Folha de S. Paulo


Mawson, o herói esquecido da Antártida, enfim recebe o reconhecimento merecido

Nos anais da exploração da Antártida, os nomes de Robert Falcon Scott, Ernest Shackleton e Roald Amundsen terminaram imortalizados em livros e filmes.

Mas agora, o escritor norte-americano David Roberts está tentando redescobrir as realizações de um explorador muito menos conhecido, Sir Douglas Mawson, nascido em Yorkshire. O trabalho exploratório de Mawson no continente meridional congelado se equipara ao de seus contemporâneos mais conhecidos, e talvez até os supere.

Mawson, cuja família trocou o Reino Unido pela Austrália quando ele tinha dois anos de idade, fez diversas viagens à Antártida, enfrentando condições e perigos tão sérios quanto os encarados por exploradores rivais, Mas suas viagens também envolveram esforços de pesquisa mais intensos e --um aspecto crucial-- resultaram em mais informações valiosas para os cientistas do que as de seus rivais.

O livro de Roberts, "Alone on the Ice" (sozinho no gelo, em tradução livre), conta a notável história de Mawson, que inclui sua participação na primeira expedição a escalar o monte Erebus --um gigantesco vulcão ativo na Antártida. Também conta que Mawson esteve entre os primeiros a descobrir a posição então calculada para o Polo Sul magnético, em lugar do Polo Sul geográfico, que apesar de atrair mais atenção era cientificamente menos importante.

Roberts acredita que Mawson seja pouco conhecido por dois motivos. Primeiro, era australiano, e a imprensa britânica da época estava mais interessada em heróis imperiais caseiros, como Scott. E, segundo, Mawson não se envolveu na excitante corrida ao Polo Sul, que capturou a imaginação do público, dando preferência ao trabalho especificamente científico. "A corrida tripla [ao Polo Sul] entre Scott, Shackleton e Amundsen divertia as massas. Mas fazer o que Mawson fez era muito mais difícil", disse Roberts.

Mas as realizações e esforços de Mawson, narrados em detalhes horripilantes no livro de Robertson, parecem dignos de um épico de Hollywood. Mawson e seus companheiros passaram tanta fome que costumavam matar e comer os huskies da expedição, alimentando os animais restantes com parte da carne obtida. Suas expedições tiveram de escapar de icebergs, galgar fendas em geleiras, encontrar proteção contra nevascas súbitas e realizar feitos notáveis de resistência, exibindo fleuma impassível (talvez em parte causada pelo congelamento dos músculos do rosto).

O cerne do livro envolve a expedição Antártica Australiana de Mawson, que se estendeu de 1911 a 1914. A imensa expedição, ao contrário de tentativas anteriores de atingir o polo realizadas por pequenas equipes, envolvia numerosos grupos de exploradores que estabeleceram três bases permanentes para sobreviver ao inverno, terrível, escuro e permanentemente tempestuoso.

Em seguida, quando o clima esquentou, as equipes saíram a percorrer vastas extensões de terras inexploradas. Mawson, com o esquiador suíço Xavier Mertz e o oficial de exército Belgrave Ninnis, partiu de um campo base na baía de Commonwealth para as vastas terras selvagens da Antártida.

CLIMA DESFAVORÁVEL

Desastres fizeram da viagem de retorno uma das mais espantosas --e quase desconhecidas-- histórias de sobrevivência em toda a história da exploração da Antártida. Enquanto percorriam campos nevados transportando seus suprimentos em trenós puxados por cachorros, Ninnis e o trenó que ele conduzia caíram por uma fenda em uma geleira. Além da morte de Ninnis, a perda de seu trenó custou ao grupo a perda de sua tenda e da maior parte de seus alimentos.

Mawson e Mertz tiveram de enfrentar uma desesperada corrida para retornar à base sem uma tenda, diante de furiosas tempestades e dispondo de quase nenhuma comida. Foi uma viagem horrenda; os huskies se tornaram fonte de comida, além de animais de tração --uma tática que reduzia as chances de sobrevivência da dupla a cada cachorro devorado.

Desesperadamente fracos e vítimas de problemas cujas consequências incluíam pele arrancada, perda de cabelos e enregelamento de extremidades, Mawson e Mertz se viram detidos pelo clima desfavorável, que os forçou a passar dias em um abrigo improvisado. Mertz estava tão debilitado que delirava, o que os forçou a nova parada apesar de a data marcada para o navio da expedição recolhê-los na baía de Commonwealth estar muito próxima. Mas embora Mertz estivesse moribundo, Mawson se recusou a deixá-lo, arriscando sua vida para ajudar o amigo. "A lealdade dele para com Mertz era extrema, e Mawson se manteve ao lado do companheiro até o fim", escreve Roberts.

Mas a morte de Mertz não foi o ponto mais baixo da história. Mawson prosseguiu sozinho em sua missão pelo imenso vazio da Antártida. Ele terminou caindo de uma geleira, e ficou pendurado por uma corda amarrada ao trenó, que só não despencou ao abismo porque a neve o segurou.

Faminto, seu diário revela que a principal emoção do explorador não era o medo da morte iminente, mas a raiva de morrer sem devorar toda a comida que restava no trenó. Ele conseguiu se erguer pela corda duas vezes, enquanto a borda nevada do abismo se desfazia sob ele. Para Roberts, a força mental de Mawson é ainda mais admirável que sua força física. "A resistência mental dele era imensa", o escritor afirma.

Mawson conseguiu retornar ao acampamento horas depois que o barco da expedição partiu. Teve de suportar novo inverno antártico em companhia dos homens deixados pelo navio no acampamento, antes de poder retornar.

Mas pelo menos havia uma antena de rádio em funcionamento e Mawson pôde enfim enviar uma mensagem à sua noiva, Paquita Delprat, que há muito o esperava, preocupada, na Austrália. Tendo sofrido solidão e privações físicas inimagináveis, bem como a perda de dois amigos, sua mensagem começava com contenção digna de um herói da era imperial britânica: "Lamento profundamente atraso só agora cheguei cabana".

Tradução de PAULO MIGLIACCI.


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