Folha de S. Paulo


Análise

Ao incorporar épicos, Le Guin foi genial na invenção de tradição

Marian Wood Kolisch/NYT
A escritora de ficção científica Ursula K. Le Guin
A escritora de ficção científica Ursula K. Le Guin

Contam-se nos dedos as edições recentes da vasta obra da autora em português do Brasil

A premissa de boa parte da obra de ficção da americana Ursula Kroeber Le Guin (1929-2018) é mais ou menos a mesma de "Alienígenas do Passado" e outros pseudodocumentários bregas: vários planetas da nossa galáxia teriam sido povoados, no passado remoto, por viajantes espaciais dotados de alta tecnologia.

As semelhanças com o History Channel, claro, terminam aí. Ainda que a ideia fosse tão manjada nos anos 1960 quanto é hoje, os romances e contos de Le Guin, que morreu na segunda (22), aos 88 anos, teriam sido capazes de transcendê-la.

A visão de uma unidade original da humanidade que se fragmentou em incontáveis civilizações galácticas se transformou no experimento mental perfeito para investigar dicotomias e fusões entre natureza e cultura, masculino e feminino, anarquia e ordem.

Dois conceitos muito usados para avaliar a complexidade e o impacto das obras modernas de fantasia e ficção científica são a "subcriação" ou "world-building", de um lado, e o que se pode chamar de invenção da tradição, de outro.

O primeiro se refere à construção ficcional do universo do autor, com o esforço de arquitetar geografia, etnias, idiomas, sistemas políticos, simulando a complexidade do mundo real. Já o segundo tem um impacto literário mais direto: a fala dos personagens, o pano de fundo cultural onde eles atuam, não parece ter sido inventada do zero, mas reflete uma história simulada de milênios.

Assim como Shakespeare cita Homero, o autor de fantasia pode dialogar com os textos "homéricos" de seu mundo ficcional.

Le Guin foi extremamente competente no que diz respeito ao primeiro quesito, óbvio –é difícil não se apaixonar pelas descrições do mundo-arquipélago de Earthsea (Terramar, em português), ou por Gethen, o planeta chamado inverno de "A Mão Esquerda da Escuridão".

Mas seu verdadeiro gênio está na invenção da tradição.

Filha dos antropólogos Theodora e Alfred Kroeber, que trabalharam com Ishi, o último caçador-coletor das tribos da Califórnia, ela incorporou de modo quase antropofágico a oralidade poética pré-moderna (que, de novo, remete o leitor a Homero ou à épica escandinava).

O misterioso hermafroditismo dos habitantes de Gethen, por exemplo, cuja civilização tecnológica quase não usa a palavra escrita (eles preferem o rádio), reflete-se num poema tradicional que celebra justamente a fusão de opostos: "A luz é a mão esquerda da escuridão/ E a escuridão é a mão direita da luz".

Essa exploração imaginativa do não binarismo sexual é um dos motivos pelos quais a discussão sobre diversidade no século 21 não pode prescindir da obra da escritora.

O mesmo vale quando falamos de raça: seu ciclo de fantasia "medieval", o do mundo de Terramar, inverte os estereótipos do gênero ao retratar povos de aparência indígena e negra como os heróis e os brancos como bárbaros.

E contos como "The Ones Who Walk Away from Omelas" ("Aqueles que Vão Embora de Omelas") abordam o cerne sangrento da "realpolitik" e da possibilidade de revolta contra ela.

Contam-se nos dedos as edições recentes da vasta obra da autora em português do Brasil. De seu ciclo "espacial" há "A Mão Esquerda da Escuridão" e "Os Despossuídos", ambos da editora Aleph, enquanto os livros sobre o mundo de Terramar são "O Feiticeiro de Terramar" e "As Tumbas de Atuan", da editora Arqueiro.

São, de fato, os livros fundamentais de Le Guin, mas seria excelente para o público brasileiro ao menos concluir a trilogia original de Terramar, que termina com "The Farthest Shore" (o qual ganhou o título "A Praia Mais Longínqua" em Portugal), e uma coletânea de contos que inclua "The Ones Who Walk Away from Omelas".


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