Folha de S. Paulo


Professor diz que criação nacional segue escorada em reciclar tradições

João Montanaro/Folhapress

"O olho só pode ver-se a si mesmo por um reflexo, por alguma outra coisa", afirma Brutus, coprotagonista e um dos assassinos na tragédia "Júlio César", de 1599.

Foi esse o ponto de partida de João Cezar de Castro Rocha, professor da Uerj, para propor o conceito de "Culturas Shakespearianas" –a partir da teoria mimética do filósofo francês René Girard (1923-2015), segundo a qual a imitação do desejo alheio é a raiz da violência.

Shakespearianas são as culturas pós-coloniais, como a brasileira, que "situa o outro, europeu no século 19, norte-americano hoje, no centro da sua determinação". E mais, que reproduz o "método compositivo" de Shakespeare, reciclando tradições com complexidade.

Ele vê semelhanças com Oswald de Andrade e outros, mas recusa qualquer excepcionalidade brasileira.

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Folha - Logo de cara, o livro faz uma menção a Oswald.

João Cezar de Castro Rocha - Estudei com Girard em Stanford e fiz um livro com ele ["Evolution and Conversion", Bloomsbury, 2008] que tenta compreender a teoria mimética mais no sentido antropológico do que nas derivações religiosas. Eu sou ateu, meu interesse é antropológico.

A leitura que faço do sujeito mimético, girardiano, está em "Culturas Shakespearianas". A ideia básica é que ele tem uma carência estrutural. Não tem condições de se definir por si só, o outro é central para que determine até seu objeto de desejo. Isso quer dizer que é próximo do sujeito antropofágico oswaldiano.

Daí "cultura shakespeariana"?

Sendo brasileiro e, portanto, de uma cultura que situa o outro no centro de sua definição, a pergunta que fiz foi: O que aconteceria se, em lugar do sujeito, o conjunto da cultura fosse mimético? Quer dizer, tivesse esse vazio, essa carência que só se resolve pela presença do outro. Essa é a questão fundamental.

O livro retoma outro ponto da teoria: Para Girard, a mímesis é uma usina de violência e o resultado do desejo mimético é a disputa. Eu quis entender como é que essa violência se reflete num país como o Brasil, em uma cultura de passado colonial, na qual o outro nos define.

Mas o seu livro também se afasta de Oswald.

Eu associo os sujeitos mimético e antropofágico como analogia possível, mas no Oswald existe uma contradição fundamental, embora produtiva, que ele nunca resolve: ele sempre oscila entre o que é próprio do Brasil e o que é da condição humana.

No Manifesto Antropofágico, ele diz: "Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago". Não existe nacionalidade, ele não diz "homem brasileiro". Mas depois vai dizer: "Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade". As duas frases são incompatíveis. O que chamamos de Brasil foi uma construção "post facto", implica que os portugueses chegaram. Nesse sentido, eu faço a analogia, mas me afasto da conclusão de que a antropofagia é o propriamente brasileiro.

E chega a Shakespeare?

Eu proponho uma nova categoria, que chamo cultura shakespeariana. Para mim foi decisivo o ensaio dedicado por Girard a "Júlio César" [em "A Theater of Envy", OUP, 1991]. Tem a cena em que Cassius precisa convencer Brutus a se unir à conspiração, faz elogios absurdos e diz que é Roma quem fala. Pergunta: "Brutus, você pode ver seu rosto?". A resposta é o que chamo cultura shakespeariana: "Não, Cassius, o olho só pode ver-se a si mesmo por um reflexo, por alguma outra coisa".

O Brasil é assim até hoje. Situa o outro, europeu no século 19, americano hoje, no centro da sua determinação.

Oswald não é o único. Nelson Rodrigues fala em complexo de vira-lata. Roberto Schwarz fala das ideias fora do lugar. E o próprio livro trata de Antonio Candido.

O que estou propondo é que essa não é uma característica do Brasil. E que faz falta, à crítica cultural brasileira, um viés comparativo. Muitas vezes ela identifica, com agudez e inteligência, determinados processos, mas reduz o problema a uma definição do brasileiro. Isso é absurdo.

Quando estou propondo culturas shakespearianas, a centralidade do outro é um fenômeno característico das culturas de passado colonial recente. Boa parte do ensaísmo brasileiro lida apenas com o país Brasil, ao passo que o que interessa mesmo é compreender as razões pelas quais a nação brasileira ainda hoje não se constituiu.

Machado de Assis tem uma frase, "Um dia, quando já não houver império britânico nem república americana, haverá Shakespeare"...

[risos] É maravilhoso, né.

"Quando não se falar inglês, falar-se-á Shakespeare." Hoje a hegemonia anglo-americana está em recuo. Para onde o vira-lata Brasil vai olhar?

O problema da cultura anglo-saxã é que ela não é suficientemente shakespeariana.

A proposta talvez mais ousada de "Culturas Shakespearianas" é que o primeiro autor latino-americano se chama William Shakespeare. Vale dizer, a literatura, as artes latino-americanas só são possíveis através da assimilação da tradição que lhe é anterior.

Ora, das 36 peças do "First Folio", quantas possuem enredo original? Só quatro. As outras 32 Shakespeare pilhou, tomou ideias e tornou-as mais complexas. Sempre foi um reciclador, complexificador.

É o que todo latino-americano pode ser. Nós não criamos o gênero romance, ópera etc. O que fizemos? Nós aprofundamos, criamos um mundo mais complexo. Os mais importantes escritores latino-americanos compreenderam antes da crítica acadêmica essa afinidade com o método compositivo shakespeariano.

Girard pensou antes o que se vê, hoje, nas redes sociais?

Eu li com imenso interesse [a coluna "O profeta das redes", de Otavio Frias Filho, diretor de Redação da Folha, na Ilustríssima de 3/12]. É absolutamente correto. No "Mensonge Romantique et Vérité Romanesque", que é o primeiro livro de Girard, de 1961 [Grasset], ele diz que a imprensa, vale dizer, uma nova tecnologia de informação, deu ao desejo mimético uma capacidade de penetração inédita e quase mágica.

Hoje temos a mais sofisticada tecnologia de informação e ao mesmo tempo algo primitivo. Essa é a intuição brilhante de Frias. É propriamente girardiano: A mímesis produz violência. A proliferação dos linchamentos virtuais está prefigurada na teoria mimética. Não há nada mais arcaico que criar bodes expiatórios para produzir unidade.

Você conviveu com Girard. Como ele reagiu às redes socais?

Ele nunca teve Facebook, mas era muito atento à mídia contemporânea. Chegamos a fazer um projeto de livro, com a análise de episódios de "Seinfeld". No "Evolution and Conversion", eu falo: "Professor, tem uma série que seria importante pensar mimeticamente". Ele deu um largo sorriso: "I love Jerry Seinfeld". A mídia contemporânea, ele disse com todas as palavras, é uma máquina inconsciente de mimetismo.

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CULTURAS SHAKESPEARIANAS
EDITORA É Realizações
QUANTO R$ 89,90 (424 págs.)

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Antonio Scorza/ Agencia O Globo
O professor da Uerj João Cezar de Castro Rocha
O professor da Uerj João Cezar de Castro Rocha

RAIO-X

Formação
Graduado em história e doutorado em letras pela Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), fez um segundo doutorado em literatura comparada na Universidade Stanford (EUA)

Cargo
Professor de literatura comparada da Uerj

Obras selecionadas
"Evolução e Conversão", diálogos com René Girard e Pierpaolo Antonello (É Realizações), e "Machado de Assis: Por uma Poética da Emulação" (Civilização Brasileira)


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