Folha de S. Paulo


Emmanuelle Riva: atriz francesa de 85 anos faz história no Oscar

A morte não terá domínio sobre Emmanuelle Riva, a atriz --e poeta ocasional-- francesa que vemos definhar, brilhantemente, no comovente "Amour", de Michael Haneke.

"Não posso continuar assim", murmura seu personagem, Anne, depois de uma série de derrames que a forçam a se confinar em seu apartamento repleto de livros em Paris.

O drama a conduz ao leito de morte e além -- até o precário paraíso das cerimônias do Oscar e do Bafta este mês. Se existe vida após a morte, ela poderá ser encontrada na Royal Opera House de Londres neste domingo e no Dolby Theater, em Hollywood, dentro de duas semanas.

Divulgação
A atriz Emmanuelle Riva em cena do filme
A atriz Emmanuelle Riva em cena do filme "Amour", do diretor austríaco Michael Haneke

O sucesso de "Amour" (em geral) e de Riva (em particular) pegou de surpresa os especialistas do Oscar: um desdobramento imprevisível para uma indústria que tradicionalmente prefere a juventude à experiência e o inglês a qualquer outro idioma.

Desafiando as previsões, o filme de Haneke foi indicado para os prêmios de direção e melhor filme, e sua estrela, aos 85 anos, se tornou a atriz mais velha a ser nomeada ao prêmio de melhor atriz na história do Oscar. Para garantir o contraste, Riva tem, na lista de indicadas ao prêmio, a companhia de Ouvenzhané Wallis, 9, de "Beasts of the Southern Wild", a candidata mais jovem já apontada.

"Os elogios ao desempenho de Riva começaram no festival de cinema de Cannes, em maio", diz Wendy Mitchell, editora da revista "Screen International". "Mas o Oscar é um degrau muito mais alto, e foi surpresa vê-la indicada. Agora que foi, no entanto, creio que tenha boa chance de ganhar. Ela não está na lista apenas por razões sentimentais".

Riva nasceu no nordeste da França, filha de um pintor italiano de cartazes, e trabalhou como costureira antes de seguir carreira como atriz. Ela talvez continue a ser lembrada principalmente pelo papel que lhe valeu a fama, como a heroína sem nome de "Hiroshima Mon Amour", de Alain Resnais, em 1959.

O fraturado romance sobre memória e esquecimento dirigido pelo cineasta francês inspirou os diretores da Nouvelle Vague nos anos seguintes e foi definido pelo cineasta Eric Rohmer como "o filme mais importante desde a guerra, o primeiro filme moderno do cinema falado". Haneke também é fã do trabalho. "Quando jovem, o desempenho de Emmanuelle Riva em 'Hiroshima Mon Amour' me cativou", disse o diretor à revista "New Yorker" no ano passado. "Mas depois disso não acompanhei mais a carreira dela".

Isso não quer dizer que Riva passou os últimos 50 anos escondida. Ela se tornou uma discreta estrela do cinema francês ao longo dos anos 60, trabalhando com diretores como Georges Franju e Jean-Pierre Melville. Mas quando a meia-idade chegou, os papéis interessantes de cinema começaram a escassear e ela vem trabalhando primordialmente em teatro desde então.

Nas últimas décadas, ela teve papéis cinematográficos em "Three Colours Blue" e no drama "Skylab", dirigido por Julie Delpy. Mas jamais foi considerada como tesouro nacional, ao contrário, por exemplo, da contemporânea Jeanne Moreau.

"Riva é quase desconhecida da audiência francesa mais ampla", diz Agnès Poirier, crítica cultural francesa. "Nesse sentido, ela pertence aos cinéfilos mais extremados, os verdadeiros fãs, os guardiões da Nouvelle Vague".

O que significa que o fantasma de "Hiroshima Mon Amour" está presente no filme de Haneke. Ao escalar Riva como a frágil Annie, o diretor implicitamente explora a passada glória da atriz. Isso, ele parece estar dizendo, é o que espera todos nós.

A amante jovem e plena de caprichos de 1959 se torna uma octogenária doente e inconformada com a luz que se esvai, com a decadência de seu corpo. A beleza é coisa do passado, a música para e tudo que restará de nós é (talvez) o amor.

"É sempre pungente ver alguém como Riva de volta a um papel central, porque de muitas maneiras essas pessoas representam a história do cinema. O que ela oferece em 'Amour' vai além de seu desempenho. Ela adiciona o poder das coisas que passaram. A emoção que ela transmite é, nesse sentido, muito proustiana", afirma Poirier.

Quando não está no leito de morte, Riva vive discretamente em um apartamento de Paris que, segundo as reportagens, não é muito diferente da casa burguesa de Annie em "Amour". Ela não tem filhos e o homem com quem viveu por muito tempo morreu em 1999, e a atriz ocupa sua vida com livros, pintura e fotografia.

Riva não gosta muito de aparecer, embora tenha publicado três livros de poesia e um livro com as fotografias que tirou durante a filmagem de "Hiroshima Mon Amour". Ela admite que os papéis no teatro se tornaram mais difíceis nos últimos anos, e que decorar suas falas é trabalhoso. Mas trabalhar como atriz lhe faz bem, e é difícil desistir. "Sempre amei os gatos", ela disse ao "Guardian" no ano passado. "E acredito que ser atriz é como ser um gato. Você tem oportunidade de viver sete vidas. E ao final de cada uma pode voltar para casa e dormir diante da lareira".

Depois que "Amour" foi exibido em Cannes, Riva recebeu prêmios da sociedade de críticos de cinema de Los Angeles e da Sociedade Nacional de Críticos de Cinema britânicos, e foi homenageada na cerimônia do prêmio europeu de cinema em dezembro. Será que isso vai ser coroado por um Oscar como melhor atriz? "Para mim seria um espanto que ela vença", admitiu Poirier, ainda que mencione "O Artista", o filme mudo francês em branco e preto que levou o prêmio de melhor filme no ano passado. "Tout est possible", ela diz.

Mitchell suspeita que a favorita seja Jennifer Lawrence, 22, a estrela de "O Lado Bom da Vida", com Riva logo atrás. "Lawrence vem ganhando força nas últimas semanas e é vista como talento em ascensão nos Estados Unidos", ela diz. "Mas isso talvez pese contra ela. Jennifer Lawrence terá mais tempo, novas chances, enquanto no caso de Riva a situação é provavelmente de agora ou nunca".

Sob essa lógica, a idade pode até trabalhar em seu favor. "É preciso lembrar que a idade média dos membros votantes da Academia é de 62 anos. Apenas 14% deles têm menos de 50 anos. E algumas dessas pessoas acompanham Riva desde 'Hiroshima Mon Amour'", diz Mitchell.

Presságios só iludem os tolos, nas quentes semanas que antecedem o Oscar. Mas às vezes é difícil ignorá-los. A cerimônia de premiação acontece no dia 24 de fevereiro, domingo - por uma feliz coincidência, o 86º aniversário de Emmanuelle Riva.

PERFIL

Nascida Paulette Riva, Chenimésnil, França, em 24/02/1927.

Carreira até o momento: Depois de trabalhar como costureira na adolescência, Riva conquistou um papel em uma produção de "O Homem e as Armas", de George Bernard Shaw. Ela se tornou uma das atrizes símbolo da Nouvelle Vague francesa, graças ao seu papel em "Hiroshima Mon Amour", e na década de 70 retornou ao teatro em Paris. Gosta de fotografar e publicou livros de poesia.

Ponto alto: Interpretar a graciosa mas debilitada Annie em "Amour", de Michael Haneke, provavelmente eclipsa seus vibrantes trabalhos de juventude.

Ponto baixo: Acenar para a imprensa no tapete vermelho. "O que é isso? Não sou macaco de circo".

O que ela diz: "Se eu não fizer outro filme, quem se incomoda? Tenho 85 anos, não importa. Continuo viva, e me sinto bem".

O que os outros dizem: "Os atores conhecem um bom desempenho ao vê-lo, e o de Emmanuelle Riva é o melhor do ano" (Nicole Kidman).

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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