o celular de Berezovski deixado sobre a mesa. Estranhou o fato que haver chamadas perdidas. Subiu a escada, arrombou a porta e encontrou o patrão no chão. "Ele tocou a mão de Boris. Estava fria. Ele ligou para a polícia", diz Iuli Dubov, amigo de Berezovski, que chegou ao local às 17h daquele dia [sábado, 23/3].

AFP
O ex-agente da KGB Alexander Litvinenko, fotografado logo antes da sua morte, em 2006, por envenenamento
O ex-agente da KGB Alexander Litvinenko, fotografado logo antes da sua morte, em 2006, por envenenamento

No domingo, a polícia do Vale do Tâmisa apresentou seu relatório provisório sobre o que havia ocorrido com o oligarca russo de 67 anos. Detetives disseram estar conversando com amigos e parentes --um código para o fato de que ele estava visivelmente deprimido depois da esmagadora derrota judicial perante Roman Abramovitch no ano passado (em outra reviravolta, noticiou-se erroneamente que Abramovitch teria sido preso na segunda-feira nos EUA).

O principal foi que a polícia descartou "o envolvimento de terceiros a esta altura". Suas conclusões, expressas em cautelosa prosa policial, apontam para suicídio, e não para um crime. Os problemas --pessoais, políticos e financeiros-- em torno de Berezovski haviam se aglutinado em um turbilhão e o levado ao ato desesperado de tirar a própria vida, sugeria a polícia.

E no entanto, três dias depois da sua morte, alguns dos enlutados parentes e amigos do magnata continuavam profundamente desconfiados dessa versão dos fatos. Eles suspeitavam fortemente que, em vez disso, ele tenha sido assassinado. "Jamais vou acreditar na morte natural de Boris Berezovski", disse o exilado russo Nikolai Gluchkov, que era amigo íntimo dele.

Acrescenta Gluchkov: "A ideia de que ele tiraria a própria vida é uma besteira. Eu o vi no dia em que aquela juíza Gloster lhe entregou o julgamento no caso de Boris. Ele estava cheio de vida mesmo então, falando sobre certa moça que o estava esperando em casa. Ultimamente, ele havia conseguido resolver suas questões financeiras".

Gluchkov disse que a ex-mulher de Berezovski, Galina --que foi às pressas para a casa dele na tarde de sábado-- também estava cética de que seu ex-marido tenha morrido naturalmente. A dupla se dava bem, e Berezovski havia se mudado para a casa dela em Ascot depois de ser obrigado a vender sua mansão em Surrey. Ela acredita que ele possa ter sido estrangulado; uma echarpe foi encontrada ao lado do seu corpo. Quando ela chegou, os policiais já estavam lá. Eles mantiveram Galina, seus dois filhos e o guarda-costas na cozinha.

Outros que conversaram com Berezovski em seus últimos meses também põem em dúvida a versão oficial. "Quando recentemente nos falamos pela última vez, Boris estava olhando para o futuro. Ele não parecia ser um suicida", diz seu amigo Iuri Feltchtinski, acrescentando que Berezovski vinha procurando escolas particulares para sua filha nos EUA. Prossegue Feltchtinski: "Boris entendia que o Kremlin tinha por objetivo destruí-lo".

As suspeitas são compreensíveis. O Kremlin, afinal de contas, tem um terrível histórico de eliminar inimigos seus no exterior, e Berezovski era sem dúvida um deles. O governo britânico está convencido de que um amigo de Berezovski, Alexander Litvinenko, foi assassinado em 2006 por agentes do Kremlin em Londres. O caso Litvinenko fez com que as relações entre Rússia e Reino Unido mergulhassem no seu pior momento desde a Guerra Fria.

A Scotland Yard acredita que dois ex-agentes da KGB, Andrei Lugovoi e Dmitri Kovtun, tenham jogado polônio radiativo no chá de Litvinenko durante um encontro em um hotel de Londres. O polônio-210 é uma substância incomum. Seu uso como arma homicida, sugerem fontes do governo, é a prova mais convincente de envolvimento estatal russo.

Há opiniões divergentes sobre o assassinato de Litvinenko. Uma versão diz que sua morte dolorosa --ele ainda duraria três semanas-- foi um ato para servir de exemplo a Berezovski e outros que, como ele, se atrevessem a se opor ao Estado russo.

Outros dizem que esse assassinato deveria ser o crime perfeito. O polônio é virtualmente indetectável, e nesse caso só foi encontrado no momento derradeiro. Além disso, Litvinenko era um obscuro emigrado russo cuja morte, supunham erroneamente seus assassinos, motivaria pouco interesse policial ou reação oficial.

A verdade sobre o assassinato de Litvinenko pode surgir em outubro, quando um inquérito judicial será realizado. Berezovski havia manifestado interesse em comparecer --mais uma razão para acharem sua morte intrigante. Amigos, enquanto isso, ressaltam que desde então os corpos de exilados russos radicados no Reino Unido continuam se acumulando.

Em 2008, o também exilado Badri Patarkatsishvili, que foi por muitos anos sócio empresarial de Berezovski, caiu morto repentinamente. Uma autopsia concluiu que ele havia sofrido um ataque cardíaco.

Gluchkov e outros não estão convencidos com essa explicação. "Você tem as mortes de Boris e Badri em um curto intervalo. Muitos corpos estão acontecendo. Eu diria que isso é um pouco demais", diz Gluchkov.

Enquanto isso, em março passado, o banqueiro russo German Gorbuntsov, que fugira para Londres após uma série de disputas empresariais, foi baleado em Canary Wharf. Ele sobreviveu, por pouco, e o suposto atirador, um homem da Moldávia, foi preso recentemente em Moscou.

Em novembro, outro fugitivo russo, Alexander Perepilitchnii, desmaiou e morreu em frente à sua mansão, em Surrey. Perepilitchnii tinha passado documentos sobre autoridades russas corruptas a investigadores suíços. Duas autopsias ainda não conseguiram apontar a causa da morte.

Pessoas de natureza desconfiada sugerem que o Kremlin se mostrou durante o fim de semana excepcionalmente bem preparado para responder à morte repentina de Berezovski. Dmitri Peskov, porta-voz de Vladimir Putin, declarou que Berezovski havia escrito nos últimos meses ao presidente russo desculpando-se e implorando perdão.

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Um repórter russo da revista "Forbes" então afirmou ter entrevistado o magnata no hotel Four Seasons na noite anterior à sua morte. Berezovski teria lhe dito que tinha saudades de Moscou e que havia "superestimado" o Ocidente. Ele também tomou uma xícara de chá com mel --ecos, pensam alguns, do chazinho envenenado que liquidou Litvinenko.

Amigos rejeitam com irritação essas reportagens inspiradas por Moscou, qualificando-as como um lixo que atende a interesses próprios (basicamente, elas equivalem a um apólogo do Kremlin, dizendo que, se você se opuser ao poder russo legítimo, acaba exilado, quebrado, sem amigos e, afinal, morto). Autoridades russas dizem que os parentes de Berezovski querem enterrá-lo em Moscou --uma mentira, segundo uma fonte próxima à família.

Quem melhor expressa os verdadeiros sentimentos do Kremlin sobre a questão provavelmente é Nikolai Kovaliov, ex-diretor da FSB, a agência de espionagem onde Putin trabalhou. Falando na TV russa, ele disse que Berezovski havia conseguido o que ele e outros traidores da pátria haviam merecido de acordo com o implacável código da KGB --uma morte horrível.

Todos concordam que Berezovski era uma figura tóxica para o governo russo e pessoalmente para Putin. O presidente não é um homem que goste de críticas, especialmente vindas de um oligarca que foi útil para levá-lo ao cargo de primeiro-ministro e depois presidente. Por mais de uma década Berezovski o provocava à distância, aparentemente protegido pela lei britânica.

A história da amizade e posterior inimizade acirrada entre os dois é bem conhecida. Berezovski pinçou o inexperiente Putin para comandar o país, até que em 2000 eles brigaram, quando ficou claro que Putin não era um democrata. Em nome de Putin, promotores russos abriram numerosos processos penais contra Berezovski, entronizado como o inimigo número 1.

Quando cheguei a Moscou em 2007 como correspondente do "Guardian", Berezovski era o onipresente bicho-papão do Estado russo, um vilão responsável por todos os males. A imprensa estatal o culpava pelos assassinatos de Anna Politkovskaia e Alexander Litvinenko, e o acusava de fomentar a rebelião jihadista no norte do Cáucaso. Numa irreverente analogia histórica, ele estava para Putin como Trótski para Stálin.

Logo aprendi por conta própria como Berezovski era odiado. Em abril de 2007, dois colegas o entrevistaram em Londres. Num estilo que dramatizava a si mesmo, ele afirmou que estava tramando uma revolução violenta para derrubar Putin, o amigo que havia virado inimigo. O "Guardian" publicou essa reportagem na sua capa. Meu nome também apareceu depois de eu pedir uma declaração a Peskov --que era então, como agora, o marqueteiro de Putin.

No dia seguinte a FSB, paranoica agência que sucedeu à KGB, caiu em cima de mim. Estranhos jovens me seguiram pelas ruas de Moscou; e-mails com a etiqueta "Berezovski" sumiram da minha caixa de entrada; capangas do FSB invadiram meu apartamento em Moscou. A agência me intimou para um interrogatório. Apresentei-me no Lefortovo, o centro de detenção da KGB. Um jovem coronel da FSB iniciou seu interrogatório atirando na minha frente uma fotocópia colorida da reportagem do "Guardian" com a foto de Berezovski.

Mas se a FSB finalmente apanhou Berezovski, como foi? Segundo Boris Karpitchkov, ex-agente da KGB que desertou para o Reino Unido no final da década de 1990, a agência tem um grande número de métodos clandestinos. Em particular, diz Karpitchkov, os espiões russos são adeptos de usar o fluoreto de sódio, substância inodora que pode ser letal em certas doses.

Geralmente, acrescenta ele, a KGB usa venenos que podem provocar ataques cardíacos, mas que não aparecem em autopsias. Ele explicou: "A substância é incolor e sem cheiro. Ela pode ser aplicada em objetos pessoais --como uma caneta, telefone ou maçaneta--, ou em lugares onde o alvo a inale. Ela se dissolve no corpo do 'objetivo'. É indetectável em qualquer autopsia que seja realizada".

Pode soar absurdo --não fosse pelo fato de Litvinenko ter morrido por uma intoxicação igualmente engenhosa e invisível. Certamente, os policiais do Vale do Tâmisa não quiseram assumir riscos no fim de semana, realizando uma série de exames químicos, biológicos e de radiação na rústica casa de campo de Berezovski em Berkshire, perto da rodovia M25. Até agora, não acharam nada.

Seja qual for a verdade, exilados russos de oposição a Putin estão convencidos de que o regime dele é capaz de tudo, e se perguntam quem pode ser o próximo. Com Berezovski, Litvinenko e Patarkatsishvili fora de cena, a lista vai ficando menor. "Eu não vejo que tenha sobrado ninguém além de mim", diz Gluchkov melancolicamente. Enquanto conversamos, ouve-se ao telefone um "clique" típico de Moscou: alguém está escutando.

Tradução de RODRIGO LEITE.


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