Folha de S. Paulo


'Emorap' marca renovação do gênero com melodias sombrias e delicadas

Um céu lilás entra em convulsão. Trovoadas brilham em câmera lenta no horizonte, pontuando a batida letárgica da música.

O astro do clipe, vestindo uma blusa de paetês, então balbucia que todos os seus amigos estão mortos. Ele quer ser "empurrado até o precipício" e geme que não "importa se você chorar".

Os rappers, ele deixa claro, agora também choram. E sangram, feito os zumbis de seu vídeo. Lil Uzi Vert, o rapaz negro e esguio por trás de "XO Tour Llif3", uma das canções mais comentadas e ouvidas nos últimos meses nos Estados Unidos, esperneia mensagens melancólicas em composições viscosas, densas como xarope para tosse.

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Ou demolidoras como antidepressivos e remédios para dormir. O gênero musical mais consumido –e lucrativo– na maior potência mundial nunca foi tão tristonho e tão viciado numa tarja preta.

Lil Uzi Vert, que pode levar nesta noite o Grammy de artista revelação, ouvido mais de 3,5 bilhões de vezes em plataformas de streaming, lidera uma novíssima leva de rappers por trás de um estilo que críticos de música vêm chamando de "emorap".

É um cruzamento inesperado entre os emos dos anos 1990, com chiliques sentimentais e cabelinhos lambidos, e musculosos ostentando carrões e cordões de ouro que marcaram o rap clássico.

Os carros de luxo, aliás, não saíram de cena. Lil Peep, um "emorapper" nova-iorquino, escreveu letras exaltando suas Mercedes e BMWs.

Mas a narrativa já é outra.

No clipe de "Benz Truck", por exemplo, em vez de mostrar mulheres estonteantes rodeando máquinas idem, como fizeram dez entre dez dos rappers das gerações anteriores, Lil Peep, branco, magérrimo e com uma tatuagem que diz "bebê chorão" acima do olho direito, recita os seus versos entre lápides no cemitério de uma catedral gótica.

Essa fricção entre paixões adolescentes e um niilismo trágico, o fio condutor das canções "emorap", também aparece na capa de "Come Over When You're Sober", seu primeiro e último disco.

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Lil Peep aparece deitado ali ao lado de bichos de pelúcia cor-de-rosa, um baseado pendurado dos lábios e os olhos entreabertos fitando a câmera como se confessassem a vontade de sumir do mundo.

Três meses depois do lançamento desse álbum, em agosto do ano passado, ele foi encontrado morto no camarim de um show –seus fãs o esperavam diante do palco.

SELFIE

No Instagram, pouco antes de morrer de overdose de fentanila, um opioide, e outros analgésicos ultrapotentes, Lil Peep havia postado um selfie com a legenda "quando eu morrer, vocês vão me amar".

Talvez o gesto não passasse de uma provocação, a construção da imagem de uma estrela atormentada e suicida de fachada –ou reencarnação da estética "heroin chic" que dominou o mundo da moda na década de 1990.

Tudo indica, no entanto, que Lil Peep preferia estar vivo para lucrar como uma espécie de produto pop da epidemia do vício em opioides que abala os Estados Unidos, ou filhote do hype em torno de fenômenos como "13 Reasons Why", série da Netflix acusada de glorificar o suicídio que volta para uma segunda temporada neste ano.

Sua morte precoce –aos 21 anos– foi logo digerida e vendida por outros queridinhos da cena "emorap".

Lil Xan, que emprestou seu nome artístico do remédio para dormir Xanax, transformou o triste fim do amigo em canções como "Betrayed", em que lamenta como as drogas dão barato e ajudam a conquistar garotas, mas matam.

De blusa de capuz com estampa de coraçõezinhos, um rosto redondo quase de criança, Lil Xan, 21, também canta arrastado, simulando o efeito do comprimido para cair no sono, no clipe dessa música visto mais de 150 milhões de vezes no YouTube.

Todos os vídeos do "emorap", aliás, repisam a fusão dessa estética das periferias americanas, entre um aceno ao "gueto" dos rappers tradicionais e um revival do grunge, e elementos mais fofos e delicados, possível alusão a uma juventude corrompida.

Os primeiros críticos que tentaram decifrar a linha evolutiva desse estilo, aliás, elencam estrelas de contornos mais sombrios como Kurt Cobain e Marilyn Manson como os antepassados desses músicos em vez de decanos do rap, como Jay-Z e Kanye West.

No meio do caminho, estão nomes mais calmos e sorumbáticos, que esticaram os limites do rap, como The Weeknd, que já fez parceria com Lil Uzi Vert, e Lana Del Rey.

Uma ponte entre as gerações, no entanto, é a propensão do estilo para o lucro. Kanye West pode não estar no topo da indústria como já esteve, mas o designer que ajudou a construir seu estilo também abraçou o "emorap".

O mais-badalado-impossível Virgil Abloh, cérebro da grife Off-White, entendeu não só o resgate de tendências da virada do milênio que domina a moda atual mas também a elasticidade de um estilo musical capaz de tragar todos os outros ao seu redor.

Suas criações para Lil Uzi Vert, por exemplo, mesclam elementos do glam rock e do grunge para plasmar a imagem de um rapper ao mesmo tempo viril e sensibilíssimo.

Nesse ponto, XXXTentacion, outro músico do gênero, é uma das mais explosivas combinações dessa ideia de machão defendida pelo rap com os sofrimentos de um artista quando jovem que define o "emorap".

De dreads coloridos, canta sobre obsessão e depressão. Também é suspeito de agredir a namorada e cumpre prisão domiciliar na Flórida.

Juntos, esses garotos parecem ter criado a trilha sonora de uma geração cada vez mais violenta –e que definha em seus paraísos artificiais.

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GRAMMY 2018
Transmissão da cerimônia
QUANDO 22h30, TNT


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